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O Mistério do Sabbath


Card. Jean Daniélou

O estudo dos sacramentos nos tem mostrado que eles são, na era presente da história sagrada, a continuação dos grandes trabalhos operados por Deus no Antigo Testamento e no Novo, e a prefiguração da Escatologia. E disso se segue que nós não podemos entender inteiramente certos aspectos dos sacramentos a menos que nós os vejamos em sua perspectiva bíblica. Isto também é verdade com relação a certos outros aspectos do culto Cristão, e, em particular, da liturgia das grandes festas. Aqui nós temos um ciclo duplo, um semanal e um anual. Nós devemos estudar primeiro um e depois o outro, nos restringindo, naturalmente, aos aspectos desses ciclos que estão contidos no prolongamento da Sagrada Escritura, e especialmente do Velho Testamento.

Há, antes de tudo, a festa semanal, isto é, o Domingo. O Domingo é uma criação puramente cristã, conectada com o fato histórico da Ressurreição do Senhor. Mas desde que esta é uma festa semanal, surge a questão de sua relação com o Sábado Judaico. Antes de estudar o simbolismo do Domingo, então, nós precisamos primeiramente colocar o Domingo em sua relação própria com o Sábado, nossa preocupação sendo aqui com a tipologia; e depois, com relação ao descanso sabático, nossa preocupação será com ele enquanto instituição. Devemos somente estudar esta última questão de um modo secundário.

Os tipos do Antigo testamento são pessoas, como Noé ou Isaac; eventos, como o cruzamento do Mar Vermelho ou a entrada na Terra Prometida; e também instituições, como o Templo, ou a circuncisão. O Sábado entra na terceira categoria, de que ele é um dos maiores exemplos. O seu caráter de tipo é trazido no Novo Testamento: "Não deixem que ninguém, então, vos incomode por conta do que comer ou beber, ou em relação a festivais ou luas novas ou a sábados. Isso tudo é sombra das coisas que deviam vir, mas a substância é Cristo." (Cl 2,16). Aqui está a afirmação que será o princípio guia de todo o nosso estudo: a substância, a realidade do Sábado é Cristo. Nós precisamos, então, descobrir a realidade religiosa do Sábado, pois quando ele é posto ao lado de outros tipos, mostrará um aspecto do que Cristo é. Esta é a razão por que o estudo do Sábado contém um ensinamento que é sempre de valor para nós, mesmo que a instituição do Sábado como tal tenha sido abolida desde que Cristo, Que é o seu cumprimento, apareceu.

O conteúdo da idéia do Sábado é expresso em dois versos de Êxodo que pontuam seus dois aspectos essenciais. De um lado, o Sábado é um dia de descanso (anapausis) consagrado a Yahweh" (Ex 16,25); de outro lado, o Sábado é "o sétimo dia" (hebdome). Um dia de descanso, o sétimo dia -- estes são os dois temas essenciais contidos na idéia do Sábado. O Antigo Testamento os apresenta como uma prescrição literal; o Novo Testamento mostra que eles estão agora cumpridos: pois Cristo é o verdadeiro descanso, e é o verdadeiro sétimo dia. E isto nos mostra de uma vez o que é peculiar à tipologia do Sábado: é uma tipologia do tempo.

Esta tipologia do Sábado é mencionada no próprio Antigo Testamento. Temos muitas vezes considerado como o Velho testamento nos dá uma primária visão espiritual das instituições mosaicas, uma primária tipologia bíblica. Esta consideração encontra uma aplicação exepcional, e de um duplo ponto de vista, como nós iremos agora demonstrar. Antes de tudo, encontramos uma interpretação escatológica do Sábado, que é o símbolo do tempo como sagrado. Devemos dizer que ele carrega a mesma relação com o tempo e a história - aquela de ser seu grande símbolo bíblico -, assim como o templo, a outra essencial instituição do Judaísmo, simboliza o universo e o espaço. O Sabbath expressa a consagração do tempo a Deus, como o templo expressa a do espaço. E assim como o tempo, pela consagração de um espaço limitado, foi o sacramento e prefiguração da consagração de todo o universo, a ser realizado na ressurreição de Jesus e a criação do cosmos da Igreja, assim o Sabbath, pela consagração de um particular dia da semana, foi o sacramento da consagração a Deus de toda a história, que também encontrou seu princípio na ressurreição do Verbo Encarnado.

O outro elemento no Sabbath é a idéia do descanso (anapausis). Aqui nós também encontramos uma primeira tipologia no Antigo Testamento, consistindo em uma espiritualização da idéia de descanso. Nos profetas, e especialmente em Isaías, nós encontramos a afirmação repetida pelos Santos Padres de que o verdadeiro Sabbath, a verdadeira anapausis, não é cessar o trabalho físico, mas cessar de pecar. "As luas novas e os Sabbaths e outros festivais eu não os aceito, suas assembléias são más... Cessem de agir perversamente, aprendam a fazer o bem..." (Is 1, 13-19). E esta passagem é mais importante porque, como nós veremos agora, o ensino de Cristo é exatamente neste sentido. Esta espiritualização da idéia do descanso sabático, que, obviamente, não exclui a idéia de uma real prática do Sabbath, é fundada de novo em Filo, tranformado por seus esquemas platônicos, quando ele vê no Sabbath o símbolo da alma "que descansa em Deus e não se dá a mais nenhum trabalho mortal" (De migr. Abrah.91)

Nós encontramos uma dupla tipologia do Sábado já desenhado no Antigo Testamento e no Judaísmo apocaliptico e alexandrino. Mas esta tipologia ainda carece de precisão quanto ao seu contéudo, e, além disso, ela é ainda indeterminada quanto ao seu objeto. Como São Paulo nos diz, é Cristo Que é a realidade de que o Sabbath é somente a sombra. Assim os Santos Padres não foram os primeiros a afirmar este fato, pois a interpretação cristológica do Sábado já está considerada no Novo Testamento. Nós devemos agora tomar novamente os dois aspectos da tipologia do Sabbath, mas na ordem reversa. O Novo Testamento antes de tudo estende a espiritualização do Sábado ao lado das linhas já demarcadas por Isaías; mas pontua ao mesmo tempo que o Sabbath agora é passado, já que Cristo é a realidade que ele prefigurou. Este aspecto aparece principalmente nas passagens do Evangelho em que nós vemos Cristo em conflito com os fariseus na questão do descanso sabático. A tipologia do Sabbath não aparece formulada numa teoria, como se dará com São Paulo, mas como existente e operativo na real oposição entre os fariseus que encarnam a figura e Cristo que representa a realidade. O primeiro texto é fundado em São Mateus (12,1-13). Os discípulos estão pegando espigas de milho num campo no Sábado; os fariseus protestam, e Cristo vem em defesa dos Seus.1

Ele começa mostrando que o próprio Velho Testamento dá exemplos de violações legítimas do Sabbath: "Você não leu o que Davi fez quando ele e seus companheiros estavam com fome? Em como ele entrou na casa de Deus, e comeu os pães da proposição que nem ele nem seus amigos poderiam legalmente comer, mas só os sacerdotes? Ou vocês não leram na Lei, que nos dias de Sábado os sacerdotes no templo transgridem o Sabbath e ficam sem culpa?" (12,3-5).

E agora vêm as palavras mais importantes: "Mas eu digo a vocês que Alguém maior que o templo está aqui. Mas se vocês soubessem o que isto significa, 'Eu quero misericórdia e não sacrifício,' vocês nunca teriam condenado o inocente; pois o Filho do Homem é Senhor até do Sabbath" (5-8). Nós devemos acrescer a esta passagem outra que a segue imediatamente, onde nós vemos Jesus, no dia de Sábado, curando um homem com a mão seca. Jesus respondeu aos que O atacavam: "É permitido fazer o bem no Sabbath" (12,12).2 Nós temos aqui uma crítica do abuso causado pela formulação dos fariseus na sua forma de entender o descanso sabático: isto é óbvio. Mas há muito mais. Em primeiro lugar, Jesus mostra o caráter secundário do Sabbath: ele não é uma lei absoluta, mas uma instituição provisória. E Ele dá um exemplo disso, inaugurando uma linha de argumento que os Santos Padres irão tomar e desenvolver. Ele permite que seja entendido que Ele é livre para dispor desta instituição - e, pelo exemplo de Seus discípulos, Ele deixa aparecer que sua hora - da observância literal do Sabbath - já passou. Mas há ainda mais: a analogia com o Templo nos mostra que as duas instituições são paralelas. O Sabbath e o Templo passaram porque o próprio Cristo, o Sabbath e o templo do Novo Testamento, está aqui.

