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A afetação


Um dos maiores inimigos da vida católica - e moral, como um todo - é a afetação. Vejamos o que é isso e como ela se dá.

Quando nós praticamos o ato de conhecer, isto se dá a respeito de algum objeto. Podemos dizer que o termo desta nossa faculdade é, sempre, o objeto. De igual modo, quando agimos, a nossa ação inicia-se em nós e orienta-se, igualmente, a um objeto. É claro que este objeto pode consistir em nós mesmos. Neste sentido, seríamos sujeito e objeto, tanto do conhecimento quanto da ação. Isto é particularmente importante na vida religiosa em geral pois o que se nos pede é a coragem de ajeitar ou ordenar o nosso eu, matriz das nossas operações quaisquer que sejam.

Porém, existe um outro modo de agir a que designamos afetação: é quando o termo aparente da tua ação não é o verdadeiro. Um exemplo: uma pessoa diz que é preciso dar esmolas ou visitar doentes no hospital. Suponhamos que ela de fato comece a praticar isso que defende. A mera passagem da teoria à prática não é, ainda, garantia de moralidade. Existe um outro ponto aí que deve ser considerado: a intenção. Diz o Imitação de Cristo que uma intenção reta alcança a Deus e uma alma simples o abraça. Porém, é muito possível e, inclusive, provável que, por trás e por baixo da nossa finalidade mais evidente, se escondam outras. Peguemos ainda o nosso exemplo: se alguém o faz por amor à própria imagem, para que seja bem visto ou para que confirme a idéia positiva que tem a respeito de si mesmo, note como o termo da ação aí não se orienta, como parece, ao objeto a que se refere à primeira vista, isto é, aos doentes e mendigos. Neste caso, temos uma atitude afetada, pois aquilo que se experimenta por dentro não corresponde diretamente àquilo de que se falava ou defendia. 

Porém, a intenção de uma pessoa, a menos que se manifeste claramente de alguma forma, não pode ser sondada por nós. Pode ser suposta, mas Jesus mesmo o proíbe. Adiantar-se sobre a intenção de alguém em particular configura o chamado 'julgamento de intenção' que não é permitido aos cristãos. Isto porque, em geral, tal conhecimento, por ser interno, nos escapa.

Se, contudo, tal é assim, de outro lado nos é possível falar de uma certa estimativa no que se refere à afetação. Primeiramente, digamos que este tipo de dissimulação interna nem sempre é totalmente consciente. Há, de fato, pessoas abertamente dissimuladas. Eu já as conheci e chegavam quase ao nível da psicopatia. Mas, em geral, estes desvios de intenção se dão sem que o sujeito reflita, isto é, sem que se dobre sobre si mesmo para se observar. A maioria de nós tem como óbvia a finalidade das nossas ações. Não nos acostumamos muito a nos avaliar. Basta ver como há pessoas que parecem totalmente crédulas de suas suposições. No entanto, tal estado de ingenuidade marca a pertença a um nível básico de imaturidade. Entenda que os objetos defendidos aparentemente podem ser os alegadamente mais sérios: religião, aborto, política, filosofia, teologia, etc. Tais assuntos podem até reforçar a aparência de seriedade da pessoa e, no entanto, serem tão somente uma fachada. Não que a pessoa não os defenda de fato, mas que as suas investidas têm outra finalidade por trás daqueles assuntos, qual seja: a auto-afirmação. E isto pode acontecer sem que a pessoa sequer tenha notado.

Todos nós somos manchados pela soberba, isto é, todos buscamos, pelo menos inicialmente, fazer o mundo gravitar em torno de nós. Se o leitor nunca refletiu sobre isso e está discordando do que eu aqui digo, isto é claro sinal de pouco conhecimento de si mesmo. Há um ranço de soberba que nos inclina a um certo tipo de auto-deificação. E a única forma de sair disso é tomar consciência clara deste problema e receber o auxílio da graça. Como, porém, a maioria das pessoas não reflete sobre essa sua condição, forçoso é dizer que sejam cativas dessas rédeas da soberba. Às vezes, parece-nos flagrar a discrepância entre a reação de uma pessoa e o seu objeto. Esta discrepância pode se dar precisamente porque o sujeito em questão não está concentrando sua atenção no objeto em si, mas na própria reação que ele tem, de modo que esta perde a sua referência e fica a repousar, digamos, numa espécie de vazio. Este é o grande mal da hipocrisia. Assim como ela reduz-se a uma mera aparência de valor, assim também Jesus afirma que tal fatuidade será, igualmente, a sua recompensa.

O que fazer para não ser cativo deste problema? É preciso adquirir uma sinceridade profunda na consideração das coisas e de si mesmo, principalmente. É preciso flagrar sem medo e sem dó estes nossos movimentos soberbos que se dão internamente. Notemos a necessidade constante que temos de auto-afirmação e o modo como não aceitamos críticas de nenhum modo. Estas coisas, se não trabalhadas, nos colocam no polo oposto de qualquer cristianismo real. Percebamos que a ênfase com que defendemos ou atacamos certas posições visam, não raro, provocar antes um certo efeito e é justamente por ser este efeito o verdadeiro objeto visado que a sua correspondência com o objeto alegado nos aparece como algo "desafinado".

Enfim, tenhamos cuidado com isso pois tais afetações podem se estender a toda a vida e, no fim, a história toda da pessoa terá se reduzido a mera aparência.
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