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O Magnificat e a pobreza da riqueza deste mundo


Existem planos e aspectos da realidade que não se percebem a olho nu, mas apenas com o auxílio de uma luz especial: ou com os raios infravermelhos ou com os raios ultravioletas. A imagem obtida com esta luz especial é muito diferente e surpreendente para quem está habituado a ver este mesmo panorama à luz natural. A Igreja possui, graças à Palavra de Deus, uma imagem diversa da realidade do mundo, a única definitiva, porque obtida com a luz de Deus e porque é aquela mesma que Deus tem. Ela não pode ocultar tal imagem. Deve antes difundi-la, sem jamais se cansar, torná-la conhecida aos homens, porque dela depende o seu destino eterno.

É a imagem que no final ficará quando tiver passado "o esquema deste mundo". Torná-la conhecida, às vezes, com palavras simples, diretas e proféticas, como aquelas de Maria, como são ditas as coisas de que se está íntima e tranquilamente convicto. E isto mesmo à custa de parecer ingênua e fora do mundo, defronte à opinião dominante e ao espírito do tempo.

O Apocalipse nos á um exemplo desta linguagem profética, direta e corajosa, na qual, à opinião humana, vem contraposta a verdade divina: "Tu dizes (e este 'tu' pode ser a pessoa individual, como pode ser uma sociedade toda): 'Sou rico, me enriqueci; não tenho necessidade de nada!', mas não sabes que és um infeliz, um miserável, um pobre, cego e nu (Ap 3,17)".

Numa célebre fábula, fala-se de um rei a quem se fez crer, por embrulhões que existe um tecido maravilhoso que tinha o privilégio de tornar, quem o vestisse, invisível aos tolos e aos ineptos, e visível apenas aos sábios. Ele, por primeiro, naturalmente não o vê, mas tem medo de dizê-lo, por temor de passar por um dos tolos, e assim fazem todos os seus ministros, e todo o povo. O rei desfila pelas estradas sem nada em cima, mas todos, para não se trair, fingem admirar o belíssimo vestido, até se ouvir a vozinha de uma criança que grita entre a multidão: 'Mas o rei está nu', rompendo o encantamento, e todos finalmente têm a coragem de admitir que aquele famoso vestido não existe.

A Igreja deve ser como a vozinha de uma criança, a qual, a certo mundo todo enfatuado das próprias riquezas e que induz a considerar louco e tolo quem mostra não acreditar nelas, repete, com as palavras do Apocalipse: 'Tu não sabes que estás nu!'. Aqui se vê positivamente como Maria, no Magnificat, 'fala profeticamente pela Igreja': ela, por primeiro, partindo de Deus, pôs a nu a grande pobreza da riqueza deste mundo.

Todavia seria desvirtuar completamente esta parte do Magnificat que fala dos soberbos e dos humildes, dos ricos e dos famintos, se a limitássemos apenas ao âmbito das coisas que a Igreja e o crente devem pregar ao mundo. Aqui não se trata de algo que se deve somente pregar, mas algo que se deve antes de tudo praticar. Maria pode proclamar a bem-aventurança dos humildes e dos pobres porque ela própria está entre os humildes e os pobres. A reviravolta por ela prevista deve acontecer primeiro no íntimo de quem repete o Magnificat e reza com ele. Deus - diz Maria - abateu os soberbos "nos pensamentos do seu coração". De súbito, o discurso é levado de fora para dentro; das discussões teológicas, em que todos têm razão, aos pensamentos do coração, no qual todos temos errado. O homem que vive "para si mesmo", do qual Deus não é o Senhor, mas o próprio "eu", é um homem que se construiu um trono e no qual se assenta ditando lei aos outros. Ora Deus - diz Maria - derruba estes tais do seu trono; põe a nu a sua não-verdade e injustiça. Há um mundo interior, feito de pensamentos, vontade, desejos e paixões, do qual - diz São Tiago - provêm as guerras e os litígios, as injustiças e injúrias que estão em meio a nós (cf Tg 4,1) e até que alguém comece a sanar esta raiz, nada muda verdadeiramente no mundo, e se alguma coisa muda é para reproduzir, dali a pouco, a mesma situação de antes.

