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Chesterton sobre certas teorias modernas


Há, de fato, uma classe de escritores e pensadores modernos que não pode ser ignorada (...). Refiro-me àqueles que vencem todos os abismos e reconciliam todas as guerras falando sobre "aspectos de verdade" (...). Direi aqui apenas que isso me parece uma evasão que nem sequer teve a preocupação de se disfarçar com palavras engenhosas. Caso falemos de alguma coisa com um aspecto da verdade, é evidente que alegamos conhecer o que é a verdade; da mesma forma que, ao falarmos sobre a pata traseira de um cachorro, alegamos conhecer o que é um cachorro. Infelizmente, o filósofo que fala a respeito de aspectos da verdade geralmente também pergunta, "O que é a verdade?" Muitas vezes até nega a existência da verdade, ou diz ser inconcebível à inteligência humana. Como, então, pode reconhecer seus aspectos? Não gostaria de ser um artista que levasse um esboço arquitetônico a um construtor, dizendo, "Essa é a vista sul do chalé com vista para o mar, contudo, tal chalé não existe". Não gostaria sequer de ter de explicar, sob tais circunstâncias, que um chalé com vista para o maro pode até existir, mas que é impensável à mente humana. Muito menos gostaria de ser o confuso e ridículo metafísico que afirma ser capaz de ver em todos os lugares aspectos de uma verdade que não existe. É perfeitamente óbvio que há verdades em Kipling, que há verdades em Shaw e Wells. Mas, o grau com que as podemos perceber depende estritamente de quão distante estamos de uma concepção interna e definida do que seja a verdade. É ridículo supor que quanto mais céticos, mais veremos o bem em todas as coisas. É claro que quanto mais certos estivermos a respeito do que é o bem, mais o veremos em todas as coisas.

Peço, então, que concordemos ou discordemos desses homens. Rogo que concordemos com eles ao menos em ter uma crença abstrata. Mas sei que no mundo moderno é comum haver várias objeções indeterminadas a se ter uma crença abstrata, e sinto que não devemos seguir adiante até que tenhamos nos ocupado de algumas delas. A primeira objeção é facilmente apresentada.

Uma incerteza comum em nossos dias no tocante ao uso de convicções extremas é a noção de que tais convicções, especialmente em questões muito abrangentes, foram responsáveis por aquilo que chamamos de intolerância. Contudo, um pouco de experiência direta dissipará tal visão. Na vida real, as pessoas mais intolerantes são as que não têm nenhuma convicção. Os economistas da escola de Manchester que discordam do socialismo, levam o socialismo a sério. O jovem da rua Bond não sabe o que o socialismo significa, muito menos sabe se concorda com isso, e tem certeza absoluta que os socialistas fazem tempestade em copo d'água. O homem que compreende a filosofia calvinista o bastante para com ela concordar deve compreender a filosofia católica para discordar. É o dúbio homem moderno, que não está certo sobre nada, que tem certeza de que Dante estava errado. O circunspecto opositor da Igreja Latina ao longo da história, mesmo ao mostrar que ela produziu grandes infâmias, deve saber que produziu grandes santos. É o obstinado comerciante, que não conhece história e não acredita em nenhuma religião, que está, contudo perfeitamente convencido que todos os padres são patifes. (...) A intolerância pode ser definida, grosso modo, como a raiva dos homens que não têm opinião. É a resistência apresentada às idéias definidas por um grupo indefinido de pessoas cujas idéias são excessivamente incertas. Tal intolerância pode ser chamada de aterrador furor [d]os indiferentes. Esse furor [d]os indiferentes é na verdade uma coisa terrível; causou todas as perseguições muito generalizadas. Neste estágio, não foram os diligentes os que perseguiram; não havia número suficiente. Foram os imprudentes que espalharam fogo e opressão pelo mundo. Foram as mãos dos indiferentes que acenderam as tochas; foram as mãos deles que produziram ruína. Da dor de uma certeza passional nasceram algumas perseguições; mas estas produziram não intolerância, mas fanatismo - uma coisa muito diferente e, de certo modo, admirável. A intolerância, em geral, sempre foi a onipotência generalizada dos imprudentes esmagando os precavidos.

