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O Viúvo viu a Ave - Gustavo Corção



Fiquei então convencido, nesse tempo, de que o mundo estava torto, intencionalmente torto, por malícia humana, para benefício exclusivo da detestada classe burguesa. Não havia tragédia nem mistério da iniqüidade, o que havia era trapaça. Um jeito que se lhe desse e o mundo endireitaria. O erro, sem dúvida alguma, continuaria a existir, mas com aquele caráter que tem na técnica: erro de detalhe, pequeno, estimulante, de cujo desgaste a evolução se encarregaria.

Encontrei amigos velhos e conheci novos. Em todos havia a mesma sanha antiburguesa e a mesma expectativa diante da onda de acontecimentos que engrossava a gravidade do mundo. Estávamos na época da revolução espanhola e assistíamos horrorizados às conseqüências do pacto renovado entre a política clerical, destiladora do ópio do povo, e os burgueses fardados de heróis de opereta, ávidos de poder.

Formamos logo um grupo conspirador onde havia um pouco de tudo o que fosse revolucionário: leninistas, trotzkistas e fascistas. Os últimos eram minoria; não olhavam com bons olhos o falangismo por causa do clero e guardavam reservas sobre o racismo alemão. Contentavam-se esses direitistas em arvorar a bandeira da grande raça branca e em citar versos implacáveis de Nietzsche.

Passávamos as noites trocando idéias para a retificação do eixo da Terra, com alarido, gastando generosidade, vivendo uma espécie de adolescência mental, citando autores mal lidos, condenando outros absolutamente ignorados, inventando  filosofias, acusando a Igreja de idealismo em nome de Marx e de Hegel. Os problemas mais diversos do mundo, desde o trigo até o sexo, teriam soluções fáceis desde que pudéssemos fazer um reajustamento de caráter plutônico na geologia social. Ninguém consentia em esperar sedimentações, porque era com essa tática que a Igreja e a Burguesia contavam.

De excitação em excitação, e certos de que todo o mal estava na direção burguesa baseada, ou na mais-valia ou na mentira vital, a maior parte do grupo não fazia questão da doutrina. A mim, devo confessar que o materialismo histórico nunca me pareceu suficientemente claro. Dessa discipliscência surgiam discussões, porque os outros não podiam suportar essa espécie de agnosticismo revolucionário, e três ou quatro rostos ansiosos de catequese viravam-se para mim. E lá vinha o Manifesto, a sociedade sem classes e tudo mais.

Mas pouco se me dava o materialismo histórico; o que eu queria era o fígado do burguês. Nesse ponto havia uma instantânea concordância. E assim ficávamos, até altas horas, espancando esse Judas ausente, com entremeio de anedotas inéditas.

Para mim e para o amigo Fred, quando marxistas não estavam presentes, o problema era mais psicológico do que econômico. Havia melhor entendimento entre nós; e, em lugar da divisão da sociedade em classes, que nos parecia simples de mais e um pouco ingênua, víamos a separação dos homens pela linha meridiana da mentira. Fred queria salvar o mundo da mentira ainda que devesse ser implacável e cruel. Queria entrar nas igrejas e atravessar a nave levantando um por um, para que todos reconquistassem a glória da verticalidade comprometida pelas genuflexões.

Faltava-nos, porém, uma técnica revolucionária. Como extrair força e consentimento das multidões com a leitura dum poema de Nietzsche? Nesse sentido os outros tinham razão: era mais fácil triunfar pelo proletariado do que pela grande sinceridade que se propunha armar um ninho entre os astros. Começaríamos um maquiavelismo necessário para a salvação da grande raça caucásica e do homem de amanhã.

A nossa grande satisfação consistia em imaginar, com detalhes e colorido, essa época radiosa em que pudéssemos, finalmente, sair pelo mundo marcando um sinal nas faces dos burgueses.

Eu já inventara um processo para a identificação dos réprobos com o emprego de certos reagentes, como na química. O principal seria a criança. Iria pelos caminhos com uma criancinha loura pela mão como aquele homem que descobre nascentes d’água com um bastão. Onde houvesse ajuntamento eu empurraria a criança, fá-la-ia atravessar o grupo, e onde o burguês estivesse, um abundante precipitado de mentira vital se alastraria pelo chão. Essa propriedade tinha para mim a força de uma definição: o burguês é o tipo que, diante de uma criança, segrega necessariamente a mentira.