Como o cântico de Maria nos atinge de perto, como nos questiona a fundo e como põe de verdade " o machado na raiz"! Que loucura e incoerência seria a minha se cada dia, às Vésperas, repetisse com Maria que Deus "derrubou os poderosos dos tronos" e, no entanto, continuasse a cobiçar o poder, um posto mais alto, uma promoção humana uma promoção de carreira e perdesse a paz se isso demora a chegar; se cada dia proclamasse, com Maria, que Deus "mandou os ricos de mãos vazias" e, no entanto, aspirasse sem descanso enriquecer e possuir sempre mais coisas e coisas sempre mais refinadas; se preferisse estar de mãos vazias diante de Deus, antes que de mãos vazias diante do mundo, vazias dos bens de Deus, mais que vazias dos bens deste mundo. Que loucura seria a minha se continuasse a repetir com Maria que Deus "olha para os humildes", que se avizinha deles, enquanto mantém à distância os soberbos e os ricos de tudo, e depois fosse daqueles que fazem exatamente o contrário.. 

"Todos os dias - escreveu Lutero comentando o Magnificat - devemos constatar que cada ujm se esforça por elevar-se além de si, para uma posição de honra, de poder, de riqueza, de domínio, para uma vida abastada e para tudo que é grande e soberbo. E cada um quer estar com tais pessoas, corre atrás delas, serve-as voluntariamente, cada um quer participar da sua grandeza... Ninguém quer olhar para baixo, onde existe pobreza, ignomínia, necessidade, aflição e angústia, antes, todos afastam o olhar de uma tal situação. Todos evitam as pessoas assim provadas, as afastam, deixam-nas sozinhas, ninguém pensa em ajudá-las, em assisti-las e em fazer com que elas tornem-se também alguém: devem permanecer embaixo e ser desprezadas". 

Deus - diz Maria - faz o oposto disto: tem à distância os soberbos e eleva até a si os humildes e os pequenos; está mais prazerosamente com os necessitados e os famintos que o atormentam com súplicas e com pedidos, do que com os ricos e saciados que não têm necessidade dele e não lhe pedem nada. Assim fazendo, Maria nos exorta, com ternura materna, a imitar Deus, fazer nossa a sua escolha. Ensina-nos os caminhos de Deus.

O Magnificat é na verdade uma maravilhosa escola de sabedoria evangélica. Uma escola de conversão contínua. Como toda a Escritura, ele é um espelho (cf. Tg 1,23) e sabemos que do espelho podem-se fazer dois usos muito diversos. Pode-se usá-lo para o exterior, para os outros, como espelho ustório, projetando a luz do sol para um ponto distante até incendiá-lo, como fez Arquimedes com as naves romanas, ou pode-se usá-lo tendo-o voltado para si, para ver nele a própria imagem e corrigir-lhe os defeitos e as sujeiras. São Tiago nos exorta a usá-lo sobretudo deste segundo modo, para pôr "em evidência" nós mesmos, antes que os outros.

A Escritura - dizia São Gregório Magno - "cresce por força de ser lida" (Mor. 20,1; PL 76,135). O mesmo acontece com o Magnificat, as suas palavras são enriquecidas, não consumidas, pelo uso. Antes de nós, multidões de santos ou de simples fiéis oraram com estas palavras, saborearam-lhe a verdade, puseram em prática seu conteúdo. "ora, aconteceu - escreveu um deles - que no dia de Natal assistia às Vésperas em Notre-Dame e, escutando o Magnificat, tive a revelação de um Deus que me estendia os braços" (P. Claudel, Corrispondenza, cit., p.33).

