O Homem possui duas vidas, e pode morrer duas vezes. Isso nada tem que ver com a crença tola na reencarnação. Me refiro à vida física e à vida espiritual ou da graça. Quando Adão foi criado, ele possuía a vida natural - que o tornava imagem de Deus - e a vida da graça - que o tornava semelhança de Deus. Havia sido advertido de que não comesse do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal pois no dia em que dela comesse certamente ele morreria. Ocorre que Adão comeu e, porém, ainda viveu quase mil anos. Uma leitura superficial e imediata concluiria que Deus errou no profetizar a morte imediata de Adão após a queda. Ou isso ou será preciso recorrer a hermenêuticas esquisitas para encontrar na expressão "no dia" uma metáfora mais esquisita ainda.
A morte de que se fala é a morte espiritual que, então, não indica uma cessação da vida orgânica, mas a perda de um vínculo que unia o homem a Deus e sobrenaturalizava as suas ações, dispondo-o para a consumação da visão beatífica, o ver Deus face a face. Com o Pecado, o homem perdeu sua semelhança com Deus e a sua alma, antes luminosa, encheu-se de trevas.
Esta Queda foi ocasião de uma intervenção ainda mais direta de Deus. Para salvar o homem, vendo-o impedido de salvar a si mesmo, de sair da vala na qual tinha caído, Deus assume a natureza humana - corpo e alma - e se entrega em Sacrifício, corrigindo o antigo erro. A angústia e fidelidade de Jesus no jardim do Getsêmani corrigem a traição no jardim do Éden. Aquilo que, neste último, terminou com a expulsão dos nossos primeiros mais, culminará no esponsal divino com os homens.
Se a primeira mulher foi ocasião de Queda, agora será dada aos homens uma segunda, nascida já do lado aberto da fidelidade consumada do Cristo dormido na cruz, e, portanto, geradora de fidelidade nos homens: a Igreja. Quanto ao fruto proibido, é dito que a mulher, vendo-o de agradável aspecto, tomou-o e comeu-o. Já o fruto desta nova árvore, Jesus dá-o antecipadamente aos Apóstolos que igualmente "tomam e comem", "tomam e bebem": a Santíssima Eucaristia.
O Salmo da Quinta Feira Santa nos diz que "é sentida por demais pelo Senhor a morte dos seus santos, seus eleitos." Sendo que a alma humana é imortal, a morte física é apenas uma passagem. Isso, obviamente, embora seja um mal - visto que não é natural que a alma exista separada do corpo -, não o é de todo. Nesta ordem atual de coisas, os santos desejam morrer para estar com Deus. É o que Paulo deseja quando escreve que prefere partir. Parece-me que a morte aí referida é, antes, a morte espiritual, a perda da graça, aquela mesma que ocasionou a encarnação e a morte de Jesus.
Todos nós podemos perder a vida da alma. Basta que cometamos um pecado mortal. Neste sentido, Sta Teresa D'Avila escreve que este é o único mal de fato digno deste nome porque ameaça de condenação eterna a pobre alma. Cito-a:
"Antes de passar adiante, quero dizer-vos que considereis o que será ver este castelo tão resplandecente e formoso (que é a alma), esta pérola oriental, esta árvore de vida que está plantada nas mesmas águas vivas da Vida, que é Deus, quando cai em pecado mortal. Não há trevas mais tenebrosas, nem coisa tão escura e negra que ela o não esteja muito mais. Basta saber que, estando até o mesmo Sol, que lhe dava tanto resplendor e formosura no centro de sua alma, todavia é como se ali não estivesse, para participar d'Ele, apesar de ser tão capaz de gozar de Sua Majestade, como o cristal o é para nele resplandecer o sol. Nenhuma coisa lhe aproveita; e daqui vem que todas as boas obras que fizer, estando assim em pecado mortal, são de nenhum fruto para alcançar glória; porque, não procedendo daquele princípio que é Deus, do qual vem que a nossa virtude é virtude, e apartando-nos d'Ele, não pode a obra ser agradável a Seus olhos; porque, enfim, o intento de quem faz um pecado mortal, não é contentar a Deus, senão dar prazer ao demônio o qual, como é as mesmas trevas, assim a pobre alma fica feita uma mesma treva." (Castelo Interior)
Eis, pois, que a treva, numa espécie de paródia da luz, enquanto esta é união divina, aquela é união com o demônio. Isto significa que a alma que peca mortalmente se torna de tal modo apartada de Deus que, em certo sentido, consegue fugir da Onipresença, isto é, esquivar-se dos raios do amor divino, e atar-se ao que é inferior. O pecado mortal é o despencar do in excelsis para o in infieris. Isto, obviamente, não se dá literalmente - no sentido espacial nem no afastamento ontológico de Deus -, uma vez que Deus persiste em trazê-la - à alma - através das graças atuais. Mas o centro da alma, tomado assim de rebeldia, tende a resistir-Lhe e fazer-se de cego e surdo diante dos Seus apelos. Porém, se Deus lamenta assim a morte dos Seus, infinitamente maior que o lamento é o gozo que Ele experimenta quando vê um filho Seu voltar à vida. Assim como chorou quando da morte de Lázaro, sem dúvida sorriu quando lhe trouxe de novo à vida. Isto significa que poderemos compensar os destratos aos quais submetemos o coração divino nos colocando novamente sob os influxos da Sua paixão, e isto se dá no Confessionário. Na primeira queda, havia um anjo de espada flamejante que protegia o jardim para que ninguém lá voltasse. Deste novo jardim, os porteiros são os padres, e basta que deixemos para trás o veneno que trazíamos para que as mãos sacerdotais, como que empunhando espadas divinas, ajam no próprio centro da nossa alma extirpando de lá o pus da infecção e tornando-nos novamente vivos. Acorramos aos confessionários, pois a glória de Deus é o homem vivo.
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