Logo que ela acaba de nascer, a mentira, como ama-seca invisível, anda entre as rendas e as fitas do berço. A criança ainda não pode ouvir conselhos edificantes, não tem jeito de fazer pelos-sinais; só tem a boca como ponto vulnerável; então, metem-lhe na boca uma chupeta com açúcar...

Às vezes os amigos vinham à minha casa, a mesma onde moro ainda hoje, e como a amizade crescia, segundo as leis especiais desse epifenômeno, não era raro que viessem para jantar. Havia então uma trégua em nosso solarismo revolucionário, porque era difícil manter essa atitude diante duma mesa posta e de uma senhora que se desculpa por causa do pudim que se partira na fôrma. Ficávamos canhestros; o meu maior receio era que os amigos percebessem o burguesismo de meu interior. Nessas noites não havia beijo em filho, e quando a mulher subia para o sobrado levava como despedida um aceno de camaradagem soviética. Um dia, já por essas razões e também pelo heroísmo de nossas conversas, minha mulher declarou-me que eu e meus amigos éramos ridículos.

Ainda era pior o constrangimento quando calhava entrar outra pessoa da família, mãe ou irmã. Enfiávamos; nossas asas de condores ficavam murchas; e como afinal éramos filhos de boas famílias, não havia remédio senão falar os pequeninos nadas de educação burguesa.

Lá pelas onze, depois que todos saíam, então sim, nós nos encontrávamos, e, como desforra, entrávamos pela noite a dentro, entre muitos cigarros, fazendo a vigília tumultuosa daquele natal do mundo. Nunca em toda minha vida fui tão sublime e tão estúpido...

Quantas vezes já tenho pensado em vocês, meus bons companheiros de noitadas! Apesar de tudo nós nos queríamos bem. Hoje vocês estão longe, espalhados pelos quatro ventos, alguns exilados por terem passado da conversa fiada e inofensiva para os atos perigosos e irrefletidos. Meus bons companheiros, minha mulher tinha razão: nós éramos ridículos.

Aliás ela repetiu-me isso um pouco mais tarde com uma linguagem particularmente clara e convincente.

**

Naquelas noites, quando meus amigos saíam, eu fechava a casa ritualmente. Verificava os ferrolhos, despejava os cinzeiros atulhados e examinava o bico do gás, ouvindo ainda na memória o eco de nossa gritaria. A propósito de bico de gás devo dizer que minha mulher tinha cisma de incêndio. Desde os primeiros dias de nosso casamento, todas as noites, ela tinha que sentir um vago cheiro de queimado, e eu, com a solicitude de noivo, lá ia examinar os recantos da casa. Depois, na crise da acomodação, recusei-me a procurar, declarando secamente que era cisma. Mais tarde vieram os sarcasmos de marido, de especialista, e quando ela falava em cheiro de queimado eu logo acrescentava que tinha visto um clarão sinistro nos lados da cozinha.

Mas naquele tempo eu inspecionava os bicos, sondava os recantos e até gosto achava nisso. Quinze anos de casamento dão sentido aos gestos mais inúteis, que se tornam coisas de nossa vida, coisas que unem, gestos-filhos.

Enquanto eu fechava a casa, em cima, no sobrado, a mulher e as crianças dormiam. Minha casa nesse tempo, mais do que hoje, tinha dois pavimentos. Em baixo, o materialismo histórico ou a grande raça branca; em cima, dormindo desde as dez horas, a mulher que tinha passado o dia discutindo com o açougueiro, cosendo roupa, lavando os filhos e cuidando de meu jantar. Eu tinha duas casas. Há indivíduos que realizam esse feito em quarteirões diferentes e sem comunicação. Eu não; tinha duas casas na mesma; e duas vidas; e duas palavras. Para conquistar ordem e unidade no mundo, eu começava assim, tendo duas casas, e duas vidas, e duas palavras.

A escada era a comunicação. Depois de tudo bem fechado, eu subia a escada. E então, para não acordar mulher e filhos, e sobretudo para não ouvir alguma reflexão infalivelmente razoável, eu parava na porta do quarto, e ali no corredor, encostado na parede com precaução, tirava os sapatos para não fazer barulho.