Pela comunhão dos santos no corpo místico, todo este imenso patrimônio se adere agora ao Magnificat. É bom rezá-lo assim, em coro, com todos os orantes da Igreja. Deus o escuta assim. Para entrar neste coro que atravessa os séculos, basta que pretendamos reapresentar a Deus os sentimentos e o entusiasmo de Maria que por primeira o entoou "em nome da Igreja", dos doutores que o comentaram, dos artistas que o musicaram com fé, dos piedosos e dos humildes de coração que o viveram. Graças a este maravilhoso cântico, Maria continua a engrandecer o Senhor por todas as gerações; a sua voz, como aquela de uma solista, sustenta e arrasta a Igreja. Um orante do saltério convida todos a unir-se a ele, dizendo: "Glorificai o Senhor comigo, exaltemos em uníssono o seu nome" (Sl 34,4). Maria repete aos seus filhos as mesmas palavras: Glorificai o Senhor comigo! "Vinde, filhos, escutai-me, ensinar-vos-ei o temor do Senhor" (ib.). Maria, a Mãe do Senhor, a figura da Santa Igreja, arrasta atrás de si a Igreja ao louvor de Deus, ao júbilo da salvação; a arrasta para Deus. E nós dizemos: Sim, Maria, nós glorificamos o Senhor contigo e por ti, pelas granes coisas que fez em ti o Onipotente e pelas grandes coisas que fez também a nós. Desde sempre e para sempre.

Pe Raniero Cantalamessa. O mistério do Natal. Aparecida SP: Editora Santuário, 1993. p.30-34.

Natal ou Páscoa?



Natal ou Páscoa? Qual dos dois momentos deve reinar no coração dos cristãos? Como frequentemente acontece, os católicos são instados a escolher entre duas alternativas; e escolhem ambas.

Ao longo da história, os santos notaram que os eventos estão misteriosamente ligados. Nas cenas do Natal, os cristãos sempre encontraram prenúncios do mistério pascal.

Jesus começou a sua vida numa caverna usada como estábulo. Seu berço era um nicho escavado numa parede de pedra que servia de manjedoura aos animais. No dia de sua morte, seu corpo também foi posto num nicho de pedra dentro de um túmulo.

Já aqueles que imaginam uma manjedoura feita de madeira observam que Ele foi posto sobre esse material tanto no nascimento como na crucifixão.

Em seu nascimento e em sua morte, Jesus foi envolvido em faixas. (cf. Lc 2,7 e Jo 19,40).

Tanto o seu nascimento como a sua ressurreição foram anunciados pelos Anjos.

Já traçamos a conexão entre Belém - que significa "casa do pão" - e a Última Ceia, quando Jesus dá o seu corpo como Pão da Vida. Ao ser posto na manjedoura, o Menino Jesus já se apresentava como "a comida que dura até a vida eterna" (cf. Jo 6,27.55).

Já falamos sobre a sua circuncisão, que antecipa o sangue que seria derramado na sua execução. Ela prefigura também a sua ressurreição, por representar um desprendimento em relação ao corpo mortal (cf. Col 2,11).

O Natal, portanto, não ameaça a importância da Páscoa. Pelo contrário, ambas as celebrações estão relacionadas por serem expressões do mesmo amor divino, ordenadas uma à outra pela mesma Divina Providência.

Scott Hahn. A alegria do mundo: como a vinda de Cristo mudou tudo (e continua mudando). Trad. Diego Fagundes. São Paulo: Quadrante, 2018. p.166-167.

O que eu tenho contra a RCC?


Olá, caros. Há quanto tempo! Faz séculos que não escrevo aqui, mas chegou mais uma ocasião. O caso agora se deve a uma discussão - no bom sentido - recente que tive num dos grupos do whatsapp de que participo. A coisa gravitou em torno da RCC, e eu então me propus a fazer um resumão sobre os problemas essenciais que julgo ver neste movimento. Aqui, na forma de um texto, a coisa fica melhor dita. E uma coisa melhor dita é uma coisa bendita.

Antes de começar, convém explicar umas coisas. Eu fui carismático durante sete anos, como eu já falei noutros textos. Há, de fato, muitos artigos aqui no blog sobre este tema, e basta clicar na tag "rcc" no fim deste post ou do lado direito. Dê um "ctrl f" e procure aí. O fato de eu ter sido da RCC por vários anos me dá algum respaldo para falar do movimento. Eu não tratarei, porém, dos abusos específicos que se deveram à imprudência de certos membros, mas aos problemas essenciais, isto é, que fazem parte da própria essência do movimento. Assim, os problemas que eu descrever aqui referem-se à RCC em qualquer lugar e em qualquer tempo.

