Tradutor / Translator


English French German Spain Italian Dutch Russian Portuguese Japanese Korean Arabic Chinese Simplified

Feliz Ano Novo (??)... (!!!)



Finda mais um ano e esta tarde, sinceramente, não parece ter nada de especial a mais que as outras de todos os dias, muito embora já hoje eu tenha escutado que, nestes finais de ano, o tempo muda, o céu fica não sei cor e outras balelas... Mera questão de sugestão; a mesma causa das lágrimas presentes nos olhos da autora desta conversa. Poderíamos ser um pouco poéticos e dizer que a especialidade desta tarde, em particular, reside no fato de ser a única presente. No entanto, quando este artigo for lido, a referida tarde já terá passado. Muito provavelmente estaremos já sob os ares do novo ano.

Mas não é só isto que me intriga. Ainda nesta noite, até na Santa Missa, será facílimo notar que a maioria veste branco. Ora, isto como fator simbólico não tem nada demais. Mas parece que a coisa não fica aí... Questionados, alguns responderiam que o motivo da alvura de suas vestimentas consiste no desejo de, ao "romper" o ano, atrair a si imensas realizações e sucessos... E aqui começa a presepada.. Primeiro, temos uma relação causal totalmente subjetiva e inexistente; coisa de neurótico: um símbolo de algo é falsamente elevado a um fator de causa. Ora, o que fariam se disséssemos que o branco também pode simbolizar a anemia? Mas os queridos supersticiosos que assistirão a Santa Missa, tão devotos e graciosos, supõem que a coisa só funciona com aquilo que, momentaneamente, lhes ocupa o pensamento.

Dias atrás, convidei um colega para cantar numa Santa Missa destas de fim de ano. Objetou-me que, porque cantara na Santa Missa ano passado,  o ano presente fora péssimo. Estabelecera uma relação a partir disso, supondo falsamente o ato de cantar na Santa Missa como causa de seu desprazer, e pediu pra ausentar-se do serviço... Outro dia, pra completar o rol de aberrações, uma mulher ajoelhou-se após comungar. Uma outra que estivera sentada ao seu lado, também voltando ao seu lugar após a comunhão, tratou de passar por cima das pernas da senhora ajoelhada. Esta, por fim, ao término da Santa Missa pediu para que sua colega lhe desenguissasse, e fez questão de novamente ajoelhar-se para que a cena cômica se efetivasse.

E a coisa não pára por aí. Nestes desejos de "Feliz Ano Novo", contra os quais nada tenho, a não ser, como já comentei, o seu fator acidental de substituição do Natal, não raro se escondem outras crendices supersticiosas, quando não declaradamente astrológicas. Desejar que as coisas melhorem é sempre bom, e não quero aqui aparentar ser pessimista. Ao contrário... Mas supor que as coisas melhorarão em virtude do simples suceder cronológico de dias ou da simples transição do calendário convencional é, por certo, muita ingenuidade. Não haverá nisto certa pretensão determinista, onde as coisas se moveriam por si mesmas? Outra atitude muito distinta, e que caracteriza o verdadeiro católico, é a recomendação do novo ano à Providência divina. Não nego que muitos possam ter isto em mente ao expressarem seus votos para o ano vindouro. Mas a grande maioria não... O movimento de translação da terra não vai causar promoções de emprego, nem arranjamentos matrimoniais ou coisas do tipo. É mesmo muito ingênuo ver que as pessoas supõem uma mudança qualquer no "destino" do mundo sem relacionarem-na à mudança de atitude dos residentes deste mundo.

Muito mais estranho é ainda a crença em alguma suposta felicidade, por parte dos católicos, sem vinculação imediata a Deus e à vivência da Fé. Tudo isto é muito sintomático da superficialidade com que a maioria trata as verdades católicas. Estas são deixadas de lado, reputadas a tempos mais ordinários. Agora é Ano Novo! E se muitos costumam a ir à Santa Missa, isto se deve simplesmente à tradição. A Santa Missa torna-se, então, a porteira da festa que adentrará pela madrugrada e a Santa Eucaristia precederá, talvez, a ingestão de quem sabe o quê...

Qual é a mudança que se espera, mesmo? Como dizia o Salmista: "Nada é novo debaixo do sol".
E isto é perfeitamente aceitável porque, se a eterna novidade que é o Cristo nascido é tão rapidamente esquecida, se os homens fazem a transição dos anos exatamente na mesma atitude de anos passados, qual seja, o desprezo pelo Verbo de Deus, não esperem eles que as suas mesquinhas ambições venham a se efetivar. E isto não se dá por causa de qualquer atitude vingativa de Deus, mas porque a felicidade, desde que verdadeira, não existe desvinculada do Cristo. Ainda que se atolem nos objetos de suas petições e nos frutos de seus esforços, enquanto o Cristo não for, de fato, a Boa Nova, a eterna novidade, então o sabor de seus presentes, de suas festas, de suas agitações será justamente insosso como sempre foi.

Mas então, sorriamos! Façamos deste terra um mundo de atores!!!! E Feliz Ano Novo!!
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------

Bem.. Para que não fique este gosto de "nada", termino por desejar, eu também, um feliz ano novo, mas realmente voltado para a Paz, o Amor e para aquela alegria que Nosso Senhor prometeu aos seus: "Que a minha alegria esteja em vós e que a vossa alegria seja plena". Com esta promessa, Nosso Senhor nos enche de reta esperança. Que em 2010 possamos converter-nos mais a Deus, progredirmos em todas as áreas de nossa vida, na totalidade da nossa alma, nos conformando em tudo com a vontade divina. Que em 2010 vivamos todos para Ele que nos comprou com o Seu Sangue.

Que a Virgem Puríssima nos conduza, ensine e guarde...


A todos, Pax et Bonum!!!!!!!

Fábio Luciano...

A descoberta da Ortodoxia



G. K. Chesterton

"Como todos os outros menininhos pomposos, tentei colocar-me à frente de meu tempo; e descobri que estava 1800 anos atrás. Forcei minha voz com penoso exagero juvenil ao proferir minhas verdades. E fui punido da maneira mais adequada e engraçada, pois mantive as verdades: mas descobri, não que não eram verdades, mas simplesmente que não eram minhas. Quando imaginei que estava sozinho, encontrei-me de fato na ridícula posição de receber o apoio de toda a cristandade. Deus me perdoe, mas talvez eu tenha tentado ser original; mas só consegui inventar por minha própria iniciativa uma cópia inferior das tradições existentes da religião civilizada. (...) Tentei fundar uma heresia só minha; e quando lhe dei o último acabamento descobri que era a ortodoxia.

Talvez alguém se divirta com o relato deste feliz fiasco. Talvez um amigo ou inimigo se divirta ao ler como eu gradativamente aprendi, da verdade de alguma lenda perdida ou da falsidade de alguma filosofia dominante, verdades que eu poderia ter aprendido do meu catecismo - se o tivesse estudado."

G. K. Chesterton. Ortodoxia.

Cositas a decir...



1- Bem... Estes dias o blog estava simplesmente inacessível e, por isso, não postei nada.. Este negócio tava com umas frescuras e "gayices" (tomara que não me acusem de homofóbico..rs..).. Alguns atribuem o problema ao próprio "blogspot", tachando-o, por estas e outras, de desinteressante. "Mudarei para o wordpress", comentam alguns.. Outros entendem o problema como uma fase "off line" de melhoramentos no sistema do blogspot. Seja como for, espero que pare com essas macacadas...rs..

2- Hoje é, já, dia 30. Nos aproximamos do ano novo. Mas eu não gosto de desejar "Feliz Ano Novo!" e explico-me: A maioria das pessoas considera que o Natal é somente um dia e, no dia 26, lá estão a desejar "Feliz Ano Novo!". Daí que esta saudação - até boa, visto que expressa o desejo de felicidade ao outro - apenas distrai do Natal e como que, usurpadoramente, o sobrepuja. Não gosto disso... "Ano Novo" é apenas uma transição de um ano ao outro; Natal é o nascimento de Deus entre nós.  Por isso, reafirmo a meus amigos e leitores: Feliz Natal!

*O mais tosco nestas "viradas de ano" é que, em alguns lugares, como a Santa Missa ainda não tem terminado no momento preciso da transição, há certos artistas circenses que se vêem no direito de interromper o Santo Sacrifício do Senhor para iniciar a infame contagem... Aff...

Enfim, meus caros... Felicidades a todos...

Pax et Bonum.

Puer Natus Est, Venite Adoremus.

Fábio.

Comunicado, pedido e votos de Feliz Natal



Caríssimos amigos e leitores, não sei se terei tempo de vir a postar antes do natal, ou mesmo durante. Por isto, aproveito agora esta mensagem que vai com dupla finalidade, como bem sugere o título.. (bem... o título sugere três.. mas tudo bem.. comunicado e pedido se relacionam a uma coisa só..rs..)

Um dos nossos membros do Grupo de Resgate Anjos de Adoração, chamado Breno Kennedy, um dos seguidores deste blog, estará viajando amanhã à noite para o Paraná para uma experiência com os monges Cistercienses da Estrita Observância, mais conhecidos como Trapistas. Creio que esta viagem será decisiva pra o discernimento da sua vocação e, por isto, peço aos amigos que, verdadeiramente, rezem por isto.

Depois, enfim, termino por desejar-lhes um santo e feliz Natal. Evitem partilhar das falsas concepções mundanas e adorem e amem e ardam em santo amor pelo divino Infante. Creiam que o Natal é Jesus e vivam esta santa festa segundo esta verdade. Que a reunião com a família ou os amigos não os faça esquecer o Pobre de Belém que é Deus.

A todos felicidade e santidade

Christus Natus Est

Fábio Luciano.