E o contexto nos dá dois exemplos desta realidade do novo Sabbath que aparece com Cristo. De um lado, a passagem que nós citamos é imediatamente precedida por estas palavras de Jesus: "Venham a Mim, todos vocês que estão cansados e sobrecarregados, e Eu vos darei descanso. Tomem minha carga sobre vocês, e aprendam de Mim que sou manso e humilde de coração; e encontrarão descanso (anapausis) para suas almas." (11, 29-30)3 Cristo é mostrado, então, como o verdadeiro descanso, a anapausis do verdadeiro Sabbath. E, em segundo lugar, o episódio é seguido pela cura no Sábado do homem com a mão seca. Esta cura, como todos os milagres de Jesus, é uma antecipada manifestação da vinda do Seu reino, do verdadeiro descanso. A coincidência desta ação com o Sabbath nos mostra a relação entre os dois eventos, assim como a expulsão dos mercadores do Templo mostra que Jesus é o mestre do Templo e Ele mesmo o verdadeiro Templo. Assim, nestas passagens, Cristo aparece concretamente como inaugurando o verdadeiro Sabbath que substitui o Sabbath figurativo. A oposição dos fariseus é inexplicável de outro modo, a menos que eles vissem que Ele pretendia dar um substituto para a instituição mosaica. A tipologia posterior só desenvolveu as consequências desta atitude concreta do Cristo.

O Evangelho de são João nos dá um episódio análogo; a cura no Sábado do paralítico na piscina de Bethesda. Nós já falamos deste evento em conexão com o Batismo. Os judeus perseguiram Jesus porque Ele fez essas coisas no Sábado. Jesus respondeu: "Meu Pai trabalha até agora, e eu também trabalho." (5,17). E ainda mais os judeus agora procuravam matá-Lo: "porque Ele fez de Si mesmo igual a Deus." (5,18). A relação destas misteriosas palavras de Nosso Senhor com o descanso sabático é clara. Mas Cristo está falando de um nível mais alto. Os judeus da época de Cristo, em sua exaltação do Sabbath, julgavam que o próprio Deus estava sujeito a ele. Nós encontramos tal idéia expressa no Livro dos Jubileus (2,16). A palavra de Cristo formalmente condena a aplicação a Deus do descanso sabático entendido como ociosidade. Em Deus não há ociosidade; mas Sua atividade que, como diz São Clemente de Alexandria, é idêntica ao Seu amor, é exercida sem cessar. E isto é de grande importância: a ociosidade, ócio, do Sabbath aparece de agora em diante como uma noção literal e inferior, dando lugar à busca do seu significado espiritual. Os Santos Padres usavam este texto para condenar o descanso sabático mostrando que esta não é a lei do universo e que o Cristianismo é a realidade da qual a ociosidade é a figura. Orígenes, usando o mesmo texto de São João, escreve: "Ele mostra que Deus não pode cessar de ordenar o mundo em algum sábado deste mundo. O verdadeiro Sabbath, no qual Deus irá descansar de todas as Suas obras, irá, assim, ser o mundo que vem". (Ho. Nm. 22, 4). O trabalho de Cristo é visto como a realidade que vem substituir a figurativa ociosidade do Sabbath.

Assim, nós temos visto no próprio Evangelho, de uma maneira concreta, a oposição entre Cristo eo Sabbath. Esta oposição ainda está velada. Houve um tempo em que a figura e a realidade existiram lado a lado. Esta coexistência continuou na comunidade dos cristãos primitivos. Nós vemos os Apóstolos em Jerusalém observando o Sabbath depois da Ressurreição de Cristo (At 13,14; 16,3). Mas isto é uma sobrevivência de um mundo que já passou, enquanto que a realidade que o substitui já está presente. É a mesma coisa com o Templo: os Apóstolos continuam a ir lá orar, enquanto que o novo Templo, que é a comunidade cristã, já existia. Nós encontramos aqui um daqueles momentos decisivos da história, uma articulação essencial na qual a nova realidade aparece e se desliga passo a passo de um mundo antigo que está morrendo. A destruição de Jerusale´m trouxe a destruição do Templo: São Paulo proclama o fim do Sábado (Rm 14,6). Apenas umas poucas comunidades judaicas continuaram a observar o sábado (Eusebius, Hist. Eccles. III, 27). E também foi São Paulo quem formulou o significado desta evolução histórica. Se o Sábado estava a morrer pouco a pouco, isto se dava porque ele era apenas uma instituição provisória e uma figura do mundo a vir. Agora este mundo chegou: a figura precisa apenas desaparecer: "Não deixeis, então, que ninguém vos chateie com relação ao que comer ou beber, ou a respeito de festivais ou luas novas ou sábados. Estas coisas eram sombra das que haviam de vir, mas a substância é Cristo" (Col 2,16). Assim, o Evangelho nos mostra no próprio Cristo a verdade prefigurada pelo descanso sabático, o significado profético que Isaías tinha já começado a perceber. O Novo Testamento também nos mostra que Cristo é o "sétimo dia", isto é, o tempo sagrado que sucede aos dias profanos, de que a história da criação nos dá a primeira interpretação teológica. Aqui de novo a qualidade especial da interpretação do Novo Testamento é que ele é cristológico: ele nos mostra no próprio Cristo este sétimo dia, de que o Antigo Testamento percebeu somente o significado profético. O texto principal aqui é o prólogo de São Mateus. Os ancestrais de Cristo estão organizados em seis grupos de sete pessoas cada. Deste modo, Cristo aparece como inaugurante da sétima era do mundo, como sendo n'Ele mesmo sozinho esta sétima era. E é claro que este é realmente o significado desta organização da genealogia. O Livro das Crônicas, quando dá as genealogias de Abraão e Noé, agrupa seus descendentes sob o número simbólico de setenta. Estes agrupamentos de sete são obviamente intencionais. Aquele dado por São Mateus é uma aplicação a Cristo do simbolismo cronológico da semana sagrada. A genealogia dada por São Lucas também é fundada no número 7, mas de um modo diferente: ele dá setenta e sete nomes de Adão a Jesus. Gregório de Nissa já tinha considerado sobre esta característica dos setes. E assim a genealogia de São Mateus faz do sétimo dia uma figura do Cristo.

A Epístola aos Hebreus justifica esta interpretação mostrando que o sétimo dia verdadeiramente teve este significado profético (3,7; 4,11). O autor começa com as palavras do Salmo 94: "Eles não entrarão no Meu descanso" (auapausis), e conecta este descanso explicitamente com o sétimo dia (4,4). Nós estamos lidando, então, com o repouso do sétimo dia, ou seja, com o descanso na sua forma escatológica. E este descanso, como o autor mostra, não pode ser aquele que é dito que Deus descansou no sétimo dia. Pois de fato "as obras de Deus terminaram desde o início do mundo" (4,3) e aqui está o futuro do mundo que está em questão. Por isso a interpretação "arqueológica", a do Antigo Testamento, é afastada. Não pode haver nenhuma questão futura da entrada na Terra Prometida, embora este seja o significado obviamente sugerido pelo Salmo. Mas, como o autor diz: "Se Josué já os conduziu ao descanso, Davi, tanto tempo depois, não teria falado de outro dia (4,8). Nem pode a queda de Jericó depois de sete dias ser aquele que é significado pela anapausis doo salmo. Portanto, além do descanso de Deus, na ordem da criação, e do descanso de Israel, na ordem do Antigo Testamento, há um terceiro descanso, que está além daquele de que o salmo fala: "Permanece, portanto, um descanso sabático para o povo de Deus. Pois aquele que que entrou no seu descanso, descansou ele mesmo de suas obras, como Deus descansou das Suas. Apressemo-nos para entrar naquele descanso (4,10-11).