Ao contrário do que se pode pensar, porém, eu não tenho nada contra pessoas carismáticas. Alguns amigos são deste movimento, e vez ou outra me encontro com eles, e participo de momentos em comum, às vezes até tocando, inclusive com a famosa oração em línguas e as visualizações tão típicas. Claro que eu não adiro nem a uma nem a outra, mas não cismo, não saio criticando e nem faço cara feia. Não tenho qualquer animosidade pessoal em relação a isso, mas tenho ideias a respeito, já que já me propus estudar o fenômeno do carismatismo.

Antes de passar aos problemas, deixa eu começar fazendo o elogio. A RCC foi, logo após o Concílio Vaticano II, a alternativa que tínhamos à Teologia da Libertação, que nem cristianismo é. Os movimentos mais tradicionais não eram tão difundidos. Então, ao lado de um discurso puramente político, a RCC guardou e manteve a ênfase no caráter espiritual. Ela preservou e desenvolveu em nós o amor à Eucaristia, o zelo pelo estado de graça, o amor ao terço e a prática da adoração ao Santíssimo, pelos cercos de Jericó e as vigílias. Fez-nos, além disso, conhecer muitos amigos, viajar, e pensar continuamente no Céu e na vida dos santos. Desenvolveu em nós os dons de falar em público, de cantar, de tocar, de lidar com pessoas, etc. A RCC, graças a Deus, nos auxiliou bastante em tudo isso, e por isso eu e tantos outros somos gratos a ela. Isso, contudo, não a isenta dos seus problemas, alguns dos quais também nos prejudicaram, e às vezes não pouco.

Sigo, então, descrevendo os supostos equívocos que eu julgo ver neste movimento. Resumão:

1- Origem Protestante

 Os próprios carismáticos admitem sua origem protestante. E qual o problema disso? O problema é que o próprio nome "renovação" sugere a ideia de que algo envelheceu ou se perdeu na Igreja e que, tchan tchan tchan tchan, teria sido devolvido ou renovado no protestantismo! Mas que coisa interessante... Considerando que os carismas seriam algo dado pelo próprio Deus como uma espécie de participação íntima e sensível de Si mesmo, é curioso que a Igreja não os tivesse, o que vai contra o dogma da indefectibilidade da Igreja, e que os tivesse recebido dos protestantes, que negam pontos essenciais da Doutrina Católica. Além deste problema evidente, há outro: o Código de Direito Canônico da época proibia que católicos participassem de cultos em comum com protestantes, e os primeiros fenômenos do carismatismo entre católicos se deram justamente a partir dessas reuniões em que pessoas de toda e qualquer denominação cristã participavam e partilhavam as mesmas experiências. Ora, a se considerar o fenômeno carismático como verdadeiro, conclui-se que a desobediência não somente não é punida, mas é premiada por Deus. Como diz o Kiko, "que coisa, não?"

2- Doutrina em segundo plano

Isso nos leva ao segundo ponto: se Deus dá suas graças a cada um que professe qualquer coisa, então aquilo que se professa não é tão importante. Se o próprio Deus faz vista grossa em relação ao que cada um crê, a Doutrina é apenas um acessório, que pode-se ter ou não, mas com o qual não se pode ser muito exigente. Conclusão: a) tanto faz ser católico ou protestante; b) A Igreja Católica, em ser tão exigente com a Doutrina e inclusive excomungar os que não professam integralmente o "Depósito da Fé", erra. Porém, o próprio Paulo foi quem disse: "Se alguém vos pregar um Evangelho diferente daquele que vos temos anunciado, seja anátema". Diz-se que hoje os carismáticos são mais estudiosos em relação à Doutrina, leem o Catecismo, etc. Ótimo! Porém, segue sendo verdade que ter uma origem protestante tem como implicações o que eu falei: Deus daria suas graças independente do que cada um crê. Logo, o que cada um crê seria algo secundário.