Ayaka Hirahara - Uma música de Natal em Japonês

Sigo a dica de um outro blog que diz que, nestes tempos de fim de ano, não faz mal postar de uma forma mais "soft". Alguns já sabem que gosto muito, muito mesmo, de música japonesa, e encontrei, por acaso, este video com esta música que achei muito bonita. Como sei que não sou o único, também, que aprecia estas coisas, disponibilizo-o aos amigos e leitores.



Embora seja japonesa, a música é de natal.

Abraço.

Pax et Bonum.

Fábio.

Natal, Aniversário de um Esquecido...


"Por que meu aniversário não pode ser sobre mim?
É o meu desejo, Noel.
Isso é pedir demais?"

"Depois de amanhã é o aniversário dEle.. Mas quem liga? Quem se importa? Ele, o sumamente incômodo, cuja simples recordação parece estragar as festinhas, os prazeres, os comes e bebes; Ele que costuma vir com aquelas propostas inconvenientes de convidar os pobres para as festas, de se importar com os pequenos... Se bem que é o aniversário dEle... Mas não importa, achamos um substituto de peso: O Papai Noel! Este, ao invés de nos pedir, nos dá presentes e, se nos evocam o seu sentido cristão, é só dizermos que ele não existe."

Interessante... Parece que o nascimento adorável de Nosso Senhor costuma ser acompanhado, sempre, das mesmas circunstâncias que o envolveram naquela santa noite. "Não há lugar para você!!! Nasça ao relento, sob o desprezo dos homens. Eis o presente que te damos no teu aniversário: neste dia, teremos conduta particularmente devassa!!!"

Creio faltarem hoje aqueles gritos de S. Francisco de Assis, pelas estradas com os olhos fundos de chorar: "O Amor não é amado". Poderíamos dizer mais: a Doçura é desprezada, a Beleza é ignorada, cobrem o rosto diante dEla.... Simplesmente não a querem notar. Estarão tantos ocupados, lambuzados de vinho, carnes e outras "carnes", enquanto Ele, no seu escondimento, na sua solidão, nascerá sob o relento, no frio de uma noite, sob o véu da pobreza, seu manto real.

Que Deus nos conceda, como dizia Léon Bloy, um verdadeiro desprezo pelo mundo e suas vaidades, e suas futilidades e suas flatulações aclamadas, e nos faça amar a Beleza que, verdadeiramente, fez-se carne e acampou em nosso meio. Que nesta noite, o nosso presente ao divino Infante seja o de um coração ardente, abrasado por aquele fogo de amor que Ele veio trazer à terra e só deseja que esteja aceso. Como não inflamar-se, Senhor, ao ver-vos, Sol de amor, vindo a nós assim tão pobre?  Concede-nos, juntamente com os reis e os pastores, estarmos também nós diante de Vossa presença santa e contemplar-Vos e adorar-Vos no colo de Vossa Mãe Santíssima.



Ensina-nos a te amar e a te imitar...
Que o mundo se lambuze com suas festas.
Nós nos deleitaremos com Aquele cujo amor é mais delicioso que o vinho.

Venite Adoremus...

Fábio.

Os Elementos da Música



Pe. Bertrand Labouche

A palavra mousike, mousiké, designava o conjunto de artes inspiradas pelas musas: a poesia, a música e a dança. Depois, mais particularmente, foi aplicada à arte dos sons. As possibilidades de ordenação dos sons são inúmeras, mas é possível definir os princípios que regem essas possibilidades. Esses princípios se aplicam universalmente em qualquer época, para qualquer instrumento, para qualquer gênero musical. Podemos encontrar três elementos comuns a toda forma musical, seja romântica, medieval, barroca, clássica, folclórica, sinfônica, polifônica, de câmara, sacra ou uma ópera. São eles:

Melodia - Harmonia – Ritmo

A Melodia

É a ária que se assovia, é o tema de uma sinfonia, de uma cantiga popular: identifica uma peça musical e a diferencia de outra. A melodia é a sucessão de sons cuja escrita linear constitui uma forma, é o arranjo particular das notas musicais. Além de ser uma série de sons organizados e agradáveis ao ouvido, a melodia produz também um efeito sobre a alma humana: ela exprime sentimentos, paixões; traduz um pensamento, expressa uma realidade ou um ideal; com algumas notas, a melodia evoca um ser querido, uma estação, ou o curso de um riacho. Desenvolve-se “horizontalmente” como um relato; cada uma das notas engendra outra nota. Pode fazer-nos rir ou chorar, amar ou odiar, crer ou desesperar, sonhar ou dançar. A melodia é a alma da música. Ela revela a genialidade ou manifesta a pobreza de um compositor.

“A paciência ou o estudo bastam para reunir sons agradáveis, mas a composição de uma bela melodia é obra de gênio. A verdade é que uma melodia bonita não necessita de ornamentações nem de acompanhamentos para agradar. Para saber se é realmente bonita, temos de cantar a melodia sem acompanhamento”, afirmava Joseph Haydn, cujas sinfonias transbordam grande riqueza melódica.

A melodia se dirige ao que o ser humano tem de superior: a inteligência, a nobreza da alma, o desejo de infinito, de felicidade como bem mostra Tolstoi[1]:

“Depois do jantar, Natacha, às instâncias do príncipe André, pô-se ao cravo e cantou. Enquanto conversava com as senhoras num vão de janela, Bolkonski a escutava. Calou-se bruscamente no meio duma frase, sentindo que lágrimas lhe subiam à garganta, coisa de que não se julgava capaz. Com os olhos fixos na cantora, experimentava uma emoção desconhecida, uma felicidade misturada de tristeza. Sem ter motivo algum para chorar, estava prestes a derramar lágrimas. Chorar o quê? O seu primeiro amor? A sua princesinha? As suas desilusões? As suas esperanças? Sim e não. Aquela vontade de chorar provinha sobretudo duma revelação que se fazia nela: a espantosa contradição entre o que sentia de infinitamente grande e de indeterminado no fundo de seu ser e o indivíduo estreito e corpóreo que ele próprio era – e que ela também era – acabava de surgir-lhe ao espírito. Eis o que causava ao mesmo tempo seu tormento e sua alegria enquanto Natacha cantava”.

A música é a arte que exerce maior impressão sobre o ser humano: ela sustém o soldado pronto a sacrificar a vida, eleva a Deus – o canto dos salmos, essencialmente melódico, fazia chorar Santo Agostinho– consola os aflitos, equilibra os temperamentos ou os abala violentamente. A música pode ser constituída por uma simples melodia: é o caso do canto gregoriano, de uma partita para violino de Bach, ou o toque de um clarim.

Em si, a melodia não necessita de um acompanhamento. Este acompanhamento poderá valorizá-la e enriquecê-la, mas nunca substituí-la.

Para introduzir a noção de harmonia tomemos como exemplo o primeiro prelúdio em Dó Maior do Cravo bem temperado de Johann Sebastian Bach: está constituído por uma série de acordes admiravelmente dispostos. Escutem em seguida o mesmo prelúdio utilizado como acompanhamento à Ave Maria composta por Gounod. Vocês poderão comprovar que a harmonia de Bach cede lugar à melodia de Gounod. Temos aqui algumas belas melodias de que nosso caro leitor pode tirar grande proveito:
 
- A Aria (da Suite para orquestra nº 3) de Bach;

- A Serenata D 957 nº4, de Schubert;
- O Kyrie gregoriano nº IV;
- O intróito “Resurrexi” da missa gregoriana de Páscoa;
- O Moteto “Laudate Dominum” de Mozart;
- O Adágio, dito de Albinoni.

A Harmonia

É o conjunto de princípios sobre os quais se baseia o emprego de sons simultâneos, a combinação das partes instrumentais ou das vozes; é a ciência, a teoria dos acordes e da simultaneidade dos sons. Um acorde é um som composto por várias notas: o acorde de Dó Maior, por exemplo, é composto pelas notas dó-mi-sol. Acompanhará a melodia, conformando-se a ela. Pode ser dissonante, de 7a, por exemplo: dó-mi-sib-dó, dando um tom diferente à melodia e nesse caso requer-se um acorde consonante como solução harmônica; um dó cantado sobre um acorde de dó maior não soará como um dó cantado sobre um acorde de dó 7a ou de dó menor. O compositor mudará os acordes em função daquilo que deseja evocar através da melodia.

O canto polifônico (Palestrina, Vittoria, de Lassus...), o contraponto, a arte da Fuga (J.S.Bach), a orquestração sinfônica (Beethoven, Mahler...) supõem um perfeito conhecimento das leis da harmonia. Ela oferece menos liberdade do que a melodia, da qual é serva. Se a harmonia emancipa-se e é exacerbada, a pureza melódica ficará prejudicada. Isso não significa que a harmonia seja algo elementar. Ao contrário, pode ser muito complexa, mas em si não é absolutamente necessária à melodia: o canto gregoriano, tão apreciado pelos grandes músicos[2], é cantado em princípio a capella, isto é, sem acompanhamento do órgão.

A harmonia toca o homem em suas sensações, seus sentimentos, sua sensibilidade, seu coração.

Une-se à melodia, eleva-a, deixa-a mais precisa, dá-lhe nuances como o brilho de um diamante ou a neve no cume de altas montanhas. Um acorde Maior dá à melodia um tom, um clima particular, e um acorde menor pinta-a de outra cor, cada um deles atuando de modo distinto sobre os sentimentos. O primeiro, manifestando plenitude, o outro, certa melancolia... É a vestimenta, a decoração da melodia.

Etimologicamente, harmonia vem de uma palavra grega que significa “conjunto”, “junção simultânea”: a harmonia é arte de juntar, de combinar sons, em função de uma linha melódica. É possível que um compositor escreva uma sucessão harmônica com uma linha melódica em 2º plano: é o caso da polifonia e de composições de estudo ou de exercício, como o 1o prelúdio do “Cravo bem temperado” que Bach compôs para seus alunos. Gounod, como dissemos acima, utilizou o prelúdio como acompanhamento para sua “Ave Maria”: a melodia e a harmonia se enriquecem reciprocamente, mas a primeira domina e a segunda se apaga. A harmonia será tão melhor quanto menos se impor, ocupando seu lugar de modo preciso e discreto.