Este texto é considerável especialmente pelo paralelismo que estabelece entre os três "sabatismos" de que o Sabbath litúrgico é figura. Mostra que no Judaísmo ele é uma comemoração da criação e de sua consagração a Deus; e depois também uma comemoração da entrada na Terra Prometida e da realização temporal da promessa. Mas estes dois significados são por sua vez a prefiguração e a profecia de outro sabatismo, de um sétimo dia, que não veio ainda e que é realizado em Jesus Cristo, desde que a partir de agora este sétimo dia existe, e nós deveremos nos apressar para entrar nele. Assim, nós encontramos uma vez mais, mas comentado e justificado, o tema escatológico indicado na genealogia de Mateus. O simbolismo do sétimo dia serve para enfatizar o caráter do Cristianismo como um evento escatológico. Nós estamos agora colocados na perspectiva da história, e esta é, de fato, o significado de toda a Epístola. Deus que deu aos judeus a primeira oportunidade para a salvação, que eles recusaram, está agora oferecendo uma nova. Esta salvação é Cristo. Ele é o sétimo dia, a sétima era do mundo. Uma nova era de graça é aberta com a Sua vinda. Nós não devemos deixá-la passar, como os judeus fizeram. Notemos antes que o tema do descanso e o tema do sétimo dia, os aspectos espiritual e escatológico estão reunidos na única pessoa de Cristo que lhes dá seu significado. A mensagem do Novo Testamento está, sobretudo, de fato, em apontar que Cristo é quem foi anunciado por todas as prefigurações do Antigo Testamento.

O Novo Testamento nos mostra a abolição do Sábado e seu cumprimento em Cristo como um fato realizado. Os escritores da Igreja daí em diante explicariam o significado deste fato. Esta abolição levantou, de fato, como aquelas das instituições mosaicas, um difícil problema. De um lado, a prática literal do Sabbath é o objeto de um mandamento expresso de Deus no Antigo Testamento, que era considerado pelos cristãos como um livro inspirado. Mas também, esta prática foi abolida por Cristo, e o Sabbath agora possuía para os cristãos somente o valor de um símbolo. Como estas duas afirmações poderiam ser reconciliadas? É impossível dizer que Deus poderia contradizer-Se. Duas soluções extremas agora se apresentam. De um lado, o judaizante manteve a prática literal do Sabbath. Eles estavam, então, em acordo com o Antigo Testamento, mas em conflito com a Igreja. De outro lado, os gnósticos rejeitaram o Antigo Testamento por considerá-lo obra de outro Deus. Isto eliminava a contradição, mas levava a uma rejeição do Antigo Testamento, uma rejeição que era igualmente inaceitável. Os cristãos viam claramente que eles deveriam afirmar ambas as coisas, a inspiração do Antigo Testamento e o caráter antiquado do Sábado. Mas levou certo tempo para ver como era possível reconciliar as duas afirmações.

Uma primeira solução consistia em negar pura e simplesmente que a prática literal do Sabbath tenha sido alguma vez o objeto de um mandamento de Deus. Esta é a solução de Pseudo-Barnabé. Para ele, as instituições do Antigo Testamento eram puramente uma linguagem simbólica, que é o propósito da gnose entender. Mas os judeus não possuíam esta gnose: eles tomavam sua linguagem literalmente, e todas as suas práticas nunca cessaram de ser condenadas por Deus. Essa do Sabbath em particular foi sempre reprovada (II.5). Como M. Lestringant bem diz: "Para ele, a exegese cristã não precisava dar à Escritura um novo significado, pois em nenhum momento ela teve outro significado. Deus sempre revelou uma só verdade. Os sacrifícios, o templo, circuncisão, foram apenas sinais. Suas práticas constituíam uma flagrante violação da vontade de Deus. E, além disso, Deus tinha formalmente advertido as nações infiéis que Ele não desejava nem sacrifício nem oferenda" (Essai sur l'unite de la revelation biblique, p. 168). Esta solução simplificava a questão. Cristo não precisava dar um significado figurativo ao Sabbath, pois ele nunca tinha tido nenhum outro significado, ele nunca tinha sido outra coisa além de um símbolo. O senso figurativo da Escritura é o literal, desde que Moisés intentou falar em linguagem simbólica. Esta solução radical, que depois ia ser a de Pascal, enquanto assegurava a unidade da Revelação, tirava do Antigo Testamento a sua própria substância.

A solução de Justino era menos absoluta. Ele mostra primeiro como, mesmo no Antigo Testamento, o mandamento do Sabbath não era o objeto de uma obrigação incondicional desde que ele admitia exceções: "Deus desejou fazer seus sacerdotes cometerem pecado quando eles ofereceram sacrifícios no dia de Sábado, e também aqueles que receberam ou deram circuncisão no dia de Sábado, desde que Ele ordenou que o recém-nascido deveria ser circuncidado no oitavo dia mesmo que ele caísse no Sábado?" (Dial. XXVII, 5.) Justino reproduz a linha de argumentação do próprio Cristo conforme dada em São Mateus (12, 5), e acrescenta um segundo exemplo àquele dado por Cristo. Nós estamos no começo de uma linha de raciocínio que nós devemos encontrar de novo e de novo através de toda a literatura patrística e que foi constantemente enriquecida com novos exemplos. Tertuliano dá aqueles da queda de Jericó no dia de Sábado (Jos 6,4) e o da luta dos Macabeus no Sábado (Adv. Jud. 4; P. L. II, 606 B-C). Encontramos todos estes textos novamente em Irineu (Adv. haer. V. V. 8; P. G. VII, 994-995), em Aphraates (Dem XIII, P. S. I, 568569), e no Testemunia Adversus Judaeos transmitido sob o nome de Gregório de Nissa (P. G. XLVI, 222 B-C). Esta é uma primeira forma de argumento que continua aquele do Evangelho.

A segunda linha de argumentação também procede do Evangelho: é o fato de que Deus não observa o Sabbath no governo do mundo. Nós já consideramos, em conexão com São João 5,17, que esta é uma resposta à noção judaica de que o próprio Deus está sujeito ao Sabbath. São Justino retorna duas vezes este argumento: "Olhem as estrelas, elas não descansam, elas não observam o Sabbath" (XXIII, 3). E a seguir: "Deus governa o mundo nesse dia do mesmo modo que Ele o governa em todos os outros" (XXIX, 3). Dentro do Judaísmo, certos homens como Filo também rejeitam como sendo excessiva demais a idéia de Deus estando sujeito ao Sabbath. O argumento de Justino foi tirado de Clemente de Alexandria: "Sendo bom, se (Deus) cessasse de fazer o bem, Ele cessaria de ser Deus" (Strom. VI, 16; Staehlin, 504, 1-5). Nós encontramos isto de novo em Orígenes: "Nós sempre vemos que Deus está agindo, e não há Sabbath no qual Ele não aja" (Hom. num. XXIII, 4). Isto está na Didascalia dos Apóstolos: "A economia do universo sempre continua, as estrelas não cessam nem por um instante no seu movimento regular produzido pela ordem de Deus. Se Ele diz: 'Você deve observar o descanso, como é que Ele mesmo age, criando, conservando, nutrindo, governando a nós e Suas criaturas? .... Mas estas coisas (o preceito do descanso sabático) foram estabelecidas por um tempo, como figura." (Const. Ap. VI, 18, 17).

Estes dois primeiros argumentos contra o valor absoluto do descanso sabático são, então, desenvolvidos do próprio Evangelho. Justino acrescenta um terceiro, que é o ais importante para uma compreensão da sua posição no que concerne ao Sabbath: "Aqueles que foram chamados justos antes de Moisés e Abraão e que foram agradáveis a Deus, não foram circuncidados nem observavam o Sabbath. Por que Deus não os ensinou estas práticas?" (XXVII, 5. Veja também XLVI, 2-3) Não apenas o mundo não está sujeito ao Sabbath, mas os patriarcas, que os judeus veneravam, não foram submetidos a ele por Deus. Certos judeus, como o autor do Livro dos Jubileus, de fato nos mostram os patriarcas como servadores do Sabbath. Mas isto é um exagero óbvio. O Sabbath não é, então, de nenhum modo necessário à salvação, desde que os próprios judeus reconheceram que Abraão foi salvo sem tê-lo praticado (XVLV, 3). Esta linha de argumentação, que não é encontrada no Novo Testamento em termos explícitos, mas de que nós encontramos o equivalente, também foi usado pela tradição inteira (Tertulian Adv. Jud. 4; P. L. II, 606; Aphraates, Dem. XIII, 8; P. S. I, 558). Nós o encontramos também na Didascalia: "Se Deus tivesse querido que nós observássemos o descanso depois de seis dias, Ele teria começado por fazer os patriarcas observarem-no e todos os homens justos que viveram antes de Moisés." (Cons. Ap. VI, 18, 16).