3- Fenomenologia dos carismas

Não somente a origem é protestante, mas o fenômeno, mesmo hoje, segue sendo igual cá e lá. Basta ir numa Assembleia de Deus, numa Batista renovada, numa Quadrangular, para se notar que o mesmo fenômeno acontece entre elas e entre os grupos de oração carismático. A coisa pode variar em grau, pois algumas correntes são mais enfáticas que outras, mas essa variação também ocorre entre grupo e grupo na RCC. Há sempre aquele pregador "ungido", "de fogo", cuja vinda "promete". Mas a fenomenologia dos ditos carismas, o modo de compreendê-los, é sempre igual. Conclusão: se são iguais, então ou são verdadeiros cá e lá, ou são falsos cá e lá. Se são verdadeiros cá e lá, seguem os mesmos problemas do ponto 2. Se são falsos, então...

4- Oração em línguas

Este talvez seja o coração do carismatismo. Diz-se, é verdade, do "batismo no Espírito Santo" como traço mais essencial da RCC, expressão infeliz que a Igreja já pediu para ser evitada, mas que segue sendo usada. Porém, o sinal visível deste "batismo", segundo os carismáticos, é o fenômeno da glossolalia, ou oração em línguas, ou língua dos anjos.

O evento bíblico que dá o fundamento desta prática seria a vinda do Espírito Santo em Pentecostes. Porém, em Pentecostes os Apóstolos e discípulos do Senhor não ficam falando coisas ininteligíveis. Não são línguas estranhas, aí, mas línguas estrangeiras, tanto que os residentes de outros países, que ali estavam, escutam-nos falar em sua própria língua. Trata-se do fenômeno da xenoglossia. Portanto, isso aí não tem nada a ver com o que se vê nos grupos de oração carismáticos. A referência "faiô".

Além disso, sendo um dom, ele deveria ser recebido, e não aprendido. Porém, os carismáticos ensinam a enrolar a língua e cada um termina praticando o "dom" de um modo bem próprio. Às vezes, a variação dos fonemas é de três ou quatro sílabas, quando não de duas. E a própria entonação é repetida. Como se não bastasse, o próprio "dom" é adaptável, e é comum ver seus praticantes imitando o jeito de alguém "ungido". Alguns rezam, outros cantam, sendo que quem reza pode cantar em línguas, e quem canta pode simplesmente rezar. É um "dom", supostamente extraordinário, que está sempre acessível, e a todos, como eles gostam de dizer, e é totalmente administrável. Não se sabe, então, em que sentido se diz que é extraordinário.

"Ah, mas São Paulo diz que quem fala em línguas não fala aos homens, que não entendem, mas a Deus". E tem a questão dos gemidos inefáveis, também. Vejamos: na tradição católica, os santos falam de dois modos de oração "em línguas": a xenoglossia, já referida, a que ocorre em Pentecostes; e uma outra forma que consiste em falar coisas misteriosas, mas não numa linguagem ininteligível. Quando cantamos o Ofício da Imaculada, por exemplo, há muitas expressões lá cujo sentido escapa à maioria de nós, o que não nos impede de cantá-lo, porém. Segundo a Tradição Católica, é disso o que se trata, então. E não de algo que sequer sentido faz. Por isso, a fala em línguas, que Paulo recomenda que seja feito por dois ou três, sempre foi aplicado à Liturgia, onde, depois de duas ou três leituras, o Padre as interpreta na homilia. Os "gemidos inefáveis" não são a repetição ininterrupta de chiados, mas os arroubos interiores, inexprimíveis, de amor do próprio Deus em nós. O gemido é sempre uma expressão da intensidade do que se sente: seja amor, seja dor. A oração em línguas, porém, pode ser praticada - e é, por vezes - mecanicamente. O contexto em que se fala dos gemidos inefáveis do Espírito Santo, porém, trata, nuns versículos antes, dos gemidos humanos pelo sofrimento no mundo. Diz-se, então, que todas as criaturas gemem e que nós também gememos dentro de nós. Assim, o Apóstolo afirma, então, que o próprio Deus também geme misteriosamente, como que participando de nossas dores e dando eficácia e substância à nossa oração.

