Sutilezas do amor próprio

"Passaste toda a vida na crença de que és totalmente dedicado aos outros, e jamais egoísta. Nada alimenta mais o orgulho que tens de ti do que esse tipo de testemunho interno de que estás totalmente liberto do amor de ti mesmo, e sempre generosamente devotado aos teus semelhantes. Mas toda essa devoção que pareces consagrar aos outros consagras, na verdade, a ti mesmo. Tens tanto amor a ti que te congratulas perpetuamente contigo por estares livre dele; toda a tua sensibilidade se resume no medo de não estares inteiramente satisfeito contigo; eis a razão de todos os teus escrúpulos. É o 'eu' que te torna tão ardente e tão sensível. Queres que não somente Deus, mas também os homens, estejam satisfeitos contigo, e queres estar satisfeito contigo em todos os teus tratos com Deus.

De mais a mais, não estás acostumado a contentares-te com a simples boa vontade - o amor que tens a ti mesmo quer uma emoção viva, um prazer tranquilizador, alguma espécie de encanto ou excitação. Estás habituado em demasia a seres guiado pela imaginação e a supores que a tua mente e a tua vontade são inativas, a menos que tenhas consciência do seu funcionamento. E assim, dependes de uma espécie de excitação semelhante às que despertam as paixões ou as representações teatrais. (...) Nada se opõe mais, não só à vida da fé, como também à verdadeira sabedoria. Não existe ilusão mais perigosa do que as imaginações por cujo intermédio as pessoas tentam evitar a ilusão. É a imaginação que nos desencaminha; e a certeza que buscamos por meio da imaginação, do sentimento e do gosto é uma das fontes mais perigosas do fanatismo. Esse é o abismo da vaidade e da corrupção que Deus quer fazer-te descobrir em teu coração; precisas olhar para ele com a calma e a simplicidade que pertencem à humildade verdadeira. É simples amor de ti mesmo o ficares inconsolável à vista das tuas próprias imperfeições; mas enfrentá-las rosto a rosto, sem lisonjeá-las nem tolerá-las, procurando corrigir-te sem te tornares irritável - isso é desejar o que é bom em si e pelo amor de Deus."

Fénelon