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A Cabana e o Inferno


Está ainda em cartaz a película "A Cabana", baseada no livro de mesmo nome, obra de William P. Young, que fascinou muita gente logo quando foi lançado. O filme agora traz uma nova onda de encanto e está a espalhá-la, pois um livro tem um alcance sempre mais restrito que a sua tradução em vídeo.

Eu li o livro deve fazer uns cinco anos, e me causou vivíssima impressão, na época. Devorei-o, praticamente, durante três dias. Cheguei mesmo a sonhar com "Papai", "Jesus" e "Sarayu". É um livro bonito, poético, muito inteligente - e que não tem nada de espírita, como alguns dizem. Contudo, alguns católicos cismaram com a estória, sendo que eu mesmo fiz críticas a ela, na época. Claro: o autor sequer é católico. Então, não faz muito sentido esperar que a obra reflita integralmente o ensino católico. Há coisas inexatas, de fato. Mas isso não é motivo para rechaçá-la. Desde que se saiba que não é um tratado de dogmática, nem a transcrição de um evento real, mas apenas uma obra de ficção que, embora pretenda transmitir idéias sobre Deus, não deseja ser outra coisa, o trabalho é sim muito apreciável. Essa posição asséptica, que rejeita o que contenha o menor traço de imprecisão, vai muito longe de uma atitude sadiamente católica. E o filme, que já assisti duas vezes, está belíssimo, de modo que fica aqui a minha recomendação.

Depois dos elogios, vem agora uma pequena crítica. O autor desenvolve uma conversa muito interessante entre Mackenzie e a mulher que ele põe como a Sabedoria divina. Mack, que costumava julgar as pessoas e situações, é convidado a assumir o lugar de Deus e, dentre outras coisas, deve escolher um dos seus filhos para ir para o Céu enquanto os demais deveriam ir ao inferno. Tratava-se na verdade de um teste para que ele sentisse o peso e a dificuldade desta função. Diante do dilema de a quem mandar ao inferno, premido pelo amor que lhes devotava, Mack só vê uma saída: opta em ele mesmo condenar-se no lugar dos seus filhos. No livro, esse diálogo tem mais peso. Recordo-me de a Sabedoria dizer algo assim: "Agora você começou a pensar como Deus". O que ela queria dizer era que, diante da alternativa de condenar qualquer dos homens, Deus decidiu assumir a condenação por nós, o que ocorreu exatamente na Cruz. 

A Sabedoria... Coisa linda é a Sabedoria...

Neste momento, Mack também assiste um pouco do que está por trás do comportamento imoral das pessoas: sofrimentos, carências, etc. Tudo isso tendia a minorar a culpa pessoal e, desse modo, o filme deixa a sugestão de fundo - ao menos eu tive essa impressão - de que ninguém se condenaria. É uma idéia bonita e verdadeira em parte. De fato, os nossos pecados não raro são manifestações distorcidas de carências de fundo, de desejos inconscientes, de impulsos da natureza que, considerados em si mesmos, são bons. Haveria muito a falar disso, mas, para não caminharmos para longe do que propusemos, voltemos a essa idéia básica: de que modo Deus, sendo amor e conhecendo-nos a fundo, pode condenar alguém ao inferno? O inferno existiria de fato? Como conciliar a sua existência com o amor divino? Seria possível que Mack, um personagem criado pela imaginação humana, amasse mais os seus filhos do que Deus ama os d'Ele?

A primeira coisa a considerar é que, conforme a obra enfatiza bastante, nós somos livres de fato. Defender a liberdade humana é afirmar que, por mais complexos que sejam os processos subconscientes que influenciam as nossas ações, eles não são determinantes. O ser humano age livremente, e até o próprio Deus respeita essa liberdade, pois, conforme diz a Mack logo no começo do filme, Ele não está interessado em escravos.

Sarayu se comove ao lamentar com Mack o fato de que cada pessoa no mundo eleja para si mesma - seja livre para isso - o bem e o mal, o que gera um imenso desacordo. A Sabedoria também afirma que, enquanto houver uma vontade livre capaz de dizer não a "Papai", poderá haver mal no mundo. Então, embora o filme tente dizer que há sempre um elemento a ser considerado por trás das más ações, ele mantém que nós somos livres. E o somos, de fato, ainda que a nossa liberdade não seja absoluta, o que é outro fato.

Sarayu, a colecionadora de lágrimas... Ou Espírito Santo, se preferir.