Por fim, a tal oração em línguas também começou no protestantismo e permanece por lá, igualzinha. Seguem os mesmos problemas já elencados. Poderia ainda ser feita a seguinte questão: uma vez que a pessoa aprende a imitar aquele som característico, todas as vezes em que uma pessoa o fizer, ela está rezando? Há pessoas que sabem reproduzi-lo só que com a intenção de fazer troça. O Espírito Santo permitiria tal coisa? E, se essa troça acontece, neste caso é ainda o dom ou não? Se não é o dom, então não seria possível distinguir, através da prática, quando ele se manifesta realmente e quando é somente uma encenação.

Por fim, se Deus se manifesta dessa forma, porque não é tão frequente que ele permita o sinal que ocorreu em Pentecostes, de um italiano falar japonês sem nunca ter estudado, ou de um brasileiro falar alemão, etc?

5- O Repouso no Espírito

Este fenômeno é um dos mais chamativos do carismatismo. Lembro-me que ir a um retiro fechado e não passar por isso era decepcionante. Todos ficavam na expectativa do famoso "repouso". Em alguns encontros, os organizadores inclusive distribuem colchões e almofadas no ambiente para favorecerem o conforto durante as quedas. Quem já experimentou ou presenciou este fenômeno há de convir que é pelo menos curioso. As pessoas caem de várias formas esquisitas e não se machucam. Isto seria, talvez, a evidência de que se trata de algo sobrenatural... Mas não. O que aí se chama "repouso", e no protestantismo, "queda no Espírito Santo", nada mais é do que o famoso "toque de Charcot", da hipnose. Observe o leitor esse vídeo e reconheça o mesmo fenômeno nos olhos.

  

Quem "repousa" fica com os olhos dessa mesma forma, batendo rapidinho. Eu já vivi isso aí diversas vezes, e já vi acontecer com inúmeras outras pessoas, e eu mesmo já provoquei o fenômeno em outros. É muito fácil reproduzir esses efeitos hipnóticos: basta uma pessoa sugestionável, receptiva, uma voz ou prática que demonstre persuasão, e um ambiente propício: o ambiente carismático possui diversos elementos que criam a atmosfera requerida: música emotiva, balanço, às vezes controle da luz, linguagem sugestiva, expectativa criada nas pessoas de que algo está prestes a acontecer, o que favorece a sua "entrega". Pronto. É só isso.

