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O conflito sobre o Sábado


Vamos seguir o diálogo de [Jacob] Neusner*, o crente judeu, com Jesus e começamos com o sábado; observar [o sábado] cuidadosamente é para Israel expressão central da sua existência como vida em aliança com Deus. Mesmo ao leitor superficial dos Evangelhos é conhecido que o conflito acerca do que pertence ou não ao sábado está no centro das discussões de Jesus com o povo de Israel do seu tempo. A explicação habitua diz que Jesus rompeu com uma mesquinha prática legalista e em vez dela teria oferecido uma visão mais generosa e mais livre, que abriria as portas para uma ação racional e de acordo com a situação. Como prova disso, serve a frase: "O sábado é para o homem e não o homem para o sábado" (Mc 2,27), na qual se encontra uma visão antropocêntrica de toda a realidade, de que resulta por si mesma uma explicação "liberal" dos mandamentos. Assim, por conta dos conflitos em torno do sábado foi deduzida a imagem do Jesus liberal. A sua crítica ao judaísmo do seu tempo seria a crítica do homem refletido, livre e racional a um legalismo ossificado, que no fundo significa hipocrisia e rebaixa a religião a um sistema serviu, que inibe o homem no desenvolvimento da sua obra e da sua liberdade. Compreende-se então que daqui não pode surgir nenhuma imagem favorável do judaísmo; a crítica moderna, a começar com a Reforma, enxergou assim este "judaísmo" regressado no catolicismo.

Em todo o caso, etá aqui em debate a questão acerca de Jesus - quem Ele realmente era e o que realmente queria - e também a pergunta acerca da realidade do judaísmo e do cristianismo: era Jesus na realidade um rabino liberal, um precursor do liberalismo cristão? Então, o Cristo da fé e, portanto, toda a fé da Igreja não passam de um enorme erro?

Neusner rápida e surpreendentemente põe de lado este tipo de explicação; ele pode fazer isso, porque de um modo convincente descobre o ponto real do conflito. A respeito do conflito sobre o ato de os discípulos arrancarem espigas, ele diz apenas: "O que inquieta não é a infração dos discípulos do mandamento acerca do respeito do sábado. Isso seria insensato e passaria ao lado da questão". Certamente, quando lemos o conflito sobre as curas ao sábado e os relatos sobre a irada tristeza do Senhor por causa da dureza dos corações dos defensores da explicação dominante acerca do sábado, vemos que nestas discussões estão em causa as questões mais profundas a respeito do homem e do modo correto de louvar a Deus. Neste sentido, também não é certamente de todo "trivial" este lado do conflito. Mas Neusner tem ainda razão quando, na resposta de Jesus a propósito de os discípulos colherem espigas no sábado, encontra claramente exposto o núcleo mais profundo do conflito.

Jesus defende o modo de proceder dos discípulos ao saciarem sua fome em primeiro lugar com a referência a Davi, que comeu pão sagrado com os companheiros na casa de Deus" que nem ele nem os seus companheiros, mas apenas os sacerdotes podiam comer." Depois continua: "Ou não lestes na lei que ao sábado os sacerdotes no templo não respeitam o sábado, sem que com isso se tornem culpados? Eu digo-vos: Aqui está alguém que é maior que o templo. Se tivésseis compreendido o que quer dizer 'quero misericórdia, não o sacrifício' (Os 6,6; ISam 15,22), então não teríeis condenado inocentes; porque o Filho do homem é senhor do sábado" (Mt 12,4-8). E acrescenta Neusner: "Ele (Jesus) e os seus discípulos podem fazer ao sábado o que quiserem, porque eles tomaram o lugar dos sacerdotes no templo: o lugar sagrado deslocou-se. Ele consiste agora no círculo do Mestre e dos seus discípulos" (p. 86s).

Aqui devemos deter-nos um instante para vermos o que é que o sábado representava para Israel, e assim também percebermos o que estava em jogo nesta disputa. Deus repousou no sétimo dia - assim noz diz o relato da criação. "Neste dia festejamos a criação", conclui Neusner com razão. E mais: "Não trabalhar ao sábado significa mais do que um ritual penoso para cumprir. É uma espécie de imitação de Deus". Assim, pertence ao sábado não apenas negativamente não fazer nada de atividades exteriores, mas também positivamente o "repouso" que deve expressar-se espacialmente: "Para observar o sábado deve por conseguinte permanecer-se em casa. Renunciar a todo o tipo de trabalho não basta, é preciso também descansar, e isso significa socialmente que num dia da semana é reconstruído o círculo da família e da casa, onde cada um está em casa e tudo está no seu lugar." O sábado não é, portanto, uma questão de piedade pessoal, ele é o núcleo de uma ordem social: "Este dia faz do eterno Israel o que ele é, o povo repousa tal como Deus depois da criação no sétimo dia da sua criação."

Poderíamos aqui meditar sobre como seria saudável também para a nossa sociedade atual se num dia as famílias permanecessem juntas, tornassem o lar como casa e como realização da comunhão no repouso de Deus. Mas renunciemos a estas reflexões e permaneçamos no diálogo entre Jesus e Israel, que é inevitavelmente um diálogo entre Jesus e nós como é o nosso diálogo com o povo judaico hoje.