Um orador que faça uso da arte do discurso apenas para fazer-se notar e não para expressar idéias, torna-se pedante, seu discurso é vazio. Ele canta mais do que fala, e faz de si mesmo o fim do discurso. Da mesma forma, uma harmonia desmedida que queira atrair excessivamente a atenção sobre si, transforma a música num sentimentalismo vão ou uma fanfarronice. Uma harmonia pobre e repetitiva também reduz a música numa série enjoativa de acordes que “giram em círculo”.

Nada mais desagradável, por exemplo, do que um organista que utiliza uma composição gregoriana para fazer ouvir seu próprio acompanhamento; é um contra-senso musical: a melodia não ocupa mais o 1o lugar, é traída pela harmonia que deveria servi-la. Os sentimentos do organista, insuflados por suas pretensões musicais, asfixiam a pureza melódica e tiram dela seu conteúdo.

É esse mesmo erro que caracteriza as músicas da moda, cujas melodias, contrariamente ao exemplo precedente, são de extrema pobreza. Para compensar tal pobreza, o acompanhamento dessas melodias é sobrecarregado de todo tipo de efeitos, não só harmônicos, como também vocais, instrumentais, rítmicos considerados “legalzões” comercialmente, sem dúvida, musicalmente, não. A maior parte dos êxitos de Johnny Hallyday, por exemplo, ilustram isto.

Além do mais, é sintomático que esses sucessos da moda sejam passageiros, enquanto que as grandes obras musicais atravessam os séculos, imutáveis.

O tempo é também, a posteriori, um critério de beleza.

Eis aqui algumas obras de grande beleza harmônica:

- A “Missa em si menor” de J.S.Bach;
- O “Miserere” de Allegri;
- A “Fantasia em sol maior” para órgão de J.S.Bach;
- O 2º movimento da “Sinfonia inacabada” de Schubert.

O ritmo
 
O ritmo dá uma estrutura à melodia. A frase melódica se desenvolveu segundo a cadência imposta pelo compositor. A Für Elise de Beethoven ou um Noturno de Chopin, interpretados a ritmo de valsa ou de bolero tornam-se praticamente irreconhecíveis. Consideraremos aqui o ritmo compassado regular, em dois tempos (marcha), três tempos (valsa), quatro tempos, etc.
 
O caso do canto gregoriano, em que o ritmo não é cadenciado, tem de ser considerado à parte: suas linhas melódicas se desenvolvem por sucessões de “arsis” (impulsos) e de “tesis” (descansos), em função do sentido do texto e do acento da palavra em latim. Esse ritmo particular, que nenhum metrônomo pode medir, é a imagem da oração, “a elevação da alma a Deus[3] seguida de seu descanso em Deus; a quironomia[4] do canto gregoriano, sendo tão precisa como a regência clássica, não é menos “imaterial e flexível”[5].
 
Mas, seja neste caso ou no da música clássica em amplo sentido, aplica-se a afirmação de ritmo dada por Platão, “ordem do movimento[7].
 
Evidentemente, o ritmo em si não é uma coisa má! Certamente, o quadro rítmico constitui um limite imposto à linha melódica; mas esse limite não é uma camisa de força, é um contexto no qual a música pode desenvolver-se em infinitas possibilidades. A escolha de ritmos é abundante: eis aqui apenas as danças mais conhecidas que inspiraram numerosos músicos: chacona bourrée, allemande, zarabanda, gavota siciliana, minueto, polaca, mazurca, valsa, polca, etc.
 
A natureza que nos cerca está cheia de ritmos: as estações, as batidas do coração, o golpe dos cavalos, o canto dos pássaros, as ondas do mar, o sussurro do vento, a órbita dos planetas no espaço... obedecem a ritmos presentes na criação. Embora esses ritmos não sejam estritamente periódicos, mesmo quando muitos são de uma impressionante regularidade como as batidas do coração (graças a Deus!), inscrevem-se, quaisquer que sejam, na imensa “ordem dos movimentos” da qual o Criador é o 1º Motor. Constituem um elemento importante na ordem e beleza da Criação.
 
Os ritmos da música participam de certa maneira dos da Criação, assim como as cores das harmonias refletem sua beleza. A melodia, ainda mais elevada, nasceu analogicamente do músico como a Criação nasceu do pensamento de Deus. É o traço de um desenho, a linha de uma escultura.
 
O artista recebeu do criador o dom de produzir “beleza”.
 
Em música, o ritmo, assim como a harmonia, acompanha, estrutura a melodia. Mas, diferentemente da harmonia, o ritmo dirige-se ao homem em sua parte inferior, na parte corporal de seu ser. Seu corpo é movido pelo ritmo que o faz dançar, aplaudir, marchar, vibrar ou ao menos mexer os pés compassadamente. Utilizado além da medida o ritmo afogará a melodia e a harmonia. Se for violento, destruirá a melodia e a harmonia. Beethoven, em sua sonata “Appassionata”, ou em sua 5ª sinfonia, imprime tal poder ao ritmo que, de certo modo, às vezes, se apropria da melodia. O ritmo passa de estrutura subjacente a princípio ativo. O gênio de Beethoven, nessa luta que é a expressão de seu próprio combate interior, soube fazer triunfar a grandeza de sua melodia e de seus jogos harmônicos sobre um ritmo devastador. Esse combate íntimo de Beethoven não é o mesmo combate que opõe a ordem do Antigo Regime aos princípios da Revolução Francesa? A vida desse grande músico, precursor do romantismo, situa-se entre dois mundos: a ordem moral e social de acordo com o plano de Deus e a sublevação dessa ordem pela revolução.
 
Uma pequena nota: nossos jovens que solicitam o ritmo e que não vão buscá-lo no que há de melhor, deveriam ouvir Beethoven, ou o Bolero de Ravel, ou Tchaikovsky, Rimsky Korsakov, Liszt, e uma simples peça como “A dança do sabre” de Khatchaturian... Eles não ficariam decepcionados”!
 
Outros compositores como Vivaldi, Bach (ouvir sua “Aria”, da suíte para orquestra nº 3), Haendel, Pergolesi, Albinoni (ouvir o famoso “Adagio” a ele atribuido), Mozart (ouvir seu moteto “Laudate Dominum”) em que o ritmo permanece em seu lugar como uma simples e discreta estrutura da melodia, sem chegar às explosões de Beethoven. A melodia e a harmonia dominam a tal ponto que nos fazem esquecer o tempo. Como o filósofo ou o poeta que, passeando pelo campo, tão absorto em suas reflexões, não percebe o tempo que passa ou a distância percorrida. Na boa música, o ouvinte se sente pacificado precisamente porque esses três elementos – melodia, harmonia, ritmo – ocupam cada um seu devido lugar em perfeita conformidade com a natureza humana: alma (inteligência e vontade), coração (sensibilidade), corpo.
 
Assim, realiza-se o adágio: “A música suaviza os costumes”, eleva a alma, enobrece os sentimentos e ordena as paixões.
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------
1 “Guerra e Paz”, Livro II, cap. 19
2 Mozart teria modificado toda sua obra pela honra de ter composto o canto do prefácio da Missa. Beethoven escreveu: “Para escrever uma verdadeira música religiosa, estudem os antigos salmos e cantos católicos em sua verdadeira prosódia”. Gounod explicitou em seu testamento sua vontade de ter somente canto gregoriano em suas exéquias.
3 “Elevatio mentis a Deum” – Santo Tomás de Aquino, In psalmos, proemium.
4 A arte de dirigir um coro com as manos (“kiros”, em grego: mão)
5 J. Coudray –“ Méthode de Chant Grégorien d’aprés les principes de Solesmes”, pág 164.
6 “Das Leis”, II, 1.

LABOUCHE, Pe. Bertrand. Bach e Pink Floyd.

E-book: Atitudes Éticas Fundamentais - Dietrich Von Hildebrand

Disponibilizo o livro do filósofo católico Dietrich Von Hildebrand. Se chama "Atitudes Éticas Fundamentais". Embora pequeno, é muito bom. Recomendo.. Podem baixá-lo pelo link abaixo:

http://www.4shared.com/file/176123601/7a28eb7f/Atitudes_ticas_Fundamentais_-_.html

Pax et Bonum

Fábio.

Aprofundamento do tema de quarta: A questão do sábado


Durante muito tempo, todos aqueles que se propunham seguir a Deus tinham a estrita obrigação de observar o sábado, o shabat, o descanso do sétimo dia. Deus mesmo o expressara a partir de várias determinações impostas ao seu povo. Depois, com o advento do cristianismo, passamos a guardar o domingo, dia do Senhor (dies Domini). Para muitos, porém, esta passagem parece estranha. Hoje ainda há quem continue com dúvidas a este respeito. Os hereges adventistas, que observam o sábado, e não o domingo, têm disseminado seus “ensinamentos” com não poucos prejuízos para os incautos, e muitos católicos que têm ouvido seus discursos falaciosos têm ficado com um pé atrás. Em virtude disto, nos detenhamos um pouco nestas questões.

Primeiramente, notemos que a observância sabática se fundamentava na autoridade do próprio Deus e isto, obviamente, já é um grande motivo, ou melhor, o maior, para se tratar a questão com o máximo rigor. Aquele que transgredia esta lei deveria ser punido até com a morte (Ex 31,15b). A coisa fica ainda mais difícil se considerarmos o que Jesus diz: “passará o céu e a terra antes que desapareça um jota, um traço da lei” (Mt 5,18). Ora, “trocar” o sábado pelo domingo não é mais que retirar um jota? Afinal, se alguém que transgredia o descanso sagrado merecia a morte, isto dá provas da seriedade deste ponto da Torá. Como então legitimar esta mudança? Não seria isto tudo uma prova irrefutável de que o sábado deveria ser perpetuado e de que a Igreja, passando a observar o domingo, havia traído a lei, apostatado de um ensinamento tão sagrado e, por isto, teria ela mesma se afastado de Deus? Não, não, não... Vejamos por que...