**

Mas no dia seguinte recomeçava a história. Voltávamos a vociferar e discutir com o manifesto na mão. Insensivelmente íamos aumentando a solidez do grupo pela afeição, pelo brio, pelas palavras dadas, mas julgávamos que era a solidez da doutrina que nos unia melhor. Insensivelmente seríamos levados a praticar imprudências decisivas, gestos sem recuo possível, mesmo porque os agentes ativos da revolução já rondavam nossa porta para colher nossos entusiasmos. As conversas já saíam das divagações e resvalavam para conseqüências práticas. Poucos dias mais e eu me alistaria, com materialismo histórico ou sem ele, pela irresistível força do grupo, numa célula comunista.

Ora, foi nessa ocasião que minha mulher morreu.

**

Morreu moça. Levou dois meses a morrer. E passei esse tempo curvado sobre o meu caso particular. Alguém me dissera que aquela toxemia gravídica, com os progressos da medicina, conta somente um e meio por cento de casos fatais. Passei dois meses quase sem dormir por causa desse um e meio por cento, dando-lhe água e comida como às criancinhas, cuidando das menores coisas, passando um dia feliz por causa dum defecar e logo outro acabrunhado porque o pulso subia. Vi o médico deixar cair o estetoscópio em cima da cama e ficar olhando pela janela, pensativo. Quando me aproximei ele disse:
- Bonito flamboyant!

Olhei também; era no vizinho em frente. Era bonito mesmo. Num dos galhos mais altos estava um passarinho. Lembrei-me de minha cartilha que na segunda ou terceira página dizia assim: “O viúvo viu a ave.” Durante algum tempo fiquei remoendo estupidamente esse fenômeno lingüístico pelo qual eu seria um viúvo. Achei esquisito e repulsivo o vocábulo. O médico então explicou-me, com termos caridosos, que o meu caso particular estava entrando devagarzinho naquele um e meio por cento, e ponto a mão no meu braço, de leve, com cerimônia, falou-me em Deus.

Viveu ainda uns vinte dias. Uma tarde fui para o quintal e sentei-me num banco, embrutecido. Olhei o sol que se deitava por trás da casa do coronel. Lá ia o sol. O sol era um milhão e quatrocentas mil vezes maior do que a Terra; a Terra, com seus quintilhões de toneladas, era um grão de poeira perdido dentro duma enorme galáxia. Acordei de meus cálculos astronômicos pensando na minha doente desenganada. Era um caso particular, um ínfimo caso particular metido no universo e no tempo. Pensei no materialismo histórico; e senti de repente um calor de vexame no rosto.

Olhei em volta com receio que me tivessem visto o pensamento. Senti, como ainda hoje quando me lembro, um vexame intenso. Haverá decerto coisas mais graves, ações muito mais sérias, de piores conseqüências, mas não há nada mais persistente do que a lembrança duma gafe. Tudo aquilo, as discussões, os sistemas, tinha sido uma gafe. Eu bem sabia, ali sentado no banco, que voltaria depois ao meu trabalho e à vida de cada dia; que sentiria menos à medida que o tempo passasse; que tornaria a fazer meus aparelhos e ler meu galvanômetro. Mas de uma coisa eu estava certo: o materialismo histórico e a grande raça branca nunca mais teriam sentido para mim. A unidade de minha casa se restabelecia a preço alto, e o sobrado levava a melhor. Olhei para o sobrado, para as janelas do sobrado, e logo o sol, com todos os seus milhões de vezes, pareceu-me pequeno, e com todo o seu luxo de eléctrons e de fótons, pareceu-me ridículo diante daquela persiana fechada.

Veio o padre. O franciscano que tantas vezes nos visitara por causa do órgão. O órgão estava embaixo, na sala da frente; e por causa de seus fios, dos osciladores, de cada peça que durante anos estudara, o padre franciscano estava em cima, no sobrado, tirando dos panos de seu hábito um pedacinho de pão. E foi assim que o Corpo de Deus entrou pela primeira vez sob o meu teto, e que eu assisti, louvado seja Nosso Senhor, ao milagre de uma boa morte. Porque ela riu no seu último dia!

Gustavo Corção, A Descoberta do Outro.
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