6- Visualizações

Em todo grupo carismático há sempre um momento de oração pessoal, espontânea, no qual cada pessoa fala individualmente com Deus. Depois da oração espontânea, geralmente vem a oração em línguas. E, depois disso, ou durante isso, as pessoas começam a ter visualizações que, se forem de Deus - como dizem -, vão-se confirmando umas às outras. Este é um dos pontos mais frágeis dos carismáticos e dos pentecostais em geral. Vejam só: toda oração tem um tema: agradecimento, petição, adoração, arrependimento, etc. Além disso, o pregador ou condutor da oração está geralmente com a sua voz exaltada, conduzindo os demais. O significado do que ele diz, e o teor da oração que a própria pessoa está fazendo, vão naturalmente estimular a imaginação de todos que, então, passará a formar um sem fim de imagens. A coisa fica ainda mais intensa porque os orantes ficam procurando sinais e vozes interiores de Deus. Resultado: qualquer coisa que a imaginação formar será, então, entendida como uma mensagem divina. Se considerarmos, com Sta Teresa D'Avila, que a imaginação é a louca da casa, já podemos imaginar o que pode vir disso aí. Eu mesmo já presenciei verdadeiros absurdos, como quando um grupo, sob orientação do coordenador, queimou seus casacos porque Deus teria lhe dito para fazerem isso. A ideia de fundo, pelo que me recordo, era que, depois de um processo de purificação e da famosa renúncia, as sujeiras espirituais teriam migrado de suas almas para suas roupas, donde a conveniência da fogueira santa aplicada aos coitados dos tecidos. Noutras duas vezes, eu mesmo fui o objeto de uma suposta comunicação divina que, pelo menos, a mim não chegou. Uma mulher conduzia um momento exaltado de oração enquanto eu tocava. A mulher, então, declarou firmemente que Deus inspiraria alguém ali a profetizar em línguas. Pouco depois, ela começou a olhar pra mim e dar sinais. O favorecido seria eu. Imaginem a cena, hahaha. Quieto estava, quieto fiquei. Noutra vez, uma mocinha rezava por mim durante um filme e pediu a Deus pra que Ele me falasse. Segundo ela, Deus lhe garantiu que me falaria e que Ele de fato me falou. Porém, meu wifi acho que estava fraco, rs. Esses são pequenos exemplos de como alguém pode ficar totalmente convencido do que diz a sua imaginação, mesmo que a mensagem em questão seja baboseira pura e simples. Como fazer, então, para distinguir quando uma mensagem é criação nossa, quando é de Deus ou, até, quando vem do demônio? As pessoas em geral não têm quaisquer ferramentas para fazer essa distinção. Naturalmente, cada uma vai acreditar em si mesma, mas esse é o pior critério possível. É, aliás, o que distingue os malucos.

7- Subjetivismo

Se você explica todas essas coisas para um carismático, o que ele diz? "Ah, meu irmão, é porque você não experimentou. Mas eu sei que o que eu vivi foi de Deus", etc. Ele nunca possui critérios objetivos, mas sempre baseia-se na própria experiência. Eu sei disso por dois motivos: a) tenho anos de prática de discussão com carismáticos; antigamente, nos idos tempos do Orkut, eu adorava fazer isso; b) eu mesmo usava esses "argumentos". Primeira coisa: estar muito satisfeito consigo mesmo, como se sua vida provasse a veracidade do que crê, já é um mau sinal. A autocomplacência não é boa, e pressupõe uma cegueira fundamental. Essa cegueira jamais vai ser um efeito real de alguma graça provinda de Deus. Ao contrário, o grande efeito que segue qualquer toque divino é a profunda humildade que ele deixa, efeito do autoconhecimento que é, aí, aprofundado, revelando para a própria pessoa a sua própria miséria. Disto resulta uma espécie de angústia, um sofrimento íntimo por ver-se agraciado justamente quando a pessoa se percebe mais indigna e ingrata. Isto a deixa profundamente constrangida. Tanto São João da Cruz quanto Sta Teresa D'Avila sempre dizem que um dos sinais mais característicos de que uma graça vem de Deus é o medo que fica de a pessoa estar errada. Sta Teresa, já depois de ter entrado nas quartas moradas, tinha algumas graças místicas bastante altas, mas sofria profundamente, depois, sem saber se o que havia vivido vinha de Deus ou do demônio. E ela perturbou-se com isso não pouco tempo. Somente São Pedro de Alcântara pôde convencê-la da origem divina de suas graças. Agora, imagine um carismático comum - supondo que a maioria de nós não chegou às quintas moradas - todo seguro de que o arrepiozinho que experimentou, a catarse pela qual passou é, sim, de Deus. Não é fácil distinguir a origem de uma experiência assim, motivo pelo qual os santos sempre recomendam que não se as deseje. Nós não temos os meios adequados para fazer a distinção. O próprio demônio é mestre em imitar, motivo pelo qual é conhecido como o macaco de Deus (simia dei). O próprio Paulo diz que ele pode se disfarçar de anjo de luz. Isso não é difícil pra ele. E quando encontra alguém desejoso dessas experiências, ele pode ir "brincar" com a pessoa. São João da Cruz diz que muitas almas perderam-se dessa forma. O justo deve viver pela fé, isto é, sem desejar nenhum sinal misterioso ou místico. É verdade que Deus às vezes os dá, mas não é comum e isso nunca ocorre no começo, e nunca é dado porque a pessoa os quis. Deus pode permitir consolações sensíveis, que não são graças sobrenaturais, ainda, e mesmo assim Ele não quer que uma pessoa fique apegada a elas, motivo pelo qual Ele mesmo fará questão de as tirar, depois.