Mas, então, por que o Sabbath foi instituído? Justino não vai tão longe quanto Barnabé; ele mantém que Deus quis a prática do Sabbath no seu modo literal. Ele não é, então, uma pura figura. Mas esta divina instituição não é uma honra para Israel; ela não marca qualquer progresso no plano da salvação. Ao contrário, é somente por causa da maldade de Israel que Deus impôs o Sabbath a eles: "Foi somente para vocês que a circuncisão foi necessária, pois Noé e Melquisedec não observaram o Sabbath e contudo eles agradaram a Deus, e também aqueles que os seguiram, até Moisés, sob o qual nós vemos seu povo mau fazendo um bezerro de ouro no deserto.... Veja por que Deus Se adaptou ao vosso povo. O Sabbath foi prescrito para vós para vos fazer lembrar de Deus." (XIX, 6. Veja também XXVIL, 2; XLV, 3; XLVI, 5; CXII, 4). É porque, então, os judeus são infiéis à lei natural do divino culto que, para guiá-los a ela, Deus lhes deu o Sábado como meio de educação. O Sabbath, então, é visto como o próprio sinal da reprovação do povo judeu: "É de fato por causa de vossa própria maldade e aquela de vossos pais que, para vos marcar com um sinal, Deus prescreveu que que deveríeis observar o Sabath" (XXI, 1).

Assim, a existência do Sabbath é justificada, mas ainda não como um estágio na história. Notemos de fato que, de acordo com Justino, não apenas era o Sabbath uma instituição inferior aos olhos de Deus, já que Ele tinha uma melhor ordem em vista, mas esta melhor ordem foi aquela que Ele instituiu no começo. A situação dos patriarcas é superior àquela dos judeus, que marca uma decadência. Cristo, então, restabeleceu a ordem primitiva. Em outras palavras, Justino ainda não vê nenhuma outra via para evitar a contradição em Deus, além de admitir que Sua vontade foi sempre que não deveria haver nenhum Sabbath, e que ele era somente uma infração provisória da ordem imutável que Ele tinha estabelecido. Isto é o que Justino explicitamente afirma: "Deus não aceita sacrifícios de vós; e se Ele uma vez vos ordenou oferecê-los, não foi por Ele precisar deles mas por causa dos vossos pecados... Se nós não admitimos isto, nós caímos em idéias absurdas tais como a de que não era o mesmo Deus que existiu no tempo de Henoque e de todos aqueles  que não observaram o Sabbath, desde que foi Moisés quem o ordenou para ser observado... Foi porque os homens eram pecadores que Ele que é sempre o mesmo prescreveu estas ordenanças e outras como elas" (XXIII, 1). A imutabilidade de Deu não pode ser salva, de acordo com Justino, exceto pela imutabilidade do mundo estabelecido por Ele. Ele não tem nenhuma idéia de revelação progressiva. E nós encontramos uma vez mais em Eusébio de Cesaréia esta mesma concepção que nega toda a história.

De qualquer modo, nós podemos ver de agora em diante que Deus suprime o Sabbath sem contradizer-Se de qualquer maneira, desde que Ele foi levado a instituí-lo somente porque foi forçado a fazê-lo pela maldade do povo judeu, e em consequência Ele teve o desejo de fazê-lo desaparecer tão logo Ele tivesse realizado Seu propósito de educação: "Por isso, assim como a circuncisão começou com Abraão, assim o Sabbath começou com Moisés (e ele mostrou que estas instituições foram feitas por causa da dureza de seu povo); assim também, pela vontade de Deus eles tiveram que desaparecer n'Ele que nasceu de uma Virgem da raça de Abraão, Cristo, o Filho de Deus" (XLIII, 1). A vinda de Cristo marca o fim desta economia provisória. Ela visou apenas preparar para Ele. Sua prática literal foi um esboço do que Cristo estava para realizar em plenitude: "Eu posso, tomando-as uma por uma, mostrar que todas as prescrições de Moisés foram somente tipos, anúncios, símbolos daquilo que estava por vir com Cristo" (XLII, 4). O verdadeiro Sabbath não consiste em consagrar um dia apenas a Deus, mas todos os dias, e não em abster-se de trabalhos físicos, mas do pecado: "A nova lei quer que observeis continuamente o Sabbath, ainda que penseis que sois piedosos por causa do descanso e por não fazer nada num dia. Não refletis na razão do preceito. Não é nestas coisas que o Senhor nosso Deus é agradado. Se houver entre vós um perjurador ou um ladrão, que ele cesse (pausastho); se houver um adúltero, que ele faça penitência e ele terá observado o Sabbath de prazeres, o verdadeiro Sabbath de Deus" (XII, 3).

Estas últimas linhas são importantes. Elas claramente contrastam a prática exterior do descanso em um dia da semana, que é somente uma figura, com a prática interior de que este descanso é o símbolo. Na realidade, o Sabbath, isto é, a vida cristã inteira deveria ser consagrada a Deus - e isto não em abster-se do trabalho com nossas mãos, mas em cessar de pecar. O contexto nos mostra que este cessar de pecar deveria ser entendido do Batismo. É Cristo, então, Quem é o verdadeiro Sabbath, de que o Sabbath judaico era a figura. O que é importante aqui é que nós encontramos a interpretação espiritual de Isaías, que está no pano de fundo desta passagem inteira (Justino a cita extensamente, XII, 1; XIII, 2-9; XIV, 4; XV, 2-7), relatada na economia do Cristianismo. O verdadeiro Sabbath de que Isaías falou, e que consiste em "cessar de fazer o mal" (1,16), está em Cristo que é a cessação do pecado, condição que Ele somente cumpre. Cristo nos introduz no único Sabbath, de que os Sabbaths da Lei foram somente uma prefiguração profética que não nos deu o que eles significavam. O processo de espiritualização começado com Isaías é continuado por Justino e assim realizado na dispensação cristã. Nós estamos agora, portanto, na mais autêntica linha de tipologia bíblica.

Mas permanece o fato de que em Justino é sobretudo o aspecto negativo da tipologia do Sabbath que aparece, quer dizer, a justificação do desaparecimento da observância do preceito literal. Isto é facilmente explicado quando nós percebemos que a sua atenção estava focada no conflito com os judeus. Irineu teve um problema diferente, pois ele lidou com o erro reverso, aquele dos Gnósticos. Seu pensamento sobre este ponto não é sempre perfeitamente homogêneo. Às vezes ele aceita as pressuposições de Justino e admite que a aparição da legislação é conectada com a decadência de Israel no Egito (IV, 16, 3; P. G. VII, 1017 A-B). Mas em toda parte o seu pensamento mais profundo aparece: Deus está formando a humanidade de acordo com uma economia progressiva (IV, 38, 1). É muito normal, então, que a Lei deveria ter correspondido a uma humanidade ainda num estado de infância, como é normal que ela deveria dar lugar a uma economia mais perfeita quando a humanidade tiver sido trazida a uma maior perfeição. Assim a verdadeira idéia do Sabbath agora aparece. Ele pode hoje ser abolido, e ainda assim, ontem, ter sido a expressão da vontade divina: não é Deus Quem mudou, mas antes o homem que existe no tempo. Assim Irineu pode mostrar que o Sabbath é uma excelente instituição (IV, 8, 2; P. G. VII, 994) e ao mesmo tempo afirma ele está agora abolido. Não é por causa da maldade do homem que a Lei apareceu, como se ela fosse uma regressão em relação à ordem imutável querida por Deus, mas é porque o desenvolvimento da humanidade tem sido progressivo; ela precisou começar com uma educação adaptada aos seus começos. Mas agora que a humanidade emergiu deste estado de infância, a sombra da Lei deve dar lugar à realidade do Evangelho: "A lei não irá mais ordenar que passe um dia em descanso e ociosidade quem observa o Sabbath todos os dias no templo de Deus que é o seu próprio coração" (Dem 96).