Primeiramente, não devemos pensar que o significado sabático se encerra estritamente no dia em si; ele vai mais além, e por diferentes razões.

1- O sábado está intimamente associado à criação do mundo, pois a tradição bíblica afirma que Deus descansou neste dia, após criar tudo o que há (Gn 2,2). Por isto, a observância do sábado - como o explica o judeu Jacob Neusner, citado por sua santidade Bento XVI em seu livro “Jesus de Nazaré” - é uma espécie de imitação de Deus. O homem é chamado a imitar a divindade no seu descanso e isto faz referência à própria vocação do homem, enquanto ser amado por Deus e chamado a participar da sua vida íntima. S. Pedro Julião Eymard afirmava que o amor faz imitar, o amor configura uma vida à outra, a do amante à do amado. Portanto, por trás do cumprimento do descanso sagrado, estava a imitação de Deus, caminho percorrido por todos os que O amam. Na seriedade deste dever, percebe-se quão grave é a necessidade de consagrar o próprio tempo a Deus. Ao fazê-lo, o homem declara que todos os seus interesses próprios são, na verdade, secundários; é o cumprimento prático do primeiro mandamento: neste dia, todos os compromissos naturais do homem cedem lugar àquele que é a razão primeira e fim último da sua vida: Deus. Na observância do primeiro mandamento, os demais também são cumpridos, pois estes são como desdobramentos e conseqüências daquele. Isto o ensina S. João da Cruz ao orientar toda a sua sistemática mística sobre o fundamento do amor a Deus sobre todas as coisas.

Depois, como a própria etimologia do termo sugere, (Shabat, do hebraico shabãt: descanso, inatividade, cessação) o sábado não apenas exige, mas permite que os homens descansem e, nesta dimensão, faz reconhecer, não apenas o amor dos homens a Deus, mas, antes o cuidado e zelo de Deus ao homem. É, pois, uma via recíproca de amor.

2 - Além destes aspectos, há um outro, por vezes não tão observado: o sábado possuía um forte significado de ordenamento social. Neste dia, toda a família era reunida em casa e isto permitia que ela, submetendo-se a um mesmo teto e, mais que isto, a um mesmo ideal, mantivesse sua força e estabilidade. Interessante que os antigos judeus fazem muita referência a este aspecto familiar. Costumam dizer: “o Deus de nossos pais” (Dt 26,7; 1 Cr 12,17...), o Deus de “Abraão, Isaac e Jacó” (Ex 3,16). Este caráter da descendência era-lhes muito importante; todo o Israel se reconhecia como descendente de uma mesma linhagem. Portanto, mexer no sábado era também ameaçar esta ordem que fora possível estabelecer pela observância do sétimo dia, ordem que existia como resultado da obediência a um preceito divino. Compreendemos, então, a gravidade da transgressão de uma tal lei. Não à toa também os judeus estranhavam as atitudes de Jesus que parecia mover-se, nestes campos tão rígidos, com uma espontaneidade suspeita. Por várias vezes o acusaram de desobedecer este preceito (Mt 12,2). A estes ataques, Jesus costumava responder com exemplos básicos, mas que punha os seus inimigos contra a parede (Mt 12,5; Mt 12,11-12). Dizia ainda que “o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2,27), isto é, não se tratava de fazer o homem escravo do sábado, mas, ao contrário, de libertá-lo a partir da sua correta compreensão. Além disto, Jesus diz também que é Senhor do Sábado (Mc 2,28) e, com isto, faz entender que está acima dele e possui toda a liberdade. Dessa forma, Ele, que é Senhor, pode ensinar a verdade sobre este dever, e o faz aprofundando o entendimento dos seus discípulos a este respeito.

Jesus, de fato, afirmou que não veio revogar a lei, isto é, não a veio destruir como se fosse algo inútil; mas diz também que veio aperfeiçoar (Cf Mt 5,17) e tal aperfeiçoamento se torna mais claro, na sua natureza, com os exemplos que o próprio Cristo traz: “foi dito: não matarás; aquele, porém, que odeia o seu irmão, é réu de assassinato; foi dito: não adulterarás; eu, porém, vos digo que quem olha uma mulher com desejo, já adulterou no seu coração” (Cf Mt 5, 21-28). Aquilo que antes corria o risco de reduzir-se a uma prática meramente exterior, a um formalismo, agora assume uma total vitalidade e fluidez. Da mesma forma, o sábado aqui aparece em seu real sentido, em seu significado mais profundo; é revelada a sua substância. Revogação e aperfeiçoamento são, ambos, mudanças, mas totalmente distintas uma da outra. Na revogação, temos a extinção de algo e sua substituição por outro, ou seja, trata-se aqui de uma mudança substancial. No aperfeiçoamento, porém, a mudança se dá no ser que permanece e o que acontece não é uma extinção, mas uma atualização de um certo potencial que já existia. Podemos, então, compreender da seguinte forma: revogação seria mudança de ser, enquanto que aperfeiçoamento seria mudança no ser. Com isto, é possível dizer que a perfeição da prática sabática estava, de certa forma, já latente na própria lei. Jesus a aperfeiçoa. Portanto, a mudança, desde que entendida da segunda forma, é sim legítima e não contradiz a própria irrevogabilidade do que está escrito.

Observemos, agora, como ficam estes significados profundos, intrincados na “teologia sabática”, a partir de Jesus.

1- Primeiramente, em se tratando da imitação de Deus, desde que se reconheça a divindade de Nosso Senhor, torna-se mais fácil imitá-Lo, pois Ele veio a nós. S. João escreve na sua carta:

“O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos olhos, o que temos contemplado e as nossas mãos têm apalpado no tocante ao Verbo da vida – porque a vida se manifestou, e nós a temos visto” (IJo 1,1-2).

Este contato com o próprio Deus permite que o seu servo O imite de uma forma muito mais perfeita do que apenas observando o dia de sábado. É o que nos recomendam os santos, pedindo-nos meditar a vida de Cristo afim de sabermos imitá-Lo.

2- Com relação ao descanso, Jacob Neusner nota uma relação curiosa; ele traz o texto em que Jesus diz: “vinde a mim todos vós que estais cansados, e eu vos aliviarei(Mt 11,28). Descartando uma interpretação liberal e cômoda, o escritor judeu reconhece nesta frase de Jesus um nível altamente teológico. Enquanto, antes, o descanso era dado pelo dia de sábado, agora, de uma forma superior, Jesus mesmo será o descanso, o shabat; Ele é o cuidado de Deus mais próximo e mais imediato, uma expressão maior do amor divino, pois Ele mesmo é Deus. Fica claro, pois, que Jesus se põe no lugar do sábado e nada mais legítimo a quem seja o seu Senhor.

3- Tratemos agora do significado social a partir de Jesus. Este é um ponto particularmente difícil, pois o discurso de Nosso Senhor, aparentemente, ia de encontro àquilo que os judeus seguiam como ordem expressa de Deus. Enquanto os laços familiares apareciam como de suma importância, Jesus começa a dizer coisas do tipo: “quem ama seu pai e sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim” (Mt 10,37); ao rapaz que pediu a Jesus permissão de ir enterrar o pai antes de seguí-Lo, Nosso Senhor pede que ele deixe que os mortos enterrem seus mortos (Mt 8,22). Ora, mas isto não contraria frontalmente o mandamento de honrar pai e mãe? Como poderia Ele afirmar-se Filho de Deus e, ao mesmo tempo, instaurar uma tal tensão com relação àquilo que era preceito divino?

Os laços imediatos de consangüinidade, em Jesus, embora absolutamente não percam valor, cedem lugar para outros de maior excelência: os laços de parentesco espiritual. Este parentesco se fundamenta em algo muito claro: a realização da vontade divina. Ao desejar e praticar a vontade do Pai, os homens passam a participar de uma irmandade mais abrangente e de laços mais firmes; na verdade, inquebráveis. E é justamente isto o que Jesus diz: “Aquele que faz a vontade de meu Pai, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,50). Ora, o próprio Cristo viveu isto intensamente; já aos 12 anos estava no templo com os doutores da lei e interrogado por sua Mãe sobre o motivo porque tinha lá ficado, respondeu com uma maturidade e uma firmeza dignas de Quem é: “devo ocupar-me das coisas do meu Pai” (Lc 2,49). Já na vida adulta, quando os Apóstolos Lhe traziam comida, Ele respondia: “meu alimento é fazer a vontade de meu Pai” (Jo 4,34). Esta família, fundamentada na prática da vontade divina, corresponde, inclusive, de forma perfeita, à promessa de que o mundo conheceria o Deus de Israel e O adoraria. Pela própria natureza, a prática da vontade divina eleva-se a um nível universal e o Jesus, que antes se restringia apenas às ovelhas de Israel (Mt 15,24), agora ordena que os Apóstolos percorram os quatro cantos do mundo e anunciem o Evangelho a todos os povos. (Mc 16,15).

Um outro incômodo para os judeus residia no fato de que, ao se colocar no lugar do sábado, Jesus também como que substituía o “Israel” por aqueles que lhe seguiam, isto é, os Apóstolos que, mais tarde, formarão a Igreja, o novo Israel. Se a ordem social judaica se fundamentava a partir do sábado, agora, fundamentada em Jesus, surgia uma nova ordem, mais estável, pois era ligação íntima como o próprio Ordenador. Lembremos que Jesus, na oração do Pai-Nosso, associa a vinda do Reino do Pai com o fato de a sua vontade ser feita. Na verdade, pra Jesus esta vontade é o que há de mais precioso; por ela, Ele dará a vida. Ora, o Reino de Deus é o Céu; portanto, o Céu se reconhece quando a vontade divina se faz. Eis a verdadeira terra prometida. A promessa feita a Abraão agora, enfim, toma uma forma mais definida e já se vislumbra. Eis a profundidade do significado do “dia santo” que Jesus, substituindo-o por Si mesmo, vem mostrar em toda a sua luz.