Há pessoas, contudo, que tentam achar algo mais profundo do que isso nos possíveis males do dogma. Muitos sentem que uma forte convicção filosófica, embora não produza (do modo como percebem) aquela condição morosa e essencialmente leviana que chamamos intolerância, produz certa atenção, exageros, e alguma impaciência moral, que podemos concordar em chamar de fanatismo. Dizem, de modo geral, que idéias são coisas perigosas. Na política, por exemplo, é comum exortarem contra um homem como o Sr Balfour, ou contra alguém como o Se John Morley, cuja profusão de idéias é perigosa. A verdadeira doutrina neste ponto certamente não é, mais uma vez, difícil de expressar. Idéias são perigosas, mas o tipo de homem para quem são menos perigosas é o homem de ideais. Está familiarizado com as idéias e caminha por elas como um domador de leões. Idéias são perigosas, mas o tipo de homem para quem são mais perigosas é o homem sem idéias. O homem sem idéias verá a primeira delas subir à cabeça como o vinho num abstêmio. Creio que é um erro comum entre os idealistas radicais de meu partido e período sugerir que financistas e comerciantes sejam perigosos para o império porque são demasiado sórdidos e materialistas. A verdade é que financistas e comerciantes são perigosos para o império porque podem ser sensíveis a qualquer sentimento e idealistas a respeito de qualquer ideal, de qualquer um que encontram a esmo. Assim como um garoto que não sabe nada a respeito de mulheres, e facilmente toma uma mulher qualquer por aquele tipo de mulher, assim também tais homens práticos, desacostumados com causas, sempre tendem a pensar que caso uma coisa tenha provado ser um ideal, seguramente provou ser o ideal.

Muitos seguiram Cecil Rhodes abertamente, por exemplo, porque tinha uma visão. Poderiam tê-lo seguido por ter um nariz. Um homem sem qualquer tipo de sonho de perfeição é uma monstruosidade equivalente a um homem sem nariz. As pessoas dizem sobre tal indivíduo, em sussurros quase febris, "Ele sabe o que quer", o que equivale exatamente a dizer, em idênticos sussurros, "Ele assoa o próprio nariz". A natureza humana simplesmente não pode subsistir sem algum tipo de esperança e propósito; como o juízo do Antigo Testamento diz, com razão: "quando não há ideal o povo perece". Mas é justamente porque o ideal é necessário ao homen, que o homem sem ideal está em permanente risco de cair no fanatismo. Não há nada [que] tenha mais probabilidade de deixar o homem aberto às incursões repentinas e irresistíveis de visões desequilibradas do que o cultivo de hábitos comerciais. Todos conhecem homens de negócio inflexíveis, que acreditam que a Terra é chata ou sabem que o Sr Kruger estava à frente de um grande despotismo militar, ou creem que os homens são herbívoros ou que Bacon escreveu as peças de Shakespeare. Crenças religiosas e filosóficas são, realmente, tão perigosas quanto fogo, e nada pode tirar-lhes a beleza do perigo. Mas há apenas uma forma de nos protegermos do perigo excessivo que oferecem; devemos imergir na filosofia e nos encharcar de religião.