A instituição judaica do Sabbath agora aparece como sendo a figura do Sabbath perpétuo que é o Cristianismo. Nós devemos notar o paralelismo com o templo. Aqui nós encontramos de novo a tipologia de Justino que Irineus desenvolve ainda mais: "Deus deu (os Sabbaths) como um sinal. Mas estes sinais não faltam em simbolismo, quer dizer, não deixam de ensinar; nem são eles arbitrários, desde que eles foram instituídos por um artesão sábio, pois os Sabbaths ensinaram perseverança no serviço de Deus suportando tudo durante o dia. 'Nós agora somos', diz São Paulo 'como ovelhas para ser sacrificadas durante todo o dia', quer dizer, nós somos consagrados, seguindo a nossa fé em todo o tempo, perseverando nisto e nos abstendo de toda a cobiça, nem comprando nem possuindo qualquer tesouro na terra.  E por isso foi significado também, de algum modo, o descanso de Deus depois da criação, quer dizer, o reino do qual o homem que perseverou em seguir a Deus tomará parte na Sua festa." (IV, 16, 1; P. G. 1015-1016).

Este texto afirma antes de tudo e com grande precisão o caráter significante do Sabbath: "Os sinais não eram sem simbolismo". Ele então desenvolve este simbolismo em um duplo sentido: eclesiástico e escatológico. Assim, nós encontramos uma vez mais as duas direções tomadas pela tipologia do Sabbath que nós percebemos no Antigo Testamento e encontramos de novo no Evangelho. Concernente à primeira destas direções, Irineu traz os dois aspectos que nós já encontramos com Justino: de um lado, perseverança no serviço de Deus durante toda a vida, de que o um dia reservado a Ele era somente uma figura; e de outro, o cessar de fazer o mal; nós devemos considerar, todavia, que, de acordo com uma idéia peculiar a Irineu, o Sabbath judaico significava a abstenção do trabalho servil, quer dizer, de trabalho rentável (IV, 8, 2; 994 B) e assim era menos a figura de uma abstenção do pecado que do distanciamento das coisas terrenas. Com respeito ao aspecto escatológico, ele se mantém na ordem do Antigo Testamento: o sétimo dia não é a figura do Cristianismo a princípio, como nos textos do Evangelho e da Epístola aos Hebreus, mas é a figura do mundo que há de vir. Este aspecto da tipologia do Sabbath é relatado a Irineu, tanto pela Epístola aos Hebreus quando pelo texto do Gênesis. Assim, nós vemos que a tipologia escatológica do Sabbath foi desenvolvida ao longo das linhas do Gênesis, como tomadas da Epístola aos Hebreus, enquanto a tipologia espiritual foi desenvolvida ao longo das linhas de Isaías, tomadas do Evangelho de São Mateus.

Com Irineu, a tipologia do Sabbath aparece fixada em suas linhas essenciais, negativamente , na justificação para a abolição do Sabbath judaico, e positivamente, no conteúdo do simbolismo do Sabbath. Nós devemos encontrá-lo desenvolvido nestas duas direções por Tertuliano e Orígenes. Tertuliano adota o primeiro aspecto. Seu Adversus Judaeos, que continua o Diálogo com Tifo, é uma parte da controvérsia com o Judaísmo em que a questão do Sabbath estava em primeiro plano. Tertuliano distingue os Sabbaths: "As Escrituras falam de um Sabbath eterno e de um temporal" (Adv. Jud. 4). O Sabbath temporal é humano, o eterno é divino. Este existiu antes do Sabbath temporal: "Assim, antes do Sabbath temporal, havia um Sabbath eterno mostrado e predito antecipadamente. Deixemos os judeus aprenderem que Adão observou o Sabbath, e que Abel quando ofereceu a Deus uma vítima santa, O agradou por cumprir o Sabbath, e que Noé, construtor da Arca por causa do grande Dilúvio, observou o Sabbath" (id). Este Sabbath, de fato, é a adoração de Deus.

Prefigurado pelos patriarcas, "nós vemos que ele é cumprido no tempo de Cristo, quando toda a carne, quer dizer, toda nação, veio a Jerusalém para adorar a Deus o Pai através de Seu Filho Jesus Cristo." É este Sabbath que "Deus quer que nós observemos de agora em diante." É por isto que "nós sabemos que nós devemos nos abster de todo trabalho servil, e que não apenas no sétimo dia, mas em todo o tempo."

Nós encontramos de novo a idéia do verdadeiro Sabbath concebida como a adoração a Deus e abstenção de trabalho servil, entendidos no sentido espiritual, e isto perpetuamente. O interesse da passagem repousa no fato de que Tertuliano mostra que a prática do Sabbath pelos patriarcas era uma figura de sua realização em Cristo. Mas e quanto ao Sabbath temporal, isto é, a instituição mosaica de cessar de trabalhar num dia da semana? Esta era uma instituição temporária, e Tertuliano vê a prova disto no fato de que, mesmo no Antigo Testamento, ela era frequentemente suspensa. Ele usa os exemplos que nós já citamos. "É, então, claro que observâncias deste tipo têm um valor temporário e foram tornadas necessárias pelas circunstâncias do tempo, e que Deus não deu esta lei no passado para ser uma observância perpétua." Por isso o Sabbath, decretado por um tempo, estava destinado a desaparecer: "É por isto que, quando é claro que um Sabbath temporal foi estabelecido e um eterno Sabbath predito, se segue que, todos os prceitos físicos tendo sido dados no passado às pessoas de Israel, um tempo viria quando os preceitos da antiga lei das velhas cerimônias cessaria, e quando a promessa da nova lei viria, quando a luz brilharia para aqueles que estavam nas trevas." Assim Tertuliano completa o que tinha permanecido implícito no pensamento de Irineu mostrando que o Sabbath eterno que já existia no Antigo Testamento ao lado do Sabbath temporal, era ele mesmo uma prefiguração de Cristo, o único verdadeiro Sabbath, e era por este próprio fato o anúncio de que o Sabbath temporal era apenas uma economia provisória.

Como Tertuliano assim torna mais precisa a tipologia do Sabbath quanto a sua forma, assim Orígenes continua o pensamento de Irineu desenvolvendo seu conteúdo, e isto em seu duplo significado eclesial e escatológico. Na XXIII Homilia sobre o Livro dos Números, ele trata da tipologia das várias festas judaicas, ao lado das linhas de Filo no De Decalogo, mas sem pegar nada emprestado dele. "O justo deve também celebrar a festa do Sabbath. Mas o que é a festa do Sabbath senão aquela que o Apóstolo diz: 'Ainda permanece, todavia, um dia de descanso (sabbatismus), quer dizer, a observância do Sabbath reservada ao povo de Deus.' Deixando de lado, então, as observâncias judaicas do Sabbath, vejamos o que deve ser a observância do Sabbath para um cristão. No dia do Sabbath, nenhum dos trabalhos mundanos devem ser feitos. Se, então, tu te absténs de todos os trabalhos que são terrenos, e não se ocupa com nenhum assunto mundano mas se mantém livre para as coisas espirituais, vai à Igreja, escuta as leituras e divinas homilias, medita nas coisas celestes, se preocupa com a esperança futura, considera não as coisas que são presentes e visíveis mas aquelas que são futuras e invisíveis - esta é a observância do Sabbath cristão. Ele que se abstém de trabalhos do mundo e se libera para as coisas espirituais, ele é quem celebra a festa do Sabbath. Ele não leva nenhum fardo na jornada. Pois o fardo é qualquer pecado, como o Profeta diz: Eles me pesam como um fardo pesado. No dia do Sabbath, todos ficam sentados em seu próprio lugar. Qual é o lugar espiritual da alma? Justiça é o seu lugar, e verdade, sabedoria, santidade, e tudo que Cristo é, este é o verdadeiro lugar para a alma. E é deste lugar que ela deveria não sair se é para manter o verdadeiro Sabbath: 'Aquele que permanece em mim, Eu também permanecerei nele.'" (Jo 15, 5) (Ho. Num. XXIII, 4).

