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Consequências concretas da perda da capacidade de apreciação da bondade intrínseca dos seres

Os modernos meios de comunicação de massas exercem um influxo mais poderoso nos domínios do bonum [que nos domínios do verum]. Pois, enquanto bom, tudo aquilo que é reivindica também uma réplica, uma resposta, por parte do homem, ainda que de natureza distinta daquela que lhe é solicitada enquanto verdade. Poderíamos desdobrar essa relação em três momentos:

1) em primeiro lugar o bom pede nossa aprovação, que nós adiramos a ele: também verbalmente, mas sobretudo com as fibras mais íntimas de nosso ser, com toda a nossa pessoa;

2) na continuação, o que se encontra dotado de bondade postula que se deseje sinceramente sua plenitude, seu enaltecimento perfectivo, o desabrochar enriquecedor contido na energia primordial do seu ato de ser;

3) por fim, nossa "resposta" ao bom levar-nos-á, na medida do possível, a apoiar esse desenvolvimento de perfeição com nossa própria atividade, a cooperar com fatos para a realização do seu derradeiro apogeu.

Tudo o que diminua o alcance dessa resposta, por suprimir um ou mais desses elementos, eqüivale - naquilo que está nas nossas mãos - a cercear a realidade em sua constitutiva índole de ente-bom.

Dando continuidade ao argumento, podemos dizer que, obviamente, o bombardeio informativo a que, com maior ou menor vontade, nossos contemporâneos são submetidos, acaba por lhes tolher uma possível ação plena de vibração e de brio, tal como exige a realidade que os circunda em virtude de sua intrínseca bondade.

E, como consequência, posto que ens e bonum se identificam, o universo deixa de ser percebido e vivido como real.

Logicamente, nenhum homem tem a obrigação de responder com todas as suas consequências à bondade ou malícia de quanto os meios de comunicação oferecem a seu conhecimento. Sua própria índole espaço-temporal o impede. Não vão por aí aos tiros. O perigo reside em que a contínua exposição à realidade perante as quais não pode reagir, nem na promoção do seu bem nem sufocando o seu mal, vá atrofiando a sua própria capacidade de resposta e acabe por se comportar perante a própria circunstância do mesmo modo como se relaciona com o que está fora de seu âmbito de ação. Um grande número de estudos experimentais mostram que esse processo afetou boa parte de nossos concidadãos.

E é lógico. A criança exposta durante anos a milhares de cenas de violência, as quais não só não repudia, senão que acaba inclusive por aprovar e buscar; o adulto que dia-a-dia vê desfilar diante dele no jornal da televisão atrocidades que exigiriam uma atuação decidida com o objetivo de suprimi-las; o cidadão que se acostuma a simples condenações verbais de atentados por parte daqueles que, podendo, não movem um dedo para pôr fim a esses despropósitos ...; como não irão todos eles habituando-se a desnudar a realidade de seu caráter constitutivo de bondade ou malícia, que reclama uma resposta? Como não acabarão por tratar as mediações com a família, o trabalho ou a comunidade política com a mais radical atonia e carência de ação incisiva que lhes impõem os meios de comunicação? Como não haveriam de se retrair ao privado?

Porque, inclusive, a simples aprovação ou desaprovação profunda, sincera, da multiplicidade de acontecimentos de que toma notícia submeteria qualquer subjetividade a uma tal tensão que apenas pessoas de especial riqueza humana seriam capazes de suportar. A conclusão é evidente: evitam-se as respostas pessoais nos três níveis a que antes aludíamos e, quase instintivamente, estende-se esse modo de comportamento à totalidade do próprio mundo. Em consequência, o universo assim mutilado vai-se tornando chato, insubstancial, monocórdio e incapaz, por sua vez, de construir um homem que possa se abrir francamente ao som da verdade e do bem. 

E surge, onipresente, o aborrecimento: um tédio sem precedentes, universal, quase ontológico, derivado de uma "realidade-sem-ser". Inicia-se, então, a ansiosa busca dos sucedâneos: sexo, droga, emoções "fortes"... O incomparável êxito das denominadas "novelas televisivas" explica-se, em parte, pelo fato de oferecerem um substitutivo à exigência humana de mover-se e trabalhar diante do bom e do mau: uma débil alternativa que substitui a reação vital e ontológica por uma simples comoção sentimentalóide, mas que oferece ao sujeito a pequena e superficial sacudida que pode suportar uma existência sem autêntica paixão pelo real, sem pathos metafísico.

(Refleti muito sobre tudo isso, antes que os dramas televisivos baseados na vida real tivessem sido produzidos em tal quantidade que dessem origem a um processo inflacionário. O que levou Alejandro Navas a sentenciar: "O interminável desfile de situações trágicas sobre a telinha tem outro efeito complementar sobre o espectador habitual: o entretenimento obsessivo com as vidas dos demais provocado por uma curiosidade mórbida. O espectador, que desaparece na passividade, preenche seu vazio com as imagens das vidas alheias. Essa contemplação dos dramas e problemas alheios oferecidos pela televisão serve de desculpa para contentar-se com a própria mediocridade. E ver como os poderosos, os bem-arrumados, os famosos sofrem da mesma maneira que os demais mortais, torna mais fácil ao espectador massificado realizar a sua parte de se sentir eximido da tarefa de assumir as próprias responsabilidades.

E, na medida em que a televisão ocupa cada vez mais horas dos espectadores, a comunicação interpessoal debilita-se, decai a vida familiar, diminui a atenção dedicada às crianças. E o resultado desse processo será o surgimento de novas gerações de indivíduos alienados, sem defesas intelectuais, facilmente manipuláveis").

Evidentemente, quanto venho assinalando não é a raiz, apenas um sintoma da desestrutura metafísica inerente à civilização que nos acolhe: incapaz de perceber que o universo e, de forma eminente, as pessoas, são verdadeiros e bons precisamente enquanto são. Análises similares poderiam ser realizadas em muitos outros âmbitos. Todas conduziriam a um mesmo resultado: o fundamento da anemia e cegueira contemporâneas é, como antes já sugeri, uma profusão de formas de opção pela subjetividade, por um eu antiontológico e esquecido do ser, que acaba por obscurecer tudo aquilo que, de um ou de outro modo, não se refira ao sujeito que o considera. O esquecimento do ser, a que tantas vezes temos chamado a atenção, é inseparável de uma atitude egoísta que faz depender o valor constitutivo de qualquer realidade de um único e privilegiado aspecto: sua dependência em relação à subjetividade que se auto-introduz nela. As coisas e as pessoas já não têm valor em si mesmas, só exclusivamente enquanto apreciadas por mim e úteis para mim.

Tomás Melendo, Metafísica da realidade. São Paulo: Instituto brasileiro de filosofia e ciência "Raimundo Lúlio" (Ramon Llull), 2002. p. 109-111.
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