Por fim, dissemos no início deste texto (que já vai longo), que o sábado está diretamente relacionado ao tema da criação. Sabemos que a criação se corrompeu pelo pecado de Adão. Por causa disto, como nos diz o livro do Gêneses, até a “terra foi maldita” (Gn 3,17). Desde então, a Sagrada Escritura inicia uma série de promessas da vinda de um Salvador que reconciliaria os homens com Deus e regenaria a criação. Ora, este Salvador é Nosso Senhor Jesus Cristo a quem S. Paulo chamou de “Novo Adão” (ICor 15,45). E por que “Novo Adão”? Adão foi o primeiro homem na ordem da natureza. Cristo será o primeiro homem na ordem da Graça. Desta forma, Ele reinaugura a criação, originando uma nova, recapitulando tudo o que há. Portanto, para uma nova criação, também um novo dia. Jesus ressuscita justamente no domingo, o primeiro dia da nova criação, e os cristãos, desde então, passarão a observar o domingo, conforme expresso no livro dos Atos: “no primeiro dia da semana, eles se reuniam para a fração do pão” (Cf At 20,7).

O próprio Paulo, que conhecia bem a lei, pois já fora fariseu, adverte aos seus que não se preocupem mais com estas questões de lua, de carnes ou de sábados, porque tudo isto não é mais que mera sombra do que havia de vir; a verdade, agora, é Cristo (Cl 2,16-17).

Compreendendo, pois, a natureza desta passagem do sábado para o domingo, ao mesmo tempo em que podemos ficar confiantes quanto à observância do primeiro dia da semana, também nos sentimos impelidos a uma maior seriedade com respeito ao Dia do Senhor. Será que, de fato, temos observado esta prescrição como um mandamento, ou temos a tratado com solene desprezo? Será que o rigoroso cuidado dos hereges motivado por uma falsa compreensão do preceito divino não nos envergonha em nossa negligência em face da verdade?

Que Maria Santíssima nos ensine a ser bons cristãos.

Que assim seja.

Fraternalmente

Fábio.

Coordenação do "Anjos de Adoração"



Caríssimos, no próximo sábado estaremos realizando a eleição para coordenação do Grupo de Resgate Anjos de Adoração - GRAA. O escolhido estará à frente do grupo por dois anos. Em caso de empate, o pároco é quem decidirá. Por isto, vimos pedir aos leitores e amigos que rezem por nós, para que tudo seja feito segundo a vontade de Nosso Senhor, pela interceção poderosa de Maria Santíssima.

Pax et Bonum.

Grupo de Resgate Anjos de Adoração - GRAA

A universalidade como critério da verdadeira música sacra



Hoje em dia as nossas paróquias estão cheias de todo tipo de estilo musical, desde as músicas mais adocicadas até as mais frenéticas. Interessante notar que a explicação para um tal sincretismo de formas musicais busca se fundamentar numa posição ortodoxa: a obediência a um texto do Magistério. Sob o nome de "inculturação", os pouco profundos na reflexão ou, Deus nos livre, as pessoas de má fé, passam a distorcer aquilo que é um tesouro: a tradição musical católica. Abandonam o gregoriano, as polifonias se escassam, o latim é expulso como se fosse um intruso... e tudo em nome da dita "inculturação".

Esta conversa do "tudo pode" como possível interpretação da proposta da Igreja com referência a este texto conciliar nos aparece, aqui, facilmente como um sofisma.. mas a nossa sociedade atual é muito sensível ao sofisma; fraca de reflexão, basta que algo pareça verdade para ser considerado como tal; basta que algo brilhe para que seja tido como ouro. Ficou muito fácil enganar...

O que esquecem, porém, ou melhor, o que ignoram (este termo é melhor porque possui dupla conotação: a de quem realmente esquece, e a de quem volutariamente despreza) é que a mesma Igreja, no mesmo documento, reforça que a verdadeira música litúrgica deve ter como critério a universalidade; e o que será isso? Antes de tratarmos deste assunto, lembremos ainda que se fala em "beleza e bondade das formas". Ora, a beleza é algo mais óbvio, pois a música é uma forma de arte e, como tal, tem por campo a manifestação do belo. Mas... bondade? Então, quer dizer que uma forma musical, isto é, a estrutura de uma música, pode ser boa ou má? Pode sim. Vejamos...

Falando primeiramente sobre a universalidade, por este termo entende-se aquilo que possa se dar em qualquer lugar e a qualquer tempo. Algo que se destinasse apenas a um lugar e tempo determinados estaria no campo do meramente cultural e poderia reduzir-se a um simplório regionalismo. Infelizmente, pela fraqueza da catequese que é oferecida hoje em dia, é exatamente assim que muitos católicos consideram a tradição musical da Igreja, bem como tantas outras riquezas que foram postas de lado: são coisas provenientes de uma cultura que não pode pretender impor-se a todas as outras. Segundo este ponto de vista, parece realmente arbitrário e insuportável aos olhos modernos aquilo que foi dito por S. Pio X e reafirmado por Pio XII, por Paulo VI e por João Paulo II como regra geral para a verdadeira música sacra:

«Uma composição para a Igreja é tanto sacra e litúrgica quanto mais se aproximar, no andamento, na inspiração e no sabor, da melodia gregoriana, e tanto menos é digna do templo, quanto mais se reconhece disforme daquele modelo supremo».

Se se reconhece o canto gregoriano como uma manifestação simplesmente cultural, então, realmente, a Igreja iria contra a universalidade ao querer impô-la às demais culturas e ao pretender perpetuá-la como "modelo supremo". O problema é que muitos param neste sofisma e se contentam com ele, ao invés de, em coerência com a dúvida que lhes impele, buscar uma resposta da mesma Igreja para esta questão.

Já foi dito que toda arte é a "transcrição simbólica" de uma filosofia, isto é, de uma forma de pensar. A filosofia, naturalmente, interessa-se pela verdade. Aqui, portanto, percebemos uma relação íntima entre o belo, objeto da arte, e a verdade, objeto da filosofia. Ora, se a verdade é objetiva, e a Igreja assim concebe, então o belo também possui um critério objetivo para ser belo. Dias atrás, justamente na véspera em que ia dar formação aos músicos e andava meio receoso, já bem de noite, passava num canal da TV um documentário ou programa científico (algo assim) onde se argumentava justamente isto: a beleza tem um fator objetivo. Consideramos belo algo que seja harmonioso nas suas formas e nas suas proporções. Não à toa, na Grécia Antiga, era costume ensinar-se música juntamente com matemática.

Se assim é, como, então, se explica a divergência tão comum dos gostos? Assim como devemos ser educados para a verdade, da mesma forma devemos ser educados para a apreciação do verdadeiramente belo. É preciso, porém, esclarecer que, naturalmente, já nos inclinamos, tanto para a verdade, quanto para a beleza; No entanto, devemos orientar bem esta inclinação a fim de que saibamos, de fato, apreciar o belo e rejeitar o não-belo, sem nos deixarmos enganar. Hoje em dia, muitos tomam por belo unicamente aquilo que atrai os sentidos, que satisfaz a sensualidade; da mesma forma, muitos tomam por verdadeiro simplesmente aquilo que, numa primeira olhadela, parece sê-lo.

A filosofia católica, tendo seu expoente no doutor comum, Sto Tomás de Aquino, ensina Deus criou todas as coisas com ordem. Ora, a ordem requer uma certa desigualdade nos entes, o que permite que sejam organizados hierarquicamente de modo que um se suceda ao outro, o que imprime ao todo a sua harmonia. Dissemos que é pela harmonia que algo é belo. Então é belo o que é ordenado. Para que haja ordem, conforme dissemos, forçoso é que algo menos excelente se submeta a algo mais excelente, numa gradação que se estabelece a partir de uma reta disposição dos elementos, segundo o seu grau de excelência. Sendo Deus a causa e o fim, o alfa e o ômega, tudo deve ordenar-se para Ele. Também a música, proveniente desta filosofia, deve buscar ordenar-se ao seu fim que é, primeiramente, a glória de Deus, e depois, a santificação das almas. Deve, portanto, ser sóbria e manifestar esta ordem da criação, imitando, na sua estrutura, a ordem que Deus imprimiu em todas as coisas. É assim que a música se torna santa, não apenas na sua letra, mas também na sua forma e, sendo santa, é também bela e boa. Daí, a "bondade e beleza das formas".

Uma música outra que, ao invés, desordene, isto é, inverta a ordem, pondo algo menos excelente acima de algo mais excelente, é má, pois se opõe a Deus. Por este motivo, bem poderíamos chamá-la diabólica, pois instaura uma cisão, uma divisão, entre a criatura e Deus, rompendo a "ponte" harmônica que lhe permitia a ascensão. É a revolta de Adão que usurpa o direito divino e põe-se como fim, ferindo, desta forma, a sua própria natureza e impedindo a sua realização natural e espiritual.

Ora, o canto gregoriano é como que a sonorização desta "filosofia da ordem" e da verdade. Da verdade porque, para estabelecer uma reta hierarquia, é necessário considerar a verdade objetiva de cada coisa. Neste sentido, considerando que a verdade nunca é histórica e cultural, mas sempre universal, tal qual 2+2= 4 em qualquer cultura, assim também aquilo que é objetivamente bom e belo permanece o sendo, pois estes são atributos igualmente universais e imutáveis já que provêm de Deus e culminam nEle mesmo, que é imutável. Assim, o canto gregoriano pode, com todo direito, elevar-se ao nível da universalidade, pois corresponde ao que o homem é em todo tempo e lugar, e está de tal forma disposto que, além de imitar a Deus na sua ordem e, por isto, lhe render glória, é também expressão de uma alma igualmente ordenada e pode vir a provocar esta mesma ordem nas almas que dela ainda não participam.