Aqui, então, está o sentido espiritual e eclesial. O cumprimento da figura do Sabbath é a vida cristã inteira, que é totalmente espiritual e consagrada a Deus. A este significado, Orígenes acrescenta o sentido escatológico. "Desde que nós temos falado dos verdadeiros Sabbaths, se nós procuramos, indo ainda mais alto, aprender o que os verdadeiros Sabbaths são, é além deste mundo que nós encontramos a verdadeira observância do Sabbath. Isto é, de fato, o que está escrito em Gênesis, que 'Deus descansou no sétimo dia de todas as Suas obras.' Nós vemos que isto não foi cumprido no sétimo dia, e que não é cumprido mesmo agora, pois nós vemos que Deus está sempre agindo e que não há Sabbath em que Ele não aja, em que Ele não cause o nascer do sol sobre o justo e o injusto, para agir e para curar. É por isto que o Senhor, no Evangelho, acusado pelos judeus de agir e de curar no Sabbath, lhes respondeu: 'Meu Pai trabalha mesmo agora, e eu também trabalho', mostrando por isso que em nenhum Sabbath deste mundo Deus cessa de administrar o mundo e de prover as necessidades da raça humana. De fato Ele fez, no começo da criação, substâncias para existirem, tão numerosas quanto Ele, o Criador, pensou necessárias para a perfeição do mundo; mas até a consumação das eras Ele não cessou de administrá-las e de conservá-las. O verdadeiro Sabbath, depois que Deus descansar de todas as Suas obras, será no mundo futuro, quando pesares, tristeza e gemidos desaparecerão e Deus será tudo em todos. Possa Deus conceder que nós possamos festejar neste Sabbath com Ele e celebrá-lo com Seus santos anjos, oferecendo o sacrifício de louvor e dando graças ao Mais Alto. Então de fato a alma irá ser capaz sem cessar de estar presente com Deus e de oferecer a Ele o sacrifício de louvor pelo Sumo Sacerdote, que é um Sacerdote para eternidade de acordo com a ordem de Melquisedec." (Ho. Num. XXIII, 4).

Nós achamos aqui de novo o eco da antiga tradição. Com Justino, Orígenes recorda que Deus não está sujeito ao Sabbath, desde que Ele não cessa de governar a criação. E nós devemos notar que ele conecta o Sabbath com o texto de João 5,17. Esta idéia foi tirada de novo de Clemente de Alexandria (Strom. VI, 16; Staehlin, p.504, 2), mas sem ser conectada com o texto evangélico. Com Irineu, ele mostra que o descanso de Deus que é significado em Gênesis não é somente o tempo presente, mas antes o mundo que se seguirá depois desta criação. O Sabbath portanto é uma figura da entrada do homem no mundo futuro onde ele descansará de suas obras, quer dizer, onde ele irá tomar parte no banquete divino, na liturgia dos anjos, onde ele eternamente oferecerá com Cristo o Sumo Sacerdote o sacrifício de louvor. Aqui estão os verdadeiros Sabbaths de Deus, de que o Sabbath judaico era a distante prefiguração, de que a contínua oração é o começo sacramental na Igreja, e de que a liturgia celestial é o seu pleno cumprimento.

Este aspecto figurativo do Sabbath é aquele que apareceu como o mais impressionante às primeiras gerações cristãs. Preocupada antes de tudo com marcar o fim da ordem judaica e sua substituição pela realidade cristã, ela insistiu sobretudo no fato de que a instituição do Sabbath estava cumprida pelo mistério inteiro cristão. Mas apareceu também que este mistério cristão incluía uma estrutura sacramental, quer dizer, que as próprias realidades espirituais da Igreja se expressavam por meio de sinais visíveis. Os pães da proposição foram abolidos, mas a Igreja possui outro Pão. O Templo de Jerusalém foi destruído e cumprido no Cristo inteiro, o lugar da Divina Presença, mas a Igreja também possui igrejas de pedra, conectadas com a presença eucarística. O Cristianismo não é uma realidade puramente espiritual. Sua essência espiritual se expressa por meio destas realidades visíveis, e isto precisamente é a Liturgia. E isto é verdadeiro de nosso tópico também. O Sabbath foi abolido e cumprido no Cristo ressurreto, mas a Ressurreição de Cristo teve uma comemoração visível, isto é, o Domingo.

Card. Jean Daniélou, Bible and Liturgy, Tradução nossa.

Contemplação filosófica: ver as coisas à luz da eternidade


Olavo de Carvalho

Na filosofia grega, a palavra theoria tinha uma acepção precisa. Era correlata das noções de logos ("razão" ou "linguagem"), de eidos ("idéia" ou "essência"), de ón ("ser", "ente") e de aletheia ("patência", "desvelamento", revelação da verdade oculta).

O homem teorético, o filósofo, não se ocupava genericamente de contemplar, de olhar, num sentido em que os demais homens também podiam contemplar e olhar. Por exemplo, todos os homens contemplavam os espetáculos de teatro, a beleza dos seres humanos e da paisagem, etc. A contemplação do homem comum podia ser lúdica, estética, utilitária ou o que quer que fosse. A do filósofo, não. Era um tipo muito determinado de contemplação, com um motivo específico e um objetivo específico, que faziam dela, propriamente, uma contemplação filosófica e não outra qualquer. O filósofo contemplava as coisas para captar a sua essência (eidos), patenteando (aletheia) o seu verdadeiro ser (ón); em seguida o filósofo dizia (logos) o que era essa coisa, patenteando em palavras (aletheia) o verdadeiro ser (ón) que estava oculto.

Dito de outro modo, as coisas, os fenômenos, eram para o filósofo signos, que ele decifrava em busca do significado ou essência. Entre o signo e o significado, a chave interpretativa era a razão ou logos. Pela razão, o homem filósofo saltava de um plano para o outro: do plano da fenomenalidade instável, movediça, enganosa, para o plano das essências, do ser verdadeiro. Este plano era considerado superior, por abranger e ultrapassar o mundo dos fenômenos (ele contém todos os fenômenos manifestos, e mais um sem-número de essências não manifestadas ou possibilidades), e também por ser estável, imutável, eterno. Esta postura se tornou mais clara e autoconsciente a partir do platonismo, porém já era a dos eleáticos. Em suma, ela se baseia na crença de que todos os fatos e todos os entes são fenômenos - "aparecimentos" - de alguma coisa: são exteriorizações ou exemplificações das essências ou possibilidades, contidas eternamente na Inteligência Divina. O filósofo grego contemplava as coisas, portanto, sub specie aeternitatis, isto é, na categoria da eternidade, à luz da eternidade; buscava nelas a sua significação eterna, superior à aparência fenomênica e transitória. Esta contemplação conferia a essas coisas, portanto, uma dignidade e uma realidade superiores, uma consistência ontológica superior. Pouco importa, para os fins desta análise, a diferença entre platonismo e aristotelismo. Para Platão, as essências constituíam um mundo separado, transcendente; para Aristóteles, o núcleo inteligível era imanente ao mundo sensível; mas em ambos os casos tratava-se de passar da fenomenalidade imediata a um estrato mais profundo e permanente.

A interpretação (hermeneia) das aparências consistia nessa subida de nível ontológico, desde o ente fenomênico até o ser essencial. O termo hermeneia deriva do nome do deus Hermes, ou Mercúrio, o deus psicopompo, isto é, "guia das almas", encarregado de levá-las na escalada e descida através dos mundos ou planos de realidade, do sensível ao inteligível, do particular, transitório e aparente ao universal e estável. Nisto consistia, basicamente, a postura interpretativa do filósofo grego.

Qual a diferença essencial entre a atitude contemplativa - ou interpretativa - e a atitude transformante, isto é, entre a theoria e a praxis?

A theoria, ao elevar o objeto até o nível da sua idéia, essência ou arquétipo, capta o esquema de possibilidades do qual esse objeto é a manifestação particular e concreta. Por exemplo, o arquétipo de "cavalo", a possibilidade "cavalo", pode manifestar-se em cavalos pretos ou malhados, árabes, percherões ou mangalargas, de sela ou de trabalho, etc. Pode manifestar-se em prosaicos cavalos de carroças ou em cavalos célebres e quase personalizados como o cavalo de Alexandre. Pode manifestar-se em seres míticos que "participam da cavalidade", como o pégaso ou o unicórnio, cada qual, por sua vez, contendo um feixe de significações e intenções simbólicas. Enfim, a razão, ao investigar o ser do objeto, eleva este último até o seu núcleo superior de possibilidades; resgatando-o da sua acidentalidade empírica e restituindo, por assim dizer, seu sentido "eterno". A consequência "prática" disto é portentosa. Ao conhecr um arquétipo, sei não apenas o que a coisa é atualmente e empiricamente, mas tudo o que ela poderia ser, toda a latência de possibilidades que ela pode manifestar e que se insinua por trás da sua manifestação singular, localizada no espaço e no tempo.