Além disso, a essência do carismatismo é a busca por experiências. O próprio nome "renovação carismática" indica a tentativa de reviver aqueles sinais sensíveis que Deus dava no começo da Igreja, para a difusão da fé e para a credibilidade do discurso dos Apóstolos. A este respeito, leia-se a Pascendi Dominici Gregis, de São Pio X, contra o Modernismo. Neste texto, entre outras coisas, o Sumo Pontífice condena a tese de que é possível experimentar Deus. A sensibilidade humana lida com coisas materiais e pode ser estimulada dessa forma. Deus é puro espírito e, como tal, não pode ser alcançado pela sensibilidade humana. É por isso que São João da Cruz a este respeito dizia: "tanto mais uma graça é sensível, tanto menos certa que é de Deus"; e ainda: "Os sentidos humanos são tão experientes das coisas espirituais como um jumento o é das coisas racionais". Dessa forma, São João da Cruz condenava qualquer tipo de espiritualidade que buscasse experimentar Deus sensivelmente.

Daí alguém poderia objetar: mas se a pessoa em questão possui uma vida reta, de oração, jejum, abstinência, mortificação, observância dos mandamentos, etc., é possível que esteja assim enganada?

Uma pessoa pode estar tão autossugestionada que, crendo piamente no que professa, viva como se aquilo fosse verdade quando não é. É por isso que há sempre gente muito devota entre protestantes, budistas, muçulmanos, etc. São pessoas moralmente boas, ainda que aquilo que professam não seja inteiramente correto. São João da Cruz, especialista nesses casos, era frequentemente chamado para dar sua posição sobre a santidade de alguns irmãos consagrados que na sua época ficavam famosos pelas supostas graças espirituais que recebiam e que enlevavam até seus superiores. Em grande parte dos casos, o santo dizia que não havia ali nenhuma comunicação divina, e que a própria pessoa, ainda que com boa intenção, enganava-se a si mesma. Isso demonstra como essas coisas são tão sutis. Não é tão fácil distinguir, como querem alguns, uma comunicação real de Deus de algo criado por si mesmo, ou até mesmo sugerido pelo demônio. É por isso que quando aparece, por exemplo, um vidente, a Igreja não se pronuncia a respeito senão depois de uma profunda e demorada análise. E é ocioso dizer que a grande maioria dos casos é rejeitada. Convenhamos ainda que uma visão é muito mais convincente do que uma visualização, espécie de visão apenas na imaginação. E mesmo com toda a força de uma visão, é possível que aquilo seja falso.

Pode acontecer, no entanto, que, vendo a boa intenção dos carismáticos, e a sua recorrência aos meios legítimos da Graça de Deus, que são os Sacramentos e a oração pessoal, a submissão à Virgem Maria e a imitação dos santos, as mortificações e práticas de piedade, Deus agracie a pessoa, a despeito de seus equívocos. Mas é sempre melhor não ter erros na compreensão do que os ter.

Enfim, o objetivo aqui não é condenar os irmãos carismáticos, a quem tenho por irmãos, de fato, mas apenas esclarecê-los desses pontos, que são os mais gerais e básicos. Haveria, como se nota, muitas outras sutilezas a discutir, mas penso que estas são o suficiente para fazer pensar. Basta a pessoa ter disposição de realmente querer analisar isso aí. São pontos objetivos. Qualquer tentativa de refutação deve percorrer ponto a ponto, com uma linguagem igualmente objetiva, sem rodeios. Agradeço aos que pretenderem responder esses pontos, e termino desejando que a graça de Deus esteja sobre todos nós.

Se o siri canta lá na praia, chama lá Maria, tenha calma, que a raiva não é de Deus, e vamos louvar juntos ao bom Senhor que criou todas as coisas.

Fábio.
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