O filme sugere que os seres humanos pecam ou por fraqueza ou por ignorância. Mack estava a ponto de perder a família e de talvez condenar o futuro da própria filha sobrevivente justamente porque não sabia o que fazer, não sabia a verdade sobre Deus, e era ignorante dos próprios complexos de culpa que acometiam Kate, que se sentia responsável pelo que havia acontecido a Missy.

É verdade que duas grandes causas possíveis do pecado são essas: fraqueza e ignorância. A depender da intensidade de ambas, é possível que um pecado até deixe de sê-lo. Contudo, há um terceiro motivo possível para o pecado: a malícia, que é o mero desejo direto de fazer o mal, mesmo. E há malícia no mundo.

Considerem agora o seguinte: o ser humano é livre, e algumas pessoas são maliciosas. Há um chamado de Deus para o homem, que é o da Salvação. Este chamado, crêem os cristãos, se dá até o momento da morte. Depois disso já não há mais possibilidade de redenção. Mas consideremos que, sendo a ignorância a causa de uma vida desregrada, a morte resolva esse problema, já que a pessoa será exposta ao juízo divino. Suponhamos que então ela reconheça que a Fé era verdadeira e que possa, enfim, converter-se. Ainda assim, resta a possibilidade, em virtude mesmo da liberdade humana - e da malícia, que é possível que haja -, de que a pessoa não queira Deus. E se a pessoa não O quiser? Ele a obrigará mesmo assim? Obviamente que não, pois Deus não força ninguém. Uma pergunta melhor a ser feita é: será possível a alguém não querer Deus depois de ter a certeza de que Ele existe?

Respondemos: é claro que sim. Os próprios demônios nunca duvidaram de que Ele existisse, mas ainda assim não O quiseram e nem O querem. É verdade que quando Deus expõe alguém à visão da Sua Face, que é o que caracteriza o Céu, a pessoa perde a possibilidade de rejeitá-Lo, pois a vontade humana, que é naturalmente inclinada ao que lhe aparece como bem, aderirá ao Bem em Si mesmo de modo irretornável. Este é o motivo pelo qual Deus não Se revela desde já: não haveria mérito nenhum em amá-Lo assim. Por isso, precisamos amá-Lo antes de vê-Lo, o que significa que mesmo o juízo que se segue logo após a morte ainda não é visão d'Ele. Logo, a pessoa poderia recusá-lo, ainda, mesmo que a morte já não tivesse engessado a sua vontade na última disposição que possuiu em vida, que é o que acontece.

Fica, assim, resguardada a possibilidade de que algumas pessoas rejeitem a Deus. Vimos que já existem pessoas condenadas de certeza: os demônios. Dentre os humanos, embora não possamos objetivamente apontar nenhum (talvez Judas, mas isso é controverso), é certo que haja já vários condenados, visto que a liberdade humana permite, como vemos todo dia, a rejeição a Deus. 

Considerando, também, que os atos humanos não são totalmente explicados pelo contexto em que a pessoa vive, mas que são atos livres, isto é, soltos, ao menos em algum grau, surge disto a necessidade de que as pessoas sejam responsabilizadas, pois uma liberdade que não pagasse pelo que faz não seria liberdade de fato. Se uma pessoa livremente rejeita a Deus, livremente ela terá de viver longe d'Ele.

Diante de tudo isso, o inferno surge como uma necessidade lógica. Ele não é exatamente uma espécie de tortura à qual Deus submete os que O desagradam, mas o estado de alma dos que O rejeitam, pois, sendo Deus a fonte de todo o bem, uma vida que seja recusa d'Ele não pode ter qualquer espécie de felicidade ou realização. O inferno é um Não perpetuado por uma vontade em relação a Deus. E Deus, sendo amor que respeita Seus filhos profundamente, aceita o que eles decidirem. Logo, a única possibilidade de uma apocatástase, isto é, de uma salvação universal, seria a de que Deus coagisse os humanos e anjos a conhecerem-No e a amarem-No. Ele poderia fazê-lo, se quisesse, mas, como o filme diz, Ele não está interessado em escravos. E como Deus mais de uma vez diz a Mack, este é livre para sair quando quiser.

O filme, assim, não é muito exato na sugestão de que não haveria inferno, já que Deus não condenaria nenhum de Seus filhos. Mas ao mesmo tempo tem o mérito de aprofundar a visão comum que tende a reduzir os atos humanos sempre às intenções conscientes. Há outros problemitas aqui e ali na obra. Mas nada que, ao meu ver, me faça querer retirar a recomendação. Assistam, reflitam e divulguem, porque ficou muito bonito e eu gostei especialmente desse filme aí.
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