A praxis, ao contrário, transforma a coisa, isto é, atualiza uma dessas possibilidades, excluindo imediatamente todas as demais. Por exemplo, uma árvore. Se investigo o objeto "´rvore" para captar o seu arquétipo, tomo consciência do que ela é, do que poderia ser, do que ela pode significar para mim, para outros, em outros planos de realidade, etc. Porém, se a transformo em cadeira, ela já não pode transformar-se em mesa ou estante, e muito menos em árvore. De cadeira, ela só pode agora transformar-se em cadeira velha, e depois em lixo.

Para o filósofo, portanto, o fenômeno, a aparência sensível imediata é sobretudo um signo o símbolo de um ser. Para o homem da praxis, a aparência é sempre matéria-prima das transformações desejadas. A investigação teórica insere o ser no corpo da possibilidade que o contém, e o explica e integra no sentido total da realidade. A praxis, ao contrário, limita suas possibilidades, realizando uma delas, sem via de retorno. Para a theoria, o ente é sobretudo a sua forma, no sentido aristotélico, isto é, aquilo que faz com que ele seja o que é; para a praxis, o ente é sobretudo matéria, isto é, aquilo que faz com que ele possa tornar-se outra coisa que não aquilo que é. Não se deve confundir esta oposição com a do "estático" e a do "dinâmico", porque o dinamismo interno faz parte da forma (por exemplo, a forma da semente é a planta completa em que ela tem o dom de se transformar). Mais certo é dizer que a theoria se interessa pelo que um ente é em si e por si, e a praxis se interessa pelo que ele não é, pelo ser secundário, às vezes pelo falso ser ou arremedo de ser que podemos fabricar com ele. Era neste sentido que as escrituras hindus negavam que a ação pudesse trazer conhecimento, de qualquer espécie que fosse. A ação produz apenas transformação, fluxo de impressões, ilusão, da qual saímos apenas pelo recuo reflexivo posterior, pela "negação" teorética e crítica da ação consumada: o espírito filosófico, potência latente no homo sapiens, só se atualiza como reflexão sobre as desilusões do homo faber.

Olavo de Carvalho. O jardim das aflições. 2ª Ed. São Paulo: É Realizações, 2000. p.112-114.

A Igreja Católica é o Reino de Deus

Scott Hahn

Nos momentos que antecederam a Ascensão de Jesus ao céu, havia apenas uma pergunta que ardia no coração dos discípulos: "Senhor, é agora que vais restaurar o reino de Israel?" (At 1,6)

No centro da história bíblica, bem como no coração do povo de Deus, havia um lamento fúnebre no sentido de perda e ganho, queda e redenção. Deus tinha concedido um reino ao Seu povo, mas eles haviam perdido esse reino. Daí, aguardavam ansiosamente pela sua restauração. E Jesus anunciou a sua iminente restauração. E Jesus anunciou a sua iminente restauração.

Realmente a história começa no livro do Gênesis, quando Deus dá a Adão o "domínio" sobre "toda a terra" e todas as criaturas nele, de peixes a aves, gado e todos os bichos (Gn 1,26). Adão foi feito "imagem" e "semelhança" de Deus, o que nos indica um relacionamento paterno e uma atribuição de responsabilidades reais. Homem e mulher são criados para servirem a Deus como reis. Quando o salmista retoma esse tema, ele aborda o domínio em termos da realiza que Deus compartilha de boa vontade com o primeiro homem:

O que é o homem, para dele te lembrares? O ser humano, para que o visites? Tu o fizeste pouco menos do que um deus, e o coroaste de glória e esplendor. Tu o fizeste reinar sobre as obras de tuas mãos, e sob os pés dele tudo colocaste. (Sl 8,5-7)

Deus "coroou" toda a humanidade em Adão e outorgou ao primeiro casal e sua prole, todo o "domínio" e "governo" sobre a terra. Os povos antigos teriam percebido no Gênesis uma forma simples de comportamento real, que era a de acumular terras para passá-las a seus filhos e herdeiros.

Mas Adão era mais do que um simples rei. Ele era um rei sacerdotal. O Gênesis relata que Deus atribuiu a ele funções específicas, indicadas pelos verbos hebraicos abodah e shamar (comumente traduzidos como "servir" e "cuidar"). Em outras partes do Pentateuco, esses verbos aparecem juntos apenas para descrever o serviço ritual dos sacerdotes Levitas no santuário (ver Nm 3,7-8; 8,26; 18,5-6). Ao descrever o serviço sacerdotal, eles deveriam prestar o "serviço" e a "guarda". Os sacerdotes eram destinados a oferecer o serviço do sacrifício a Deus, e a guardar o santuário do Senhor das contaminações. Essas pistas literárias sugerem a intenção dos autores bíblicos ao descreverem toda a criação como um templo real construído por um rei celestial. Intencionalmente, Adão é retratado como o primogênito real e uma figura sacerdotal, ou seja, um misto de rei e sacerdote para governar como vice-rei sobre o templo-reino da criação.

Deus sela tudo isso de uma maneira especial. Os termos da relação do homem com Deus são ordenados pela aliança do Shabbath, estabelecido no sétimo dia. A palavra hebraica para um juramento da aliança é sheva, que significa "sete". Pois tal juramento é, literalmente, o "próprio sétimo dia". Então, a aliança tem seu significado no repouso do sétimo dia por Deus. É certo que não poderia ter sido para o descanso de Deus, pois o Todo-poderoso não se cansa. Não, Deus está criando aqui um vínculo por meio de uma aliança - um vínculo de uma família- com o universo. Ao soprar a vida em Adão, Ele concedeu o Seu Espírito de filiação ao homem. Adão deveria governar o mundo como um filho de Deus. Este aspecto é corroborado não somente pelo ensinamento da Igreja Católica, mas também nos escritos dos antigos rabinos. Estudiosos modernos têm feito referência ao sétimo dia, abençoado por Deus, como uma "Aliança Universal".

Na história da criação, vemos Deus preparando um reino e, depois, estabelecendo a humanidade como Sua família real na terra. Solenemente, Ele sela o seu decreto, estabelecendo uma aliança eterna.

Esta aliança é fundamental para compreendermos o Livro do Gênesis - e toda a Bíblia, a qual, aliás, é dividida em "Antiga Aliança" e "Nova Aliança" (A palavra hebraica para aliança, berith, e a grega, diatheke, são normalmente traduzidas para o português como "testamento"). Quando tomamos o Gênesis em seus termos próprios, o mesmo é inteligível. No entanto, quando tentamos impor as nossas condições ao texto, este se desintegra diante de nossos olhos.

Por exemplo, algumas pessoas leem o Gênesis como um livro didático de ciência antiga e, por isso, acham várias falhas nele. Mas este livro não foi escrito como um livro de ciências. Trata-se, de certa forma, de uma carta da realeza - do reinado de Adão, cujo nome significa tanto "um homem" como "a humanidade". Um dos termos da aliança de Deus com a raça humana é o domínio: Adão e Eva deviam encher a terra e subordiná-la a eles. Assim, Deus fez o universo para o bem e o gozo deles. Ele fez o universo cognoscível para eles de uma forma que não era conhecido pelos outros animais. O nosso conhecimento da criação difere do deles não somente em grau, mas em espécie. A mente humana, então, foi conformada à criação, e a criação feita para a mente humana. Este é o princípio antropológico universal em sua forma primitiva. E este termo da aliança, esta declaração de domínio e realeza - juntamente com a necessária inteligibilidade da criação - é o que tornaram possíveis as ciências naturais e tecnológicas.

Ao conceder o mundo para Adão, Deus deu um reino à raça humana para governá-lo como Seu vigário. Pelo seu orgulho e desobediência deles, contudo, Adão e Eva perderam o seu estado privilegiado. Quando a serpente os tentou, eles renunciaram ao seu ofício divino. Adão não conseguiu proteger o jardim santuário do seu mortal intruso e, ao comer do fruto proibido, ele e Eva recusaram-se a fazer um sacrifício de seu desejo sobre os bens terrenos. Eles se recusaram, também, a exercer domínio sobre a besta que os desafiou. Assim, Adão falhou em ambas as tarefas, real e sacerdotal. Ele abdicou do trono que Deus tinha compartilhado com ele, e fez de sua herança um fracasso em todas as gerações de sua linhagem.

Este, o Pecado Original, é um desastre de proporções universais. Os antigos cristãos e seus descendentes modernos poderiam cantar esta perda da graça original como uma "feliz culpa", porque criou a necessidade de um salvador, a real ocasião da encarnação do eterno Verbo de Deus. A partir dos destroços da queda, Deus faria uma obra ainda maior para a humanidade. Por causa da autodestruição de Adão, o mundo pôde esperar por uma restauração.