Como, pois, compreender o sentido da inculturação? Agora já nos é possível entender que ela não pode referir-se unicamente ao regionalismo de que falamos anteriormente e que é totalmente incoerente com a proposta universal da Igreja. Aceitar que a música poderia ser de qualquer forma, segundo o lugar, seria negar-lhe uma matriz, um objetivo definido e, talvez, até reputá-la por dispensável. Considero que o termo "inculturação" não é feliz pois abre margem a tantas interpretações errôneas. Além disto, no próprio texto do Concílio, tal determinação não vem acompanhada dos esclarecimentos de todas a problemática que este termo evoca. Mas creio, neste amplo conjunto, estarmos já em condições de compreender um pouco melhor estas coisas.

Por inculturação deve-se entender o esforço por incorporar na tradição musical da Igreja os elementos de outras culturas que não destoem da natureza da música sacra, que não atentem contra esta e que, ao contrário, talvez a possam enfatizar. Portanto, devem também favorecer uma reta compreensão do homem, do mundo, devem ter a bondade e beleza das formas, e devem ter a universalidade como um de seus atributos. Em boa linguagem tomista, poderíamos dizer que as mudanças com relação à música sacra devem limitar-se a um nível acidental, mantendo-lhe a substância. Estes requisitos, naturalmente, deveriam nos aproximar do "andamento, inspiração e sabor" do canto gregoriano.

Porém, o grande afastamento desta rica tradição católica, a inclusão de ritmos totalmente incovenientes no Santo Sacrifício do Senhor, junto com letras sentimentalóides e, às vezes, heréticas; tudo isto denuncia fortemente que a proposta da Igreja foi muito mal interpretada. Não obstante, há muitos que querem que fique assim mesmo, pois assim é mais cômodo. A nós, porém, católicos apostólicos romanos, fiéis ao Papa e à Tradição da Santa Igreja, é exigida outra posição. Lutemos pela retidão da liturgia, pela retidão dos costumes, pela pureza, bondade, beleza e verdade da música sacra, tesouro de inestimável valor, componente importantíssimo da celebração do Santo Sacrifício do Senhor.

Fábio.


Dica de site - música sacra

Sei que muitos já devem conhecer, mas aos que ainda não, e que quiserem passar o dia ou, ao menos, algum tempo a escutar a boa música sacra, dê uma visita aí neste site que vos indico.

Choral Treasure

Pax et bonum..

Músicas Sanjuanistas - Frei Marcos Matsubara, OCD.

Onde é que te escondeste?


Chama de amor viva

Canções entre a alma e o Esposo (Excertos) - S. João da Cruz


Imagem: S. Bernardo de Claraval e Jesus

Quem poderá curar-me?!
Acaba de entregar-te já deveras;
Não queiras enviar-me
Mais mensageiro algum,
Pois não sabem dizer-me o que desejo.

E todos quanto vagam,
De ti me vão mil graças relatando,
E todos mais me chagam;
E deixa-me morrendo
Um "não sei quê", que ficam balbuciando.

Mas como perseveras,
Ó vida, não vivendo onde já vives?
Se fazem com que morras
As flechas que recebes
Daquilo que do Amado em ti concebes?

Por que, pois, hás chagado
Este meu coração, o não saraste?
E, já que mo hás roubado,
Por que assim o deixaste
E não tomas o roubo que roubaste?

Extingue os meus anseios,
Porque ninguém os pode desfazer;
E vejam-te meus olhos,
Pois deles és a luz,
E para ti somente os quero ter.

(...)
Na interior adega
Do Amado meu, bebi; quando saía,
Por toda aquela várzea
Já nada mais sabia,
E o rebanho perdi que antes seguia.

Ali me abriu seu peito
E ciência me ensinou mui deleitosa;
E a ele, em dom perfeito,
Me dei, sem deixar coisa,
E então lhe prometi ser sua esposa.

Minha alma se há votado,
Com meu cabedal todo, a seu serviço;
Já não guardo mais gado,
Nem mais tenho outro ofício,
Que só amar é já meu exercício.

Se agora, em meio à praça,
Já não for mais eu vista, nem achada,
Direis que me hei perdido
E, andando enamorada,
Perdidiça me fiz e fui ganhada.

De flores e esmeraldas,
Pelas frescas manhãs bem escolhidas,
Faremos as grinaldas
Em teu amor floridas,
E num cabelo meu entretecidas.

(...)
Quando tu me fitavas,
Teus olhos sua graça me infundiam;
E assim me sobreamavas,
E nisso mereciam
Meus olhos adorar o que em ti viam.

Não queiras desprezar-me,
Porque, se cor trigueira em mim achaste,
Já podes ver-me agora,
Pois, desde que me olhaste,
A graça e a formosura em mim deixaste.

São João da Cruz,
Poesias, Obras Completas.

14 de Dezembro, dia de São João da Cruz - Os santos morrem de amor...



Perguntamo-nos muitas vezes sem obter a resposta que esperamos: como morrem os santos? "Como se vive, assim se morre", diz o dito popular, condensando em uma simples frase a vida e a morte. Justamente porque sabemos que a morte é o resumo de toda uma vida, nos desperta a curiosidade a morte dos santos. Quando lhes é comunicado o aproximar-se do momento e se começa a contagem regressiva, sentem-se tão felizes como diante de um anúncio de festa; adquirem uma serenidade toda nova, revelada pela luminosidade e a paz difunde-se no rosto. O salmista também nos diz que a morte dos justos é preciosa aos olhos de Deus. Mas, efetivamente, como é?

Frei João (da Cruz) afirma, na prática, que para a alma chegada ao estado de união transformante, há pouca diferença entre a visõ beatífica e a experiência que se faz de Deus nesta vida, especialmente quando a Divindade se faz sentir um pouco mais. O santo diz que se "prova, com efeito, alto sabor de vida eterna" (Cha 2,20); recorda, ainda uma vez, a inefabilidade do acontecimento e nos faz compreender que se trata de uma experiência toda pessoal, porque "a linguagem própria (para falar destas coisas) é aquela de somente entender dentro de si, e sentir, calando e gozando quem as recebe" (Cha 2,20).

Podemos pensar, então, que a morte de um santo que tenha, como ele, atingido um grau assim tão elevado de união é simplesmente a passagem de um grau de visão para outro mais alto e mais perfeito, mas que, substancialmente, é a mesma coisa.

O fato de receber faíscas de vida eterna põe evidentemente na alma a ânsia da totalidade e da permanência. É o que frei João afirma na Chama: "Acaba já, se queres", e comenta: "...acaba de consumar perfeitamente comigo o matrimônio espiritual por meio da tua visão beatífica" (Chb 1,27). A alma, achando-se ainda no corpo, deseja ardentemente a perfeição da caridade com a visão da glória (cfr. Chb 2,35). Agora o véu que a separa da visão se torna sempre mais sutil, transparente como o cristal puro, inconsistente e, deixando entrever algo que vai além, a consome no grande desejo de ver Deus sem ter os olhos encobertos e de amá-lo sem medidas.

A morte, então, não é uma chama que se apaga por completo; é, ao contrário, um fogo que incendeia totalmente a alma e a arranca do corpo, definitivamente.

Neste sentido - e é o verdadeiro - a morte é causada pela vida, isto é, pelo amor.

Os ardentes sentimentos do coração perdem a sua impaciência e se recostam sobre a vontade de Deus com abandono e suavidade. É esta também a razão pela qual a alma pede, em humilde oração, que se rompa "a tela" delgada de sua vida, sem deixar, assim, "chegar até ser cortada de modo natural pela idade" a fim de que possa "amar desde logo com a plenitude e fartura que deseja" (Chb 2,36).

Não é para se admirar que o amor, tornando-se mais forte, mais profundo, mais transformante, enfraqueça as resistências da matéria e, com ímpetos sempre mais decididos e mais plenos de vida eterna, um dia, acabe por romper "a tela" do corpo.

Também a doença ajuda; concorre para reduzir as energias, para debilitar o corpo, facilitando a sua separação da alma investida por ímpetos, sempre mais fortes, de puro amor.

A causa da morte não é, de fato, a doença, mas o amor; embora, aparentemente, se dê o contrário.

"Convém saber, a tal respeito, - escreve frei João - que a morte natural das almas que chegam a este estado, embora seja semelhante às outras quanto à própria condição da morte, é, todavia, muito diferente quanto à causa e modo; porque se os outros morrem em consequências de enfermidade ou velhice, esses de que tratamos aqui, morrendo efetivamente de doença ou em idade avançada, não é isso, todavia, que lhes tira a vida, e sim algum ímpeto e encontro de amor muito mais subido que os antecedentes, e, bem mais poderoso e eficaz, pois consegue romper a tela, e arrebatar a jóia da alma. Assim, a morte de semelhantes almas é suavíssima e dulcíssima, muito mais do que lhes foi a vida espiritual inteira; morrem com os mais subidos ímpetos e deliciosos encontros de amor, assemelhando-se ao cisne que canta mais suavemente quando vai morrer" (Chb 1,30).

Aos 7 de dezembro, vigília da Imaculada, frei João já sabe, por revelãção divina, o dia e a hora de sua morte. No dia 13, declara que está vivendo o seu último dia e avisa que à meia-noite irá cantar Matinas no Paraíso.

Às nove horas da noite, diz aos religiosos que estão em sua cela irem dormir, ele os chamará no momento oportuno. Fá-los retornar antes da meia-noite porque é chegada a hora. Exorta-os a viver com autenticidade o espírito da Reforma; agradece-lhes, como pode, tudo o que fizeram por ele; pede ao prior a caridade de ser sepultado com o hábito que traz; recita com eles, alternadamente, alguns salmos; pede que lhe lheiam alguns versículos do Cântico dos Cânticos; beija ternamente o crucifixo que tem entre as mãos e depois.. só se percebe que ele está morto devido à grande luz que se espalha no quarto e ao perfume, suavíssimo, que se esparge. Naquele momento se fez um grande silêncio; todos escutam o sino que chama para a oração da meia-noite. Era 14 de dezembro de 1591.