Então, em poucas palavras, descartamos os perigos antagônicos da intolerância e do fanatismo; a intolerância que seria uma grande indefinição e o fanatismo que seria uma grande atenção. Declaramos que a cura para a intolerância é a crença; afirmamos que a solução para os idealistas são idéias. Conhecer as melhores teorias sobre a existência e escolher dentre elas a melhor (ou seja, escolher o melhor das próprias convicções) nos parece o modo apropriado para não nos tornarmos intolerantes ou fanáticos, mas para sermos algo mais firme que um intolerante e mais terrível que um fanático: uma pessoa de opinião definida. Mas a opinião definida deve, neste sentido, começar com as questões básicas do pensamento humano, e estas não devem ser descartadas como coisas irrelevantes, tal como acontece com a religião em nossos dias. Mesmo se pensarmos na religião como um problema insolúvel, não deveremos considerá-la irrelevante. Mesmo se não tivermos nenhuma opinião a respeito das verdades definitivas, deveremos sentir que onde quer que tal questão exista no homem, deve ser para esta pessoa algo mais importante que todas as demais coisas. No momento em que uma coisa deixa de ser incognoscível, passa a ser indispensável.

Não há dúvida de existir atualidade na idéia de algo limitado, irrelevante ou mesmo mesquinho no ataque à religião de outra pessoa, ou ao discutir política ou ética tomando por base outra pessoa, ou ao discutir política ou ética tomando por base a religião. Pode haver menos dúvida ainda de que a acusação dessa limitação é, em si, quase ridícula e limitada. Tomemos um exemplo de acontecimentos relativamente atuais: sabemos que não raro um homem era considerado um monstro de intolerância e obscurantismo caso suspeitasse dos japoneses serem pagãos. Ninguém pensaria existir nada de obsoleto ou fanático em desconfiar de um povo por conta das diferenças práticas ou nos mecanismos políticos. Ninguém pensaria ser intolerante dizer de um povo: "Receamos a influência deles, pois são protecionistas". Ninguém pensaria ser tacanho dizer: "Lamento que tenham progredido porque são socialistas, ou individualistas manchesterianos, ou ferrenhos defensores do militarismo e do serviço militar obrigatório". Importa a diferença de opinião sobre a natureza dos Parlamentos; mas a respeito da natureza do pecado não significa absolutamente nada. A diferença de opinião acerca do objeto dos impostos tem muita importância; mas diferir de opinião a respeito da finalidade da existência humana não tem nenhuma importância. Temos o direito de desconfiar de alguém que vive num tipo diferente de municipalidade; mas não temos o direito de suspeitar de um homem que vive num tipo diferente de cosmo. Este tipo de esclarecimento certamente tem relação com o tipo menos esclarecido que se possa imaginar. Para recorrer a uma frase que empreguei anteriormente, isso equivale a dizer que tudo tem importância, exceto tudo. A religião é exatamente o tipo de coisa que não pode ser deixada de fora - porque inclui tudo. A mais desatenta das pessoas não pode colocar tudo dentro de uma mala de mão e simplesmente esquecer a mala. Gostemos ou não, sempre temos uma idéia geral sobre a existência. E tal visão, gostemos ou não, altera, ou mais precisamente, cria e envolve tudo que dizemos ou fazemos. Caso consideremos o cosmo como um sonho, consideraremos a questão fiscal como um sonho. Caso consideremos o cosmo como uma piada, consideraremos a catedral de São Paulo como uma piada. Caso tudo seja ruim, então devemos acreditar (se isto for possível) que a cerveja é ruim; caso tudo seja bom, seremos forçados à conclusão um tanto fantástica de que a filantropia científica é boa. Todo homem comum deve defender um sistema metafísico, e crê-lo firmemente. A grande possibilidade é a de que possa ter acreditado nele tão tenazmente e por tanto tempo que o tenha esquecido por completo.