O caminho de volta

Mas a salvação estava ainda muito longe. Nos capítulos seguintes do Gênesis, a família humana cresce mais revolta, começando com o assassinato de Abel por seu irmão Caim, continuando até a decadência de todo o mundo no tempo de Noé. Deus restabelece parcialmente a ordem do universo, salvando a família de Noé, mas o pecado, mais uma vez, aparece em cena. Com a arrogante autoadoração na Torre de Babel, a família humana é, de novo, dispersada, exilada de Deus e até mesmo um do outro. Estas más gerações têm vagado bem distantes da real e original vocação da humanidade.

Porém, em seguida, surge Abraão, um homem de fé, a quem Deus promete uma futura restauração da aliança universal. Para Abraão e seus descendentes, Deus promete Sua bênção divina para todas as famílias da terra (Gn 12,3); uma terra frutífera (12,1); e uma linhagem de reis (17,6). E Deus sela cada uma dessas promessas com uma aliança (ver Gn 15; 17,4-8; 22,15-18), assim estabelecendo os laços de parentesco entre Deus e a família humana. É por meio de Abraão que também vai se vislumbrar a figura de um rei-sacerdote, Melquisedeque, rei de Salém (Gn 14,18), que abençoou Abraão quando ele ofereceu um sacrifício de pão e vinho a Deus (Salém será posteriormente chamada de Jeru-salém e identificada com o Monte Sião (ver Sl 76,2). A aliança de Deus com Abraão marca a restauração parcial, um cumprimento parcial que, um dia, seria completa, universal, cósmica - católica.

Mas só depois de outros retrocessos... Pois, dentro de apenas algumas gerações, a família de Deus voltaria a pecar gravemente, desta vez trazendo para si o castigo da escravidão numa terra estrangeira. Mas, esse castigo também se revela uma "feliz culpa", como a escravidão no Egito fornece a ocasião da grande obra salvadora de Deus com o Êxodo. A narrativa bíblica que descreve a libertação de Israel, em toda a sua parte, ecoa a narrativa da criação do Gênesis. Israel é salvo através da água como uma nova criação. A nuvem da presença divina cobre o Monte Sinai por seis dias, antes que Deus chame Moisés, no sétimo dia, para entrar na nuvem e receber o plano para a habitação de Deus (Ex 24). As instruções divinas aparecem em setes, de novo, como na obra da criação, com Suas sete ordens culminando em normas de observância para o sétimo dia, o Shabbath. A confecção das vestes sacerdotais e a construção do tabernáculo recordam a narrativa da criação. Em ambos, a obra prossegue por sete etapas (as quais, no Êxodo, se concluem "como o Senhor ordenou a Moisés"). Moisés contempla sua obra, como fez Deus no Gênesis e a abençoa (Ex 39,43). Como Deus "finalizou Sua obra", assim Moisés "finaliza o trabalho" (Gn 2,1-2; Ex 40,34). E, como Deus descansou ao sétimo dia, abençoou-o e santificou-o, assim Moisés finalizou o seu trabalho, e a presença divina encheu o tabernáculo (Ex 40,34). Com o Êxodo, Deus restaurou o sacerdócio real e a realeza sacerdotal. Ele escolheu Israel para ser Sua "propriedade particular dentre todos os povos... um reino de sacerdotes e uma nação santa" (Ex 19,5-6) Ele os colocou no lugar de Adão, o rei-sacerdote. O que Adão deveria ter sido para cada pessoa, Israel seria para cada nação - um sacerdócio régio, "o primogênito de muitos irmãos" (ver Rm 8,29). Como Adão tinha sido criado à imagem e semelhança de Deus, assim Deus destinou Israel com títulos sugestivos da progenitura do sacerdócio régio. Para Deus, Israel é "Meu filho, Meu primogênito" (Ex 4,22-23; 19,6).

Contudo, da mesma forma que os israelitas receberam a vocação de Adão, eles também perpetraram uma queda na graça como Adão. E assim como a queda original resultou no exílio e na dessacralização da realeza sacerdotal, assim também fizeram uma adoração idolátrica ao bezerro de ouro. Deus deserdou Seu povo dizendo claramente a Moisés que eles são o "teu povo, que tu tiraste da terra do Egito" (Ex 32,7). Ao se contaminar por uma rebelião ritual, assim como Adão, Israel tornou-se impróprio para a vocação divina e nunca mais o Antigo Testamento usaria o título de realeza sacerdotal de Êxodo 19,6 para descrever o povo de Israel.

Ainda assim, devido à força de Sua aliança com seu pai Abraão (ver Ex 32,13), Deus poupou Israel e permitiu que as tribos, eventualmente, pudessem entrar na Terra prometida. Então, o povo de Deus experimentou, novamente, uma restauração parcial.

Na Terra prometida, Israel se manteve um povo separado, que, ao contrário de qualquer outro povo, não foi governado por leis humanas, mas pelo próprio Deus mediante Seus profetas. Porém, inexoravelmente, eles foram atraídos pelas armadilhas da realeza que viam nos povos vizinhos, nas terras pagãs. Eles queriam poder, prestígio, lutas e conquistas. Em outras palavras, não queriam ser mais uma nação à parte. Desejavam ser como todos os demais e, por isso, exigiram que o profeta Samuel nomeasse um rei para eles (ver 1Sm 8). Como o pecado de Adão no Éden e o de Israel no Sinai, este pedido evidenciava uma rebelião contra o domínio de Deus. Moisés tinha previsto este dia e, por isso, a contragosto, no livro do Deuteronômio, ele havia dado as leis para reger o comportamento dos reis de Israel.

Samuel avisou ao povo o que eles poderiam esperar de um rei: impostos, recrutamento militar e opressão. Mas o povo insistiu e Deus quis deixá-los seguir o seu caminho. Por meio de um rito, Samuel ungiu Saul em seu ofício real, ação esta que anteriormente era usada apenas para a ordenação dos sacerdotes. Tão logo foi ungido, Saul começou a profetizar. Assim, Deus mostrou ao Seu povo que, embora tivessem rejeitado o Seu governo, Ele continuaria a governá-los através de seu rei, pois eles não tinham escolhido Saul como seu rei, mas Deus o tinha. Nessas condições, apesar de Saul ser orgulhoso e arrogante como rei, ele era "o ungido", que em hebraico é messiah e, em grego, christós, de onde obtemos o título em português "Cristo". Embora os crimes de Saul tenham gerado a queda do seu reinado e sua dinastia, eles não poderiam derrubar a validade da realeza que Deus tinha estabelecido.

Em última análise, Deus iria transformar o pedido de um rei por Israel, como em todas as rebeliões anteriores da humanidade, na ocasião de uma maior obra de Sua parte. Das ruínas do reinado de Saul, surgiu uma casa real ainda maior - de fato, um grande messias-rei - uma bênção para Israel e, através deste povo, uma bênção para todas as nações.

Deste modo, apesar dos repetidos fracassos da humanidade em viver de acordo com sua vocação real e sacerdotal, a restauração da aliança universal ocorreu na história, no tempo certo da providência divina. Inicialmente, Deus reuniu, num único reino, todos os filhos de Abraão, de modo que, posteriormente, pudesse reunir todos os filhos de Adão.

O FUTURO REINO TRANSITÓRIO

A Diferença que Davi fez

Como salmista, rei e antepassado de jesus Cristo - e como um homem conforme o coração de Deus (1Sl 13,14) - o Rei Davi representa muito mais do que poderíamos imaginar a partir das homiléticas populares. Não me leve a mal: não estou dizendo que ninguém prega ou escreve sobre Davi. Essa afirmação seria um absurdo. Davi é o protagonista de um conto emblemático de arrependimento da Bíblia, como consequência de seu namoro com Betsabá. Como tal, ele é uma figura considerada tola nos sermões de cada denominação.

Mas Davi é bem mais do que isso. Na Bíblia, ele é o homem que define a realeza - uma realeza que simplesmente tinha sido sugerida nas histórias da criação e do Êxodo. Ele estabelece a única casa real permanente do Antigo Testamento e a mais longa dinastia do mundo antigo.

Os estudiosos e pregadores costumam reconhecer Davi como a figura dominante do livro dos Salmos