No momento da morte, é "que se vêm concentrar todas as riquezas da alma, e os rios de amor que estão nela vão perder-se no oceano, já tão largos e caudalosos que parecem mares. Aqui se juntam os seus tesouros do primeiro ao último, para acompanharem o junto que parte e vai para seu reino; ouvem-se desde as extremidades da terra, conforme diz Isaías, os louvores que são a glória do justo" (Chb1,30)

Uma morte de amor? Sim. E a mais bela.

Pedro Paulo di Beardino, Itinerário Espiritual de São João da Cruz

Descrição da morte de S. João da Cruz por Santa Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein)



No dia 13 de dezembro, perguntou qual o dia da semana: ao saber que era uma sexta-feira, ao correr do dia indagou por várias vezes a hora, pois esperava rezar Matinhas no Céu. Nesse último dia de sua vida, manteve-se ainda mais quieto e recolhido que antes. Permaneceu, em geral, de olhos fechados; ao abri-los, fixava-os amorosamente no crucifixo de cobre.

Às cinco horas, o Santo prorrompe numa exclamação de júbilo: "Como sou feliz! Sem o merecer, esta noite estarei no Céu". Logo mais dirige-se ao prior e a Fernando Diaz: "Padre, tenha a bondade de avisar a família de dom Fernando que não o espere, pois há de passar esta noite comigo". Agora, pede a unção dos enfermos e a recebe com grande piedade; ele próprio responde às orações do sacerdote. A seus pedidos instantes, trazem mais uma vez à sua presença o Santíssimo Sacramento para que João o adore. Passa esses instantes em carinhosa conversa com o Deus escondido, e ao despedir-se diz: "Senhor não mais te verei com meus olhos corporais".

Padre Antônio de Jesus e alguns outros padres idosos queriam passar a noite em vigília com ele, mas João não o permitiu: haveria de chamá-los ao chegar a hora.

Ao soarem nove horas, disse avidamente: "Ainda me restam três horas; incolatus meus prolongatus est" (Sl 119,5). Padre Sebastião ainda o ouviu dizer que Deus lhe atendera três pedidos, para seu consolo: não morrer como superior; morrer em lugar onde fosse desconhecido; morrer após muitos sofrimentos. Depois, jaz sossegado, imerso em oração e com semblante sereno. Já o consideram falecido. Mas ele volta a si e beija os pés de seu Crucifixo. Às dez horas ouve-se o toque dos sinos; João pergunta o motivo e lhe respondem que são os religiosos indo a Matinas. "E eu", responde por sua vez o Santo, "pela misericórdia de Deus, devo ir ao Céu, para rezá-la com Nossa Senhora". Por volta de onze e meia, pede que se chamem os padres. Entram cerca de catorze ou quinze frades, que se preparavam para Matinas; penduram à parede suas lanternas e perguntam ao Santo como estava passando. João segura-se a uma corda que pende do teto e procura erguer-se. "Padres", disse "não querem rezar o De profundis? Sinto-me muito bem." Ao dizer isso tinha o semblante "muito calmo, belo e alegre", relata o subprior, Fernando da Mãe de Deus. Ele próprio entoa o salmo; os demais respondem. Assim foram recitados "não sei quantos salmos", diz Francisco García. Eram os salmos penitenciais, que precedem a encomendação da alma. Se esta encomendação seguiu imediatamente os salmos, ou em que ponto João interrompeu a oração é questão aberta, pois os relatos não dão informação unânime. Com o tempo, João mostrou-se cansado e teve de reclinar-se. Ainda manifestou o desejo de que alguém lhe lesse algo do Cântico dos Cânticos, e o prior o fez. "Que pérolas!" exclamou o agonizante. Foi esse cântico do amor dos amores que o acompanhou a vida inteira.

Torna o Santo a indagar pela hora; ainda não dera meia-noite. "A essa hora, estarei diante de Deus para rezar Matinas". Padre Antônio lembrou-o do que fizera pela Reforma, quer no início, quer mais tarde, como superior. Responde o Santo: "Deus sabe o que foi feito. Mas não é nisso que me apoiarei, nosso Pai: agora não é hora disso. Espero ser salvo pelos méritos do sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo".

Os confrades pedem-lhe a bênção e ele a dá, por ordem do provincial, e os exorta a serem religiosos realmente obedientes e perfeitos.

Pouco antes da meia-noite, entrega seu "Santo Cristo" a um dos circunstantes, provavelmente Francisco Diego; pois queria ter livres ambas mãos, a fim de compor seu corpo para a partida. Mas logo retomou a cruz e com palavras carinhosas despediu-se do Crucificado, como antes o fizeram com o Salvador Eucarístico.

Soam na torre doze badaladas, e o agonizante diz: "Irmão Diego, dê o sinal do toque de Matinas, pois já é hora". Sai Francisco Garcia, o sineiro da semana. João ouve o soar do sino e, com o Crucifixo na mão, exclama: "In manus tuas, Domine, commendo spiritum meum". Um olhar de despedida aos presentes, um último beijo no Crucificado, e ei-lo diante do trono de Deus para cantar matinas com os coros celestes.

Morrer assim não manifesta algo da liberdade divina, com a qual Jesus Cristo incinou sua cabeça, no alto da cruz? E assim como naquela Sexta-Feira Maior, sinais e milagres indicaram que era verdadeiramente o Filho de Deus quem morria na cruz, assim também o Céu testemunhou a entrada do servo bom e fiel na alegria do Senhor.

Entre nove e dez horas da noite, quando, a pedido do Santo, a maior parte dos conventuais se recolhera, frei Francisco García aproximou-se da cabeceira do leito e se colocou entre a cama e a parede, a fim de rezar o terço. Havia-lhe ocorrido a idéia de que poderia ter a alegria de ver algo daquilo que o Santo iria contemplar. E de repente, durante a recitação dos salmos, viu brilhar uma esfera luminosa entre o teto e a extremidade do leito. Tanta claridade espalhava que ofuscava as catorze ou quinze lanternas dos frades e as cinco velas do altar. E no momento em que o Santo expirou, Frei Diego, que o sustentava em seus braços, viu subitamente o leito circuncidado de clarão luminoso: "Reluzia como o sol e a lua; as luzes do altar e das duas velas que se achavam pareciam cobertas de nuvens e não emitiam luz". Somente então Diego  notou que o Santo que trazia nos braços já estava sem vida. "Em meio a essa luz, nosso Pai entrou no Céu", disse aos presentes. Quando, auxiliado por frei Francisco e Frei Mateus, compôs os santos despojos, deles exalava um aroma perfumado.

Edith Stein, a Ciência da Cruz.

Valores Morais: Respeito

Dietrich Von Hildebrand
Os valores morais são sempre valores da pessoa. Inerentes unicamente ao homem, só no homem se podem realizar. Uma coisa material, digamos uma pedra, uma casa, não pode ser moralmente boa ou má; nem pode sê-lo um ser vivo, como, por exemplo, uma árvore ou um cão. De modo semelhante, as invenções, as obras do espírito humano - os livros científicos, as obras de arte - também não podem ser sujeitos de valores morais; não lhes é dado serem leais, humildes, cordiais. Podem, quando muito, como sedimento do espírito humnao, refletir indiretamente esses valores.

Só o homem, como ser livre, no uso da sua responsabilidade, pode ser moralmente bom ou mau na sua ação e nos seus negócios, no seu querer e no seu esforço, no seu amor e ódio, na sua alegria e tristeza, e nas suas atitudes fundamentais duradouras. Eis por que o ser do próprio homem, a personalidade penetrada de valores éticos - o homem humilde, puro, veraz, fiel, justo, dedicado - é mais transcendente do que a criação de bens culturais.

Um homem é incapaz de ser moralmente bom se estiver cego para o valor moral das outras pesoas, se não distinguir o valor inerente à verdade do não-valor inerente ao erro, se não entender o valor que há numa vida humana ou o não-valor de uma injustiça. Se alguém se interessa apenas por saber se determinada coisa o satisfaz ou não, se lhe é agradável, em vez de se interrogar sobre o seu significado, a sua beleza, a sua bondade, ou sobre o que vem a ser em si mesma; numa palavra, se não se interessa por saber se essa coisa é valiosa, é-lhe impossível ser moralmente bom.

A alma de todo o comportamento eticamente bom reside na dedicação àquilo que objetivamente é valioso, no interesse por uma ação na medida em que esta encerra valores morais. Suponhamos dois homens que testemunham uma injustiça sofrida por um terceiro. Um, interessado apenas na sua satisfação pessoal, não se importa nada com o ocorrido, dizendo de si para si: "antes ele do que eu". O outro, em contrapartida, prefere sofrer pessoalmente a injustiça a ver o terceiro padecê-la. Este é que tem um comportamento moralmente bom; aquele, um comportamento imoral, porquanto passa indiferente pela questão dos valores.

Fazer ou deixar de fazer o que é agradável, mas indiferente do ponto de vista dos valores, isso fica à discrição de cada um; se uma pessoa come ou não um prato saboroso, isso é lá com ela. O que é valioso, porém, exige de nós uma resposta afirmativa, assim como o não-valioso nos exige uma recusa.

Aqui já não se pode adotar um comportamento qualquer; impõe-se dar a resposta certa. Ajudar alguém que passa necessidade não é uma questão de gosto; quem não o faz torna-se culpado de ignorar o valor objetivo da ajuda. Só o homem que entende que há coisas belas e boas em si mesmas é que capta a exigência sublime dos valores, o seu apelo a deixar-se guiar por eles e a submeter-se à sua lei. Só esse homem é capaz de ultrapassar o seu horizonte subjetivo e de crescer moralmente, entregando-se ao que é significativo e vencendo a limitação de sempre perguntar a si próprio o que é que o satisfaz. Só esse homem pode tornar-se propriamente portador de valores éticos.