A palavra-chave "descanso" como elemento constitutivo do sábado, segundo Neusner, faz a relação com o convite de Jesus que precede no Evangelho de S. Mateus a história dos discípulos que colhem espigas. É a assim dita messiânica exclamação de júbilo que começa deste modo: "Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes, mas as revelastes aos pequeninos..." (Mt 11,25-30). Na nossa explicação habitual, parece tratar-se aqui de dois textos completamente diferentes: um fala da divindade de Jesus, o outro, da disputa sobre o sábado. Em Neusner torna-se claro que estes dois textos estão intimamente ligados um ao outro, porque nas duas vezes se trata do mistério de Jesus - do "Filho do homem", do "Filho" em absoluto.

As frases que precedem imediatamente a história do sábado dizem assim: "Vinde a Mim, todos os que andais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração, e achareis alívio para as vossas almas, pois o meu jugo é suave e a minha carga leve." (Mt 11,28-30). Normalmente, isto é explicado a partir da idéia do Jesus liberal, portanto, moralmente: a concepção liberal que Jesus tem da lei alivia a vida perante o "legalismo judaico". Mas esta teoria não é muito convincente na prática, pois o seguir Jesus não é cômodo - foi isto justamente que Jesus nunca afirmou. Mas, então, como é?

Neusner mostra-nos que não se trata de nenhuma forma de moralismo, mas sim de um texto altamente teológico, ou, mais precisamente, de um texto cristológico. Por meio do tema do repouso e do tema da fadiga e do peso com ele relacionado, o texto está orientado para a questão do sábado. O repouso de que aqui se trata tem agora a ver com Jesus. O ensino de Jesus sobre o sábado aparece agora em consonância com esta chamada e com a palavra sobre o Filho do homem como senhor do sábado. Neusner resume assim o conteúdo do conjunto: "O meu jugo é suave, eu vos concedo descanso. O Filho do homem é verdadeiramente senhor do sábado. Porque o Filho do Homem é agora o sábado de Israel - assim agimos como Deus."

Agora Neusner, de um modo ainda mais claro do que antes, pode dizer: "Nenhuma admiração, portanto, que o Filho do homem seja senhor do sábado! Não o é porque explica de um modo liberal as limitações do sábado... Jesus não era nenhum reformador rabínico, que pretendesse tornar a vida do homem 'mais fácil'... Não, não se trata aqui de aliviar um peso... É a autoridade de Jesus que está em jogo...". "Agora Jesus está sobre a montanha e toma o lugar da Tora". O diálogo do crente judeu com Jesus alcança aqui o seu ponto decisivo. Agora o judeu, na sua nobre timidez, não pergunta a Jesus, mas aos discípulos de Jesus: "O teu Mestre, o Filho do homem, é realmente senhor do sábado? E de novo pergunto: o teu Mestre é Deus?"

Assim o núcleo autêntico do debate torna-se manifesto. Jesus compreende-se a si mesmo como a Tora - como a palavra de Deus em pessoa. O prólogo imponente do Evangelho de S. João - "No princípio era a palavra e a palavra estava junto de Deus e a palavra era Deus" - não diz outra coisa senão o que o Jesus do Sermão da Montanha e o Jesus dos Evangelhos sinópticos diz. O Jesus dos quatro Evangelhos e o Jesus dos sinópticos é um e o mesmo: o verdadeiro Jesus "histórico".

O núcleo dos conflitos sobre o sábado é a questão sobre o Filho do homem - a questão a respeito de Jesus Cristo mesmo. 

Mas agora devemos prestar atenção a um outro aspecto da questão que claramente havemos de encontrar no Quarto mandamento: o que na mensagem de Jesus incomoda o rabino Neusner não é só a centralidade de Jesus; ele revela precisamente isso e em última instância não discute sobre este assunto, mas sim sobre o que resulta daí para a vida concreta de Israel - o sábado perde a sua grande função social. Ele pertence aos elementos essenciais que sustentam Israel. A centralização em Jesus rompe com esta estrutura sagrada e põe em perigo um elemento essencial na sustentação do povo.

À pretensão de Jesus está ligado o fato de que a comunidade dos seus discípulos toma o lugar de Israel. Não deve então isto inquietar quem mantém o seu coração no "eterno Israel"? À questão sobre a pretensão de Jesus de ser Ele mesmo em pessoa a Tora e o Templo está também ligado o tema de Israel - a questão da comunidade viva do povo -, no qual se realiza a palavra de Deus. 

E agora se levanta aqui para os cristãos a questão: Era bom pôr em perigo a grande função social do sábado, romper com a ordem sagrada de Israel em favor de uma comunidade dos discípulos, a qual, por assim dizer, se define a partir da figura de Jesus? Esta pergunta podia e pode esclarecer-se somente na comunidade dos discípulos que estava para se desenvolver - a Igreja. Este desenvolvimento não pode ser seguido aqui. A ressurreição de Jesus "no primeiro dia da semana" trouxe consigo que, a partir de então, para os cristãos, este "primeiro dia" - o início da criação - se tornou o "dia do Senhor", para o qual por si mesmo se transpuseram os elementos essenciais do sábado do Antigo Testamento.

Que a Igreja tenha assumido de novo a função social do sábado - sempre endereçado para o "Filho do homem" - mostrou-se claramente quando Constantino, na sua reforma do Direito inspirada no cristianismo, ligou a este dia também liberdade para os escravos, além de introduzir no seu sistema jurídico reformado com base no cristianismo o dia do Senhor como um dia de liberdade e de descanso. Parece-me portanto altamente questionável que modernos liturgistas pretendam marginalizar esta função social do domingo, que está em continuidade com a Tora de Israel, como desvio constantiniano. Mas aqui está naturalmente o grande problema da relação entre fé e ordem social, entre fé e política.

RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007. p.104-109.
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