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Fortaleza: O mais fraco resiste


Josef Pieper

Fortaleza, heroísmo, vitória - tais conceitos sempre se pensam juntos. Isto pode não ser errado, mas simplifica demais a situação. Já chama a atenção para esse fato a frase de um dos primeiros escritores da Igreja: "Vencemos quando nos matam". E quando ouvimos um dos grandes mestres do cristianismo medieval dizer que talvez os soldados menos fortes - bem entendido, no sentido da terceira virtude cardeal - sejam os melhores soldados, então a dificuldade do tema se mostra bem surpreendente.

A quem isto não basta, pode considerar ainda a sentença de S. Ambrósio: "A Fortaleza não deve fiar-se de si mesma". Tudo isto como prefácio, para abalar um pouco convicções por demais firmemente estabelecidas.

O núcleo daquilo que verdadeiramente está implicado na virtude da Fortaleza é exposto pela ironia de Bertold Brecht: que ele desconfia quando ouve dizer que um navio precisa de uma tripulação de heróis; pois então se pergunta se algo não estará errado com esse navio, talvez velho ou podre.

Provavelmente, esse moderno autor de peças não imaginava que quinze séculos antes dele alguém já havia dito quase exatamente o mesmo. Este alguém é ninguém menos que S. Agostinho, que, é bem verdade, não fala de um navio mas do mundo como um todo: com o mundo realmente há algo de errado, já que nele há o mal e o mau. E: justamente por isso é necessária a Fortaleza; pelo fato nu e cru de que é preciso existir Fortaleza, atesta-se o poder do mal no mundo.

Dizendo-o de outra maneira: o bem não se impõe por si mesmo, como opinam os liberalismos; para que isto ocorra há necessidade do empenho da pessoa.

Empenhar-se pela realização do bem contra o poder do mal (que poderá também ser sobrepoder): eis aí circunscrito de forma bem completa aquilo que perfaz o ato da virtude da Fortaleza.

"Empenhar-se": com isto não se indica um agir qualquer, mas um agir pelo qual o agente está disposto a sofrer um prejuízo. Com estouvados saltos de esqui ou perigosas escaladas de montanha (com o que, não há muito tempo, se tentou explicar - de modo suficientemente inadequado - a virtude da Fortaleza na televisão alemã) consegue-se perfeitamente não atingir aquilo que é decisivo nessa virtude. Com um tal enfoque, por um lado exige-se demais, se realmente a Fortaleza pertencer aos elementos do "estar-certo" de todo homem (pois como pretender que tais atos sejam realizados pelo "homem comum"?); e, por outro lado, pede-se de menos; dizendo-o mais exatamente: falta seriedade.

Em geral, o ato de virtude é algo totalmente sem brilho: por exemplo, assumir ser publicamente ridicularizado por tomar o partido de uma causa justa.

Mas, quem como empiricamente mais fraco resiste ao poderio do mal, talvez arrisque coisas que tocam já mais perigosamente a existência: a liberdade, a saúde, a vida. Ao final das contas, toda verdadeira Fortaleza baseia-se na disposição para a morte; ou, mais precisamente, na disposição para o testemunho de sangue. O verdadeiro símbolo da Fortaleza é o mártir. Mas, a ausência de brilho permanece, através de todos os graus de realização, como uma característica praticamente distintiva: nada se diz de ousadia, de risco, nem de "empenho heróico" (aliás, quando disto se fala já se trata, quase com certeza, de um sinal de que nem existe a situação que exigiria autêntica Fortaleza).

E precisamente ao extremo teste da virtude, o próprio martírio costuma faltar completamente o brilho do "heróico". A ousadia, a disposição de partir para a luta, o espírito vital de ataque  do primeiro momento desvaneceram-se, e a dúvida talvez esteja penetrando até à própria consciência - a tal ponto que o sacrificado, quando, digamos, a porta da masmorra fechou-se definitivamente, é assaltado pela pergunta de se, afinal, não seria ele o idiota. DO mártir, afinal de contas, se fala só post festum; as coroas de flores da veneração só vêm depois. Antes, na própria consumação do martírio, nada há senão um prisioneiro, um solitário, um objeto de riso e, sobretudo, um emudecido.

Só lhe fica então a paciência que, ao longo de toda a tradição espiritual, tem sido considerada parte elementar da Fortaleza. Hildegard von Bingen chama à paciência coluna "que por nada se deixa amolecer".

E nós, tarde nascidos, começamos a perceber porque os antigos consideravam como a parte essencial da Fortaleza o resistir, e não o atacar.

Josef Pieper In: LAUAND, Jean. Linguagem e Ética; Ensaios. Curitiba: Editora Universitária Champagnat, 1989.
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