Ora, isso só se verifica no homem respeitador. O respeito é aquela atitude fundamental que, por assim dizer, se pode apontar como mãe de toda a vida moral, porque é ela que, antes de mais nada, permite abeirar-se do mundo e abrir os olhos para os valores que encerra. 

O homem desrespeitoso, atrevido, é incapaz de toda e qualquer dedicação e subordinação. Ora se torna escravo da soberba, daquela contração do eu que o encerra em si mesmo e o mergulha em cegueira, levando-o a perguntar constantemente: "Terá subido de ponto o meu prestígio, terá aumentado o meu poder?"; ora se faz escravo da avidez com que reduz o mundo inteiro a uma mera ocasião de prazer. Por isso não consegue criar no seu íntimo aquele silêncio, aquela atitude receptiva que permite compreender o que há de peculiar e valioso em cada situação e em cada homem. Trata tudo com a impertinência e a indelicadeza de quem só repara em si mesmo e só se escuta a si mesmo, sem cuidar do mais que existe. Não sabe manter distância alguma em relação ao mundo.

Essa falta de respeito apresenta duas modalidades, conforme se baseie na soberba ou na avidez. A primeira, a falta de respeito que procede da soberba, é a insolência. O homem deste tipo, com uma sobranceria petulante, abeira-se de tudo sem se dar ao incômodo de entender a fundo coisa alguma. É o sabichão enfadonho que, sem mais, tudo julga descobrir e conhecer de antemão. É o homem para quem nada pode haver de superior a si mesmo, nada que ultrapasse o seu horizonte ou encerre algum segredo. É o homem a quem Shakespeare, no seu Hamlet, avisa que "há mais coisas entre céu e terra do que sonha a vossa filosofia". É o homem ignorante, obtuso, do gênero daquele Wagner, fâmulo do Fausto, todo satisfeito "por ver quanto progrediu".

Um homem destes não sabe nada da amplidão e da profundeza do mundo, do sentido misterioso e da plenitude incomensurável do belo e do bom, de que nos falam cada raio de sol e cada planta, e que se desvendam no sorriso inocente de uma criança e nas lágrimas de arrependimento do pecador. Para o seu olhar estreito, arrogante, o mundo achatou-se, tornou-se unidimensional, insípido, insignificante. Está cego para os valores e para o mundo. Passa por eles ignorando-os.

A outra modalidade de falta de respeito, a do ávido embotado, é igualmente cega para os valores. Só lhe interessa saber se uma coisa lhe é ou não agradável, se lhe dá prazer, se lhe traz alguma utilidade,p se precisa dela. Em tudo se limita a ver o aspecto que se prende com o seu interesse ocasional, imediato. Tudo quanto há se cifra para ele num meio de atingir os seus fins egoístas. Gira eternamente no círculo da sua estreiteza, sem dele sair jamais. Daí o não conhecer também a felicidade profunda e verdadeir que só brota da dedicação a valores puros, do contato com aquilo que em si é belo e bom.

Não se dirige com insolência a tudo o que existe, como o primeiro tipo, mas é como ele falto de abertura e de distância; porque, como apenas procura  que num dado momento lhe é útil e necessário, tudo passa por alto. Não logra jamais o silêncio interior, não consegue abrir-se, não se deixa presentear. Também ele vive num eu aspasmodicamente contraído. O seu olhar "resvala em tudo estupidamente", sem penetrar no verdadeiro sentido e valor de qualquer assunto. É também "míope", e põe-se tão "perto" de tudo, que lhe escapa o conhecimento da verdadeira essência das coisas; deste modo, não concede a nada do que existe o "espaço" necessário para que se desenvolva na sua peculiaridade e plenitude, e o mundo fecha-lhe por seu turno a sua amplitude, profundeza e altura.

Quem é respeitador encara o mundo de uma maneira inteiramente diferente. Descontraído, sem espasmos, livre da soberba e da avidez, longe de encher o mundo com o seu "eu", cede ao que existe a sua "vez", para deixá-lo desenvolver-se na sua peculiaridade. Percebe a dignidade e a nobreza do que existe, simplesmente por existir em face do nada; percebe o valor que possui cada pedra, cada fio de água, cada talo de erva, enquanto é real, enquanto é criação que possui o seu ser próprio; percebe quer cada coisa é o que é, que é algo independente da pessoa do observador e subtraído ao seu arbítrio, ao contrário de qualquer simples quimera ou aparência.

Eis por que, em vez de fazer da criação um simples meio para si e para os seus eventuais objetivos e fins egoistas, toma-a a sério em si mesma, "dando-lhe a vez" de se mostrar na sua peculiariedade. Cala-se para deixar falar o existente.

Esta atitude de abertura ao existente como tal, embebida da disposição de apreciar algo de mais elevado que o próprio arbítrio e prazer, faz do homem um vidente de valores. A quem se há de abrir a sublime beleza de um pôr-de-sol ou de uma Nona Sinfonia de Beethoven, a quem senão àquele que respeitosamente se abeira dela, abrindo-se interiormente ao respectivo ser que nela existe? Para quem há de reluzir o milagre que palpita na vida e desabroha em qualquer planta, para quem senão para aquele que a contempla cheio de respeito? Em contrapartida, o mundo, cheio de sentido e de finalidades organizadas, nunca se desvenda na sua beleza e misteriosa dignidade a quem se limita a ver nele gêneros alimentícios ou um ganha-pão, isto é, qualquer coisa de que se pode servir e que lhe aproveita.

O respeito é o pressuposto imprescindível de todo o conhecimento profundo, e sobretudo de todo o deixar-se enriquecer e elevar pelos valores, de toda a subordinação à sua majestade. Assim no-lo pode confirmar o comportamento moral nas mais diversas esferas da vida.

Com efeito, a atitude fundamental de respeito está na base de todo o gênero de comportmentos éticos do homem para com o seu próximo e para consigo. Só o indivíduo respeitador pode descobrir toda a magnitude e profundidade de cada homem enquanto pessoa espiritul, enquanto ser livre e responsável, o único entre os seres conhecidos que é capaz de compreender e comunicar-se com os outros seres, adotando perante as coisas uma posição cheia de sentido; o único destinado a tornar-se um recipiente de bondade, pureza, fidelidade, humildade. Como há de alguém abrir-se realmente a um outro, como há de sacrificar-se por ele, se não faz idéia da preciosidade e da abundância que se encerram numa alma, se não tem nenhum respeito por essa criação?

Além diso, esta atitude fundamental de respeito é pressuposto de todo o verdadeiro amor, sobretudo do amor ao próximo, porque nenhum amor é possível sem a compreensão dos valores que a pessoa traz consigo. O respeito pelo ser amado é parte constitutiva de cada amor. A capacidade de "escutar" a peculiaridade do outro, em vez de violar essa peculiaridade ao sabor dos próprios desejos, a capacidade de tomar a sério o ser amado e de lhe dar largas para que se possa expandir - todos estes elementos, que compõem a estrutura do amor autêntico, derivam do respeito.

Que seria do amor de mãe sem o respeito pela criança em formação, por todas as possibilidades de valor nela latentes, pelas preciosidades da sua alma! E não é nesta atitude fundamental de respeito que repousa a justiça para com os demais, a estima pelos seus direitos, pela liberdade das suas resoluções, bem como a limitação dos caprichos próprios e a compreensão das pretensões alheias? O respeito pelo vizinho é por sua vez o fundamento de toda a verdadeira convivência, da reta incorporação no matrimônio, na família, na nação, no Estado, na humanidade; é ainda o fundamento da submissão à autoridade legítima, do cumprimento dos deveres morais para com a comunidade como um todo e para com os membros individuais que a compõem. A falta de respeito rompe e corrompe a comunidade.

Mas o respeito é também a alma do reto comportamento ético noutras esferas da vida. É o que sucede, por exemplo, na esfera da pureza. O respeito pelo segredo da união conjugal, pela profundidade, delicadeza e caráter dotundamente definitivo dessa intimíssima entrega, constitui o pressuposto da pureza. É o respeito que, antes de mais, permite compreender como é pavoroso invadir abusivamente esse campo íntimo, compreender até que ponto há nessa invasão uma profanação e uma degradação de si mesmo e dos outros. O respeito pelo milagre da origem da nova vida, na mais estreita união amorosa entre dois seres humanos, fundamenta o horror a todas as demolições da misteriosa conexão que existe entre o amor e a formação de um novo homem, permitindo compreender quanto elas são injuriosas, artificiais ou impertinentes.

Onde quer que se ponham os olhos, onde quer que no homem deva florescer a vida moral, o respeito é sempre o fundamento e simultaneamente um elemento essencial dessa vida. Sem essa atitude fundamental, não há nenhum amor verdadeiro, nenhuma justiça, nenhuma consideração, nenhuma auto-educação, nenhuma pureza, nenhuma veracidade; mas, sobretudo, nenhuma profundidade.

Sem o respeito, o homem torna-se mesmo trivial e fútil, porque não entende a profundidade que se esconde nos seres, porque para ele não há mundo algum por trás ou acima do visivelmente palpável.

Por isso, também só para o homem respeitador se abre a esfera da religião. O sentido e o valor que se encerram no mundo como um todo, só aos seus olhos se revelam. Assim, o respeito surge como atitude ética fundamental, no início de todo o conhecimento, de toda a vida moral, de toda a religião. O respeito é, portanto, a bavse de todo o comportamento reto do homem para consigo mesmo, para cmo o próximo, para com todas as esferas da criaçõ e sobretudo para com Deus.

Dietrich Von Hildebrand, Atitudes Éticas Fundamentais
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...