A referida situação, com certeza, é possível. De fato, é a situação de todo o mundo moderno. O mundo moderno está repleto de homens que creem em dogmas de modo tão inflexível que nem mesmo sabem que são dogmas. Pode ser dito até que o mundo moderno, como um corpo coletivo, crê em certos dogmas com tanto vigor que nem sabe que são dogmas. Pode ser considerado "dogmático", por exemplo, em certos círculos tidos como progressistas, supor a perfeição ou aprimoramento do homem num outro mundo. Mas não é considerado "dogmático" supor a perfeição ou aprimoramento do homem neste mundo; ainda que a idéia de progresso não esteja demonstrada tanto quanto não está a idéia de imortalidade e seja, do ponto de vista racionalista, muito improvável. O progresso é um de nossos dogmas, e um dogma é algo que não é tido como dogmático. Ou, novamente, não vemos nada de "dogmático" na inspiradora, embora demasiado assustadora, ciência física, que afirma devermos coletar os fatos pelos fatos, mesmo que pareçam tão inúteis como gravetos e fios de palha. Esta é uma grande e sugestiva idéia cuja utilidade pode ser provada, mas que, considerada em abstrato, é tão questionável quanto recorrer a oráculos ou a templos sagrados, que dizem ser capazes de se comprovar. Assim, por não estarmos numa civilização que acredita firmemente em oráculos ou locais sagrados, vemos o total furor daqueles que se mataram para descobrir o Santo Sepulcro. No entanto, por estarmos numa civilização que acredita no dogma dos fatos pelos fatos, não vemos o total frenesi daqueles que se matam para descobrir o polo Norte. Não me refiro a uma defensável utilidade suprema que é verdadeira tanto em relação às cruzadas quanto em relação às explorações polares. Digo apenas que vemos a singularidade estética e superficial, a qualidade assustadora da idéia de homens cruzando um continente com exércitos para conquistar um lugar onde um homem morreu. Contudo, não vemos a singularidade estética e assustadora de homens morrendo em agonia para descobrir um lugar onde ninguém vive - um lugar que é interessante apenas porque supõem ser o lugar de encontro de algumas linhas que não existem.

Empreendamos uma longa jornada e comecemos uma busca incômoda. Escavemos e procuremos até encontrarmos nossas próprias opiniões. Os dogmas que realmente defendemos são muito mais fantásticos e, talvez, muito mais belos do que pensamos. No curso destes ensaios, temo ter falado, de tempos em tempos, de racionalistas e de racionalismo de uma forma depreciativa. Por estar cheio daquela brandura que deve vir ao fim das coisas, até mesmo ao fim de um livro, peço desculpas aos racionalistas, exatamente por chamá-los de racionalistas. Não há racionalistas. Todos nós acreditamos em contos de fada e neles vivemos. Alguns, com um suntuoso viés literário, acreditam na existência de uma mulher vestida de sol. Outros, com um instinto mais rústico, mais élfico, (...) acreditam apenas no impossível sol propriamente dito. Alguns acreditam no indemonstrável dogma da existência de Deus; outros, no igualmente indemonstrável dogma da existência do homem da casa ao lado.

As verdades se transformam em dogmas no instante em que são contestadas. Assim, todo homem que expressa uma dúvida, descreve uma religião. E o ceticismo de nosso tempo realmente não destrói as crenças, ao contrário, as cria; definiu-lhes os limites e a forma simples e desafiante. Nós, que somos liberais, outrora acreditávamos no patriotismo, antes o considerávamos razoável, e pensávamos pouco a esse respeito. Agora que sabemos que é incompreensível, o consideramos correto. Nós, que somos cristãos, nunca nos daremos conta do grande senso comum filosófico inerente àquele mistério, até que os escritores anticristãos nos chamaram a atenção. A grande marcha da destruição mental continuará. Tudo será negado. Tudo se tornará um credo. É razoável negar a existência das pedras da rua; será um dogma religioso declará-lo. É uma tese racional dizer que vivemos num sonho; será sanidade mística dizer que estamos acordados. Velas serão acesas para atestar que dois mais dois são quatro. Espadas serão empunhadas para provar que as folhas são verdes no verão. Ficaremos a defender, não somente as virtudes e sanidades inacreditáveis da vida humana, mas algo mais inacreditável ainda, este imenso universo impossível que salta aos olhos. Seremos aqueles que olharão a grama e os céus impossíveis com estranha coragem. Seremos aqueles que viram e creram.

G.K. Chesterton, Hereges.
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