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Respondendo ao Adventismo do Sétimo Dia


Tradução de Fábio Silvério

Há duas distintas reivindicações principais do Adventismo do Sétimo Dia que separam-no do resto do Cristianismo:

1. Primeiro, que os cristãos devem manter o Sábado, o Sabbath, santo. Eles se opõem ao culto no Domingo, argumentando que é contra os Dez Mandamentos e anti-escriturístico em geral.

2. Segundo, que a fundadora do Adventismo do Sétimo Dia, Ellen G. White, foi uma profetiza.

O site oficial dos Adventistas do Sétimo Dia declara:

Um dos dons do Espírito Santo é a profecia. Este dom é uma marca identificatória da igreja remanescente e foi manifestado no ministério de Ellen G. White. Como mensageira do Senhor, seus escritos são uma continuante e autorizada fonte de verdade que provê para a igreja conforto, orientação, instrução e correção.

Mas como nós logo veremos, White não era profetiza, e seus trabalhos estão cheios de erros. Vejamos dois de seus maiores argumentos sobre o Sabbath, ambos de seu supostamente-inspirado livro, O Grande Conflito.


I. Quando a Adoração no Domingo começou?

A primeira das idéias que eu quero considerar é a afirmação de White de que todos os cristãos primitivos mantiveram o verdadeiro Sabbath pelos primeiros séculos do Cristianismo:

Nos primeiros séculos o verdadeiro Sabbath foi mantido por todos os Cristãos. Eles eram zelosos pela honra de Deus, e, acreditando que Sua lei é imutável, eles zelosamente guardaram a sacralidade de seus preceitos.

(Ellen G. White, O Grande Conflito, p.52)

Então isso significa que, pelo menos, nós deveríamos ver cada singular cristão cultuando no Sábado por pelo menos dois séculos (já que "primeiros séculos" deve significar pelo menos dois). Agora leia o que São Justino Mártir escreveu em 150 A.D., em sua Primeira Apologia:

E no dia chamado do Sol, todos que vivem nas cidades ou no interior se juntam em um lugar, e as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas são lidos, tanto quanto o tempo permite; depois, quando o leitor termina, o presidente instrui oralmente, e exorta à imitação destas dos coisas. Então nós todos nos levantamos juntos e rezamos, e, como dissemos antes, quando nossa oração termina, pão e vinho e água são trazidos, e o presidente de modo semelhante oferece orações e agradecimentos [a palavra grega aqui é Eucaristia], de acordo com sua habilidade, e as pessoas assentem, dizendo Amém; e há uma distribuição para cada um, e uma participação daqueles sobre os quais foram feitas ações de graças, e para aqueles que estão ausentes uma porção é enviada pelos diáconos. E aqueles que estão aptos, e querem, dão o que cada um julga cabível; e o que é coletado é depositado com o presidente, que socorre os órfãos e viúvas e aqueles que, por causa da doença ou qualquer outra causa, estão em falta, ou aqueles que estão presos e os estranheiros peregrinos em nosso meio, e em uma palavra cuida de todos os que precisam.
Mas Domingo é o dia em que nós todos temos nossa assembléia em comum, porque é o primeiro dia em que Deus, tendo agido nas trevas e matéria, fez o mundo; e Jesus Cristo nosso Salvador no mesmo dia ressurgiu dos mortos. Pois Ele foi crucificado no dia anterior ao de Saturno [que é o dia antes do Sábado]; e no dia depois do de Saturno, que é o dia do Sol, tendo aparecido aos Seus apóstolos e discípulos, Ele os ensinou estas coisas, que nós temos submetido a vocês também para sua consideração.

Então, bem, dentro dos primeiros séculos do Cristianismo, o culto no Domingo já era praticado. E note que Justino não descreve isto como alguma inovação. Ele está explicando a não cristãos como é a prática do cristão básico, e o culto no Domingo é já a normal para "todos" em 150. Para alguém que alega ser um profeta, White é incapaz de apresentar a verdade mesmo sobre este ponto básico do Sábado.

Surpreendentemente, estudiosos do Adventismo do Sétimo Dia admitem que ela está errada neste ponto. Dr. Samuele Bacchiocchi, talvez o maior estudioso adventista, escreveu:

Os primeiros documentos mencionando o Domingo como dia de culto recuam até Barnabé em 135 e Justino Mártir em 150. Assim, é evidente que o Domingo como dia de culto já estava estabelecido pelo meio do segundo século. Isto significa que para ser historicamente preciso o termo "séculos" deveria ser mudado para o singular "século". Esta simples correção aumentaria a credibilidade d'O Grande Conflito, porque é relativamente fácil defender a observância geral do Sabbath durante o primeiro século, mas é impossível fazer isto a partir do segundo século.

Em outros termos, as palavras da alegada profetiza são verdadeiras, desde que você mude as palavras. Isto soa como um modo educado de dizer que Ellen White é uma falsa profetiza.

Mas e quanto ao argumento de Bacchiocchi de que enquanto adoração no Domingo existia no segundo século, ela não existia no primeiro? Ele está fazendo um argumento de silêncio. É uma tática comum que eu tenho visto ser usada por protestantes na defesa de seus pontos de vista. Se você mostra que Inácio acreditava que a Eucaristia é o Corpo e o Sangue de Cristo em 107 A.D., eles responderão que a Igreja deve ter tomado isto de um modo simbólico até 106. É claro que este tipo de argumento é ridículo. Se você vai fazer um argumento de silêncio, o mais forte argumento é que nenhuma mudança na doutrina ou prática aconteceu - porque se uma mudança de doutrina tivesse acontecido, nós veríamos uma evidência disso. Se cristãos de repente (globalmente) começassem a fazer o culto no Domingo ao invés do Sábado, alguém não teria mencionado isto em algum lugar?


II. Quem mudou o Sábado para o Domingo?

O segundo argumento de White é que foi o imperador Constantino que mudou o dia de culto do Sábado para o Domingo. Isto está na p. 553 do livro que eu acabei de citar, O Grande Conflito:

Na primeira parte do quarto século, o Imperador Constantino assinou um decreto fazendo do Domingo um festival público em todo o Império Romano. O dia do sol foi reverenciado por seus súditos pagãos e foi honrado pelos Cristãos; isto foi uma política do imperador para unir os interesses conflitantes do paganismo e Cristianismo. Ele foi pressionado a isto pelos bispos da Igreja, os quais, inspirados pela ambição e sede de poder, perceberam que se o mesmo dia fosse observado por ambos cristãos e pagãos, isto promoveria a nominal aceitação do Cristianismo pelos pagãos e assim aumentaria o poder e a glória da Igreja.

Nós já sabemos que isto é falso: que os cristãos sempre fizeram o culto no Domingo muito antes de Constantino. Mas o que é interessante é que White teve uma segunda e contraditória profecia. Você vê, ela também disse que foi o grande, mau papa, não Constantino, que mudou a data do Sábado para o Domingo. Assim, por exemplo, em Primeiros Escritos de Ellen Gould White, nós lemos sua descrição de uma visão que ela afirma ter tido em 1850:

O papa mudou o dia de descanso do sábado para o primeiro dia. Ele pensou em mudar o próprio mandamento que foi dado para causar no homem a lembrança do Criador. Ele pensou em mudar o maior mandamento no decálogo e assim fazer a si mesmo igual a Deus, ou até exaltar-se acima de Deus.

Disto, ela entende que o papa é o Anticristo. Em uma visão anterior de 1847, ela diz:

Eu vi que o Sábado não foi cravado na cruz. Se fosse, os outros nove mandamentos teriam sido; e nós estaríamos em liberdade para ir adiante e quebrá-los todos, bem como quebrar o quarto. Eu vi que Deus não mudou o Sábado, pois Ele nunca muda. Mas o Papa mudou-o do sétimo para o primeiro dia da semana; pois ele estava para mudar os tempos e as leis.

É tentador dizer isto: ela claramente é uma falsa profetiza. Adventistas do Sétimo Dia acreditam que o Sabbath seja no Sábado por causa dos ensinos de White e suas profecias. Ambos são demonstravelmente falsos. Ela não tinha idéia do que a história do Sabbath de fato era, e contou do seu jeito. O que eu achei chocante é que, por outro lado, estudiosos Adventistas estão conscientes de que White estava errada tanto em seu trabalho de ensino quanto em suas profecias, e ainda assim eles fazem vista grossa. Este é Bacchiocchi de novo:

Surpreendentemente até alguns de nossos líderes evangelistas acreditam, na base das afirmações de Ellen White, que o Domingo começou a ser o dia de culto na primeira metade do quarto século quando os líderes da Igreja forçaram Constantino a promulgar em 321 a famosa Lei do Domingo.
Esta visão popular expôs nossa Igreja às mais indesejáveis críticas. Estudiosos não adventistas e líderes da Igreja como Dr. James Kennedy acusam nossa Igreja de ignorância crassa, por ensinar que o Domingo começou a ser observado no quarto século, quando há evidências históricas irrefutáveis que colocam sua origem dois séculos antes.
Eu gastei horas sem conta explicando ao Dr. James Kennedy e a professores que viram os recentes programas da NET satélite que esta visão popular adventista não reflete o ensino adventista. Nenhum estudioso adventista tem ensinado jamais ou escrito que a observância dominical começou no quarto século com Constantino. Uma compilação de provas é o simpósio O Sábado na Escritura e na História produzido por 22 estudiosos adventistas e publicado pela Review and Herald em 1982. Nenhum dos estudiosos adventistas que contribuíram para o simpósio sequer sugeriu que a observância dominical começou no quarto século.

Então, uma vez que eles examinaram as evidências, mesmo os especialistas adventistas percebem que os escritos de Ellen White são cheios de erros. Questão óbvia: se este é o caso, porque continuam adventistas?

A Igreja Adventista do Sétimo Dia inteira está desacreditada porque:

(a) declara Ellen White uma profetiza, quando ela claramente não o é;
(b) declara seus escritos uma fonte autorizada da verdade, quando eles claramente não o são; e
(c) continua, com sua missão distintiva, a celebrar o Sabbath no Sétimo Dia, Sábado. Mesmo o nome da igreja é baseado nessa missão, ainda que a missão esteja fundada numa história falsa, falsa profetiza, e em má exegese bíblica.

Não é como se White estivesse errada em apenas alguns detalhes menores. Ela erra nos fatos básicos do coração da doutrina dos Adventistas, e isto é óbvio. Já passou da hora dos Adventistas se desfazerem de Ellen White e voltaram para casa na ortodoxia do Cristianismo.

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Atualização: Checando o post de Brent Stubb em Constantine and the Catholic Church, ele cita Sto Inácio de Antioquia, escrevendo em cerca de 107-110, e que diz:

Se, todavia, aqueles que se converteram da antiga ordem de coisas e tomaram posse de uma nova esperança não mais observam o Sábado, mas, vivendo na observância do Dia do Senhor, no qual também a nossa vida se levantou novamente por Ele e por Sua morte - ao qual alguns negam, pelo mistério pelo qual nós obtivemos a Fé, e assim persistimos, para que nós possamos ser achados os discípulos de Jesus Cristo, nosso único Mestre - como nós poderemos ser capazes de viver separados d'Ele, cujos discípulos os profetas eles mesmos no Espírito esperaram por Ele como Seu Mestre?

Então na primeira década do segundo século, o Domingo já era o dia de assinalar que os Cristãos acreditavam em Jesus como o Messias, e em Sua Ressurreição. Então até o argumento de Bacchiocchi de que o culto cristão no sábado existiu pelos primeiros anos do Cristianismo é falso. E é incrivelmente improvável que esta prática fosse nova no tempo de Inácio. Desde que o Apóstolo João morreu cerca do ano 100 A.D., se poderia pensar que ele teria se pronunciado contra o culto no Domingo, se isto fosse verdadeiramente uma violação do Evangelho. Ao menos, é claro, que ele tivesse tomado uma parte massiva na conspiração de Constantino/Papa. É claro, nós também vemos a observância dominical em lugares como Atos 20,7, então não há razão para ver nisto qualquer outra origem que não a apostólica.

Atualização 2: Brock, nos comentários, cita a Didache, que foi provavelmente escrita do meio para o fim do primeiro século... isto é, ao mesmo tempo que o Novo Testamento. Isto fecha a questão na idéia de que os primeiros cristãos eram adoradores dominicais.

"Mas em todo Dia do Senhor reúnam-se juntos, e partam o pão, e dêem graças [Eucaristia] depois de terem confessado suas transgressões, para que o seu sacrifício seja puro. Mas não deixe ninguém que esteja em desacordo com o seu amigo vir junto com vocês até que eles estejam reconciliados, para que o seu sacrifício não seja profanado. Pois isto é o que falou o Senhor: em todo lugar e tempo ofereçam-me um sacrifício puro; pois eu sou um grande Rei, diz o Senhor, e meu nome é maravilhoso entre as nações."

Boa pegada, Brock! Eu poderia acrescentar que o trecho inteiro trata da necessidade da confissão, da Liturgia Eucarística sendo um Sacrifício, etc. - tudo incrivelmente Católico.

Isto é a moral


Pe Jacques Leclercq

O Homem encaminha-se para o bem total, para o necessário, para o único, para Deus, na multiplicidade do contingente e através dela. É através de todos estes bens contingentes, não-necessários - que são bens e que podem ser perfeições, não sendo nenhuma delas o bem, nem podendo tornar-se a perfeição - que abro o meu caminho para o bem e para a perfeição.

Isto é a moral. A moral é a regra por que me encaminho para o necessário pelo contingente, para Deus pelas criaturas. Dirige a multiplicidade do meu amor à unidade do seu fim. Dá a fórmula por que me sirvo da multiplicidade dos bens exteriores para atingir o bem absoluto.

Sob este ponto de vista, a primeira regra da moral é viver pelo espírito, porque é o espírito que vê a verdade e o bem no ser. Poderia mesmo dizer-se, remontando mais alto, que é o espírito que vê o ser no ser. O espírito vê, assim, os seres absolutos nos seres contingentes, a verdade e o bem absolutos nas verdades e nos bens contingentes. Só o espírito pode conduzir o contingente ao necessário, compreender de que maneira e em que medida o contingente conduz ao necessário e de que maneira o Homem pode ir para o necessário, para o uno, através do múltiplo.

A maior parte das virtudes morais não tem outro fim além do de libertar o espírito da matéria, a fim de permitir coordenar o uso dos bens contingentes com esta busca da unidade. Primeiro unificando-se a si mesmo, unificando a ação nesta busca do uno, e depois, servindo-se de quanto nos rodeia.

Certas virtudes, como a humildade e a prudência, ou como a fé no plano sobrenatural, estão centradas na visão do verdadeiro; outras, como a fortaleza e, no plano sobrenatural, a caridade, estão centradas na busca do bem, umas mais intelectuais, outras mais voluntárias. As virtudes intelectuais sem vontade fazem espíritos clarividentes que não realizam o que vêem; as virtudes voluntárias sem inteligência fazem naturezas generosas que não realizam o bem por falta de clarividência. A perfeição do Homem está na coordenação de todas as virtudes, unidade de multiplicidade.

Quando o espírito está livre da paixão, quando a vontade dirige a vida no sentido em que o espírito o indica, e as paixões intensificam a ação ao serviço do espírito, o Homem torna-se capaz de se unificar na procura de Deus. Pelas suas próprias forças, o Homem pode identificar-se de certa maneira com Deus, identificando a sua vida com a vontade divina manifestada na Natureza. Para isso, deve conhecer a Deus tanto quanto o seu espírito pode conhecê-lo. Conhecer a Deus é conhecer o uno e ver o absoluto no relativo.

Identificar-se com a virtude divina manifestada na Natureza é escolher entre os bens aqueles que permitem desenvolvermo-nos plenamente, e se há vários, escolher um que se utilize até o fim. Na medida em que nos tornamos perfeitos, conhecemos a Deus e compreendemos que é o bem e a beleza. Esta única compreensão, ainda que abstrata, enche o espírito de uma alegria que ultrapassa qualquer outra.

Mas Deus não abandona o Homem a si mesmo. Ao Homem que empreende a conquista da sua perfeição, Cristo traz-lhe pela sua redenção uma vida realmente divina. Então o Homem já se não identifica unicamente com Deus pela identificação da sua ação com a vontade divina, mas possui a Deus e goza de Deus segundo um modo que é para nós misterioso, que é puro dom gratuito de Deus e que eleva a criatura a uma plenitude de ser e de felicidade realimente inexprimível. 

E eis aqui toda a regra de vida.

LECLERCQ, Jacques. Diálogo do homem e de Deus. 6 ed, Coimbra: Casa do Castelo, 1965. p.107-109.

Quaresma - tempo de mortificação


Os católicos observamos a Quaresma como um tempo de preparação para a Páscoa. A princípio, viu-se a necessidade de uma preparação de três dias, que se tornou o que hoje chamamos de "tríduo pascal". Mas, pela enormidade do significado, os cristãos acharam por bem aumentar o tempo de preparação, e estabeleceram o sugestivo número de quarenta dias. 40 é um número que aparece recorrentemente na Bíblia, e indica sempre um período delimitado que é como que uma tensão preparatória para algo. O símbolo maior desta preparação se dá no jejum que Jesus, inspirado pelo Espírito, faz no deserto e que antecede o começo da sua vida pública.

Toda preparação busca desenvolver os meios necessários para aquilo que se vai executar. Assim, Jesus jejua e é tentado pelo demônio. Na quaresma, nós somos convidados a jejuar, fazer mortificações, e enfrentar os nossos demônios. O deserto é, já, um lugar difícil, áspero, escasso em objetos de satisfação. Portanto, é o lugar propício para o combate. Não à toa, é o lugar para onde Deus leva Israel a fim de falar-lhe ao coração. No deserto da quaresma, Deus deseja também falar-nos e nos preparar para o esponsal que Ele mesmo realizará, não mais no deserto, mas num jardim, sobre uma árvore frondosa cujos frutos anularão os efeitos do pecado: a árvore da Cruz.

Quero neste texto meditar um pouco sobre o significado das mortificações. Quase ninguém insiste nisso, hoje, e a pregação dos padres se resume, no mais das vezes, à dimensão política. A Campanha da Fraternidade, posta durante a quaresma, também não ajuda. Esta desatenção às mortificações é profundamente prejudicial. A Igreja sempre declarou, nos seus santos e doutores, que estas são não somente uma recomendação, mas uma necessidade para a vida espiritual, de modo que quem não se mortifica não avança. Os santos, que são os verdadeiros representantes do cristianismo, foram dela muito amigos e não dispensavam oportunidades de praticá-la. Dada, então, a sua importância essencial na vida cristã, falemos dela.

Mortificar significa fazer morrer alguma coisa. Há em todos nós forças internas que nos impelem para a direção contrária à que deveríamos seguir. Todos nós sabemos disso por experiência: nós somos gulosos, luxuriosos, egoístas, violentos, orgulhosos, vaidosos, preguiçosos, covardes, dissolutos. A mera tomada de consciência dessas coisas não é, contudo, suficiente para nos fazer mudar. Uma coisa é conhecer o que eu deveria ser e não sou, e outra muito diferente é ter a força de me tornar isso que eu deveria ser. São Paulo apóstolo descreve, de modo formidável, o drama pelo qual passa todo filho de Adão que intenta conformar-se ao Cristo: 

"Porque bem sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido sob o pecado. Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero isso não faço, mas o que aborreço isso faço. E, se faço o que não quero, consinto com a lei, que é boa. De maneira que agora já não sou eu que faço isto, mas o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço. Ora, se eu faço o que não quero, já não o faço eu, mas o pecado que habita em mim. Acho então esta lei em mim, que, quando quero fazer o bem, o mal está comigo. Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei, que batalha contra a lei do meu entendimento, e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros." (Rm 7,14-23)

Vemos aqui que o pecado é como uma lei interna nossa, e, além disso, Paulo lhe atribui autoria pelo pecado, como se ele fosse um falso eu em nós. Qualquer perspectiva espiritual que não perceba isso tudo é mera ilusão. Daí se vê a puerilidade de certos discursos que atribuem o não ser santo a apenas uma questão de falta de vontade, de "safadeza" pessoal, como se o "participar da natureza divina" estivesse ao alcance do homem. Ledo engano. Nós não somos auto-suficientes, e, além do fato de a santidade estar infinitamente acima dos nossos esforços naturais, nós sequer sabemos o que seja um santo antes de nos tornarmos um. Assim, mesmo que tivéssemos a força necessária - o que não é mesmo o caso -, não poderíamos nos dar aquilo que não conhecemos. É uma contradição trivial.

A santidade, junto com as virtudes teologais, nos é dada por Deus. Não há outra fonte. E devemos mesmo desesperançar de querer produzi-la por nossos meros esforços. O que fazer, então? Dissemos que a santidade nos é dada por Deus, e, sendo esta a nossa vocação e a razão mesma da nossa existência, é claro que Deus deseja dá-la a todos os homens. E por que não o faz? Porque não encontra a devida abertura na nossa alma. Não há espaço em nós para que Deus aja, e isto porque estamos vivendo ainda sob a lei do pecado e estamos inchados de egoísmo. O que fazer, então? Felizmente a nossa natureza não está de todo estragada. A luz da inteligência ainda dá conta de perceber verdades fundamentais, e a vontade, devidamente informada, pode ainda dispender certos esforços necessários para que a ação de Deus se dê. Contudo, nada é fácil.

O problema fundamental é o seguinte: desde que nascemos, estamos viciados no prazer, o que nos torna egoístas. Abraçamos o que nos agrada, rejeitamos o que nos desagrada, e assim atribuímos às coisas e pessoas como que uma segunda natureza, que ofusca a sua identidade verdadeira, e, assim, falseia a nossa visão de todas elas, inclusive de nós mesmos. Este vício começa bem antes de tomarmos consciência do problema. Logo, temos dele anos e anos de prática. Como o prazer é manipulável, aprendemos a provocá-lo, a intensificá-lo e a mediar as nossas relações sempre com vistas nele. O nosso eu se torna, assim, o eixo da nossa existência; se torna um ídolo que se fortalece na medida em que sacrificamos valores, coisas e pessoas no seu altar. Esta centralidade do ego é o que se chama egoísmo. E é importante frisar: quando nos percebermos egoístas, já o teremos sido por muito tempo. Assim, não é a simples tomada de consciência e o desejo de deixar de sê-lo que serão suficientes para resolver o caso. Pelo contrário, se não cuidarmos, será bem capaz que o próprio desejo de sermos bons e santos tenha por motivação última o próprio egoísmo. No lusco-fusco da nossa alma, tateando entre sutilezas e obscuridades, vamos errando no caminho qual estrelas perdidas, e se confiarmos em nossa própria cegueira, cairemos, infalivelmente, no buraco; teremos fracassado.

O que fazer, então? Duas coisas: a primeira é pedir ajuda a Quem pode nos ajudar, que é Deus, e a segunda é fazer o pequeno papel que nos cabe. Falemos um pouco da primeira.

Pedir ajuda a Deus não se resume a rezar. Nosso Senhor estabeleceu meios objetivos para que participássemos daquilo que Ele nos conseguiu na Cruz. Aquilo que Ele conseguiu foi a Graça divina, e os meios objetivos são os Sacramentos. Sem a força da Graça propiciada pelos sacramentos todo o projeto de santidade é apenas um projeto mal orientado.

O que nos cabe fazer é rezar e nos mortificar. Como nós temos essa busca natural pelo prazer, que sempre nos limita e nos condiciona, a mortificação, com vistas a nos devolver a liberdade de uma ação mais correta, buscará atacar o eu a partir de desconfortos voluntários ou da aceitação de desconfortos involuntários, o que nos dará as mortificações ativa e passiva.

O princípio do prazer espraia-se em tudo quanto fazemos: amizades, trabalho, ocupações diversas, oração, etc,: tudo está como que abrangido por ele. Costumamos chegar atrasados no trabalho ou ficamos felizes se saímos antes da hora porque o nosso ego não se agrada de que lhe sejam impostas obrigações. Se rezamos, gostamos de sentir Deus e procuramos ativamente por ficarmos em paz, às vezes reduzindo as nossas orações - ou as intensificando - precisamente quando estamos necessitados. Sempre é o nosso eu quem dita. Sempre é a nossa vontade a nossa verdadeira senhora. Quando nos mortificamos, nos impomos desprazeres, e nos acostumamos ao desconforto, começa a acontecer uma coisa estranha em nós. A princípio, será só tédio, impaciência, desconfiança, desatenção, cansaço, angústia. Mas, se perseveramos, a melhora se segue ao amargor do remédio. Vamos percebendo que estávamos como que bêbados e sonolentos - nem isto sabíamos! -, e agora a consciência meio que acorda e passa a luzir num outro nível. Contornos sutis da realidade, antes despercebidos, se revelam qual um degradê de montanhas sequenciadas que estavam encobertas pela névoa da concupiscência. A cor postiça que impúnhamos aos entes empalidece e a cor real, subjacente à nossa ilusão, desponta. Não apenas as coisas se revelam, mas as relações entre elas também se tornam visíveis, e o próprio gosto nelas presente, uma vez que tenhamos aprendido o desapego e a fruição desinteressada, se dá a nós sem esquivas. Estes são efeitos que estão ao alcance mesmo de uma ascese natural, não necessitando ainda da Graça santificante para serem experimentados. Mas é claro que tais efeitos não serão imediatos.

Além do efeito anticoncupiscência e seu ulterior despertar - que se dá como iluminação da inteligência -, a mortificação revigora a vontade que andava enfraquecida sob os ditames da sensibilidade e do desejo. Aquele "outro" que nos habita, e que era testemunhado por São Paulo como autor do mal, perde terreno e o nosso verdadeiro eu, antes desmaiado nalguma sarjeta interior, recupera os sentidos e lhe passa a exercer maior resistência, podendo, aos poucos, tomar-lhe as rédeas. Isto libera certas energias da alma, o que dá à existência um grande senso de vitalidade e inclusive melhora a saúde e aprimora o caráter. Ao contrário do que dizem por aí, que pessoas mortificadas são sujeitos cabisbaixos e sem gana, é uma vida permissiva e dissoluta que mina a disposição e gera timidez, tristeza, angústia e fraqueza.

Por fim, a mortificação faz a pessoa perceber o seguinte: se eu desejo algo e, não obstante, eu o renuncio, como que se cria entre o desejo e o eu um espaço, e este espaço torna evidente que o eu não é o desejo. Quando deixo de me identificar aos meus desejos, aos meus apegos, aos meus caprichos, poderei encontrar, sob os escombros desses movimentos automáticos, a sede da minha liberdade e a minha verdadeira identidade subjacente. Perceberei que não é uma relação óbvia que um desejo engendre uma ação, pois o desejo pode me surgir como um estranho, uma espécie de rebelião interna a que é preciso pacificar. Não é outra coisa a "noite dos sentidos", de São João da Cruz. Uma vez que a "casa está sossegada", o verdadeiro eu assume liberdade e seus movimentos ficam desimpedidos. Isto permite uma satisfação de um nível totalmente superior, e é esta satisfação, resultante da saúde da alma e da sua operação em correspondência à sua natureza espiritual, que pode ser corretamente chamada de alegria. Não é que o prazer cessa de existir; reencaixado na santidade, ele até será mais intenso, enquanto que desprovido de seus apelos desordenados. Ele será também não um fim das ações, mas um acompanhante, um efeito de uma vida reta, ordenada, e reconciliada com a realidade.

Quarta feira de Cinzas - Significado das Cinzas


Queremos antes de tudo corrigir um equívoco uma vez propagado aqui pelo blog: Não. Hoje, Quarta feira de cinzas, não é dia de preceito. Não obstante, é altamente recomendável que o católico vá à Santa Missa. Além do sugestivo sinal das cinzas, e da recepção do Sacratíssimo Corpo do Senhor, é também o início formal da Quaresma. Nada melhor do que adentrar neste tempo forte e santo da Igreja participando do Sacrifício e Banquete do Senhor, e comendo, como dizia Sta Teresa Benedita da Cruz, o "pão seco dos fortes".

"Mas qual o significado das cinzas?", alguém pode perguntar. "Esses católicos inventam muita coisa". Desde o Antigo Testamento, as cinzas sempre foram apresentadas como sinal de penitência. Os habitantes de Nínive, ao ouvirem a pregação de Jonas, se arrependem e fazem penitência, inclusive o rei, vestindo-se de sacos e cobrindo-se de cinzas. (Jn 3,5-6) Mardoqueu, no livro de Ester, ao saber do decreto do Rei Asuer I que condenava à morte todos os judeus do império, veste-se de saco e cobre-se de cinzas implorando o favor divino. (Est 4,1) Jó, quando arrependido, faz o mesmo. (42,6) Também Daniel, suplicando a Deus, impõe-se o cilício e se reveste de cinzas (Dn 9,3). Por fim, Jesus igualmente faz referência ao uso das cinzas em Mt 11,21.

Vê-se que o seu uso está grandemente fundamentado nas Escrituras e indica um claro sinal de arrependimento, de contrição, de súplica pela misericórdia divina. Assim, nada mais apropriado do que ser reutilizado no início da Quaresma, tempo por excelência de conversão.

Além deste significado, as cinzas também encerram a idéia da finitude e efemeridade da vida. Quando o padre no-las impõe à festa, ele diz a fórmula: "porque és pó e em pó te hás de tornar." A consciência da finitude, do limite, da não auto-suficiência é um realismo necessário sem o qual não há vida espiritual. "Deus resiste aos soberbos", diz a Escritura. Portanto, o pressuposto da conversão é a humildade. A cinza, sendo o resto daquilo que era vivo - são os restos das palmas usadas na celebração de ramos do ano anterior -, antecipa o destino humano. Torna presente aquilo que infalivelmente será a sua sorte. Ela traz à consciência a célebre fórmula de Salomão: "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade." Ao desesperançar do que vai debaixo do sol, a alma se abre àquilo que está acima do efêmero, à "Beleza tão antiga e tão nova", Àquele que, por transcender o tempo, renova todas as coisas, inclusive o nosso coração.

Mas lembremos que o cinza é também uma cor, e, como tal, ocupa um lugar entre o preto e o branco. O preto, sendo ausência de cores, foi entendido pela Igreja como um símbolo da morte - ausência de vida - ou com as trevas exteriores. O preto assim pode simbolizar aquilo que está fora da via de salvação. Um primeiro movimento em direção a Deus seria a tomada de consciência da distância d'Ele e o arrependimento. Este primeiro passo espiritual marca o trânsito entre o preto e o branco. A primeira saída do preto em direção ao branco gera o cinza. Assim, o cinza se torna, também pelo simbolismo das cores, o sinal do início de uma mudança que, por ser só início, é disposição do coração, arrependimento. "Rasgai os vossos corações", diz Deus, "e não as vestes". O coração é o que há de mais íntimo no homem, em oposição às vestes, que são aquilo que está aparente. Nesta Quaresma, peçamos ao Senhor que a nossa conversão seja verdadeira, e não meramente exterior. Que a Virgem Santíssima caminhe conosco. Pax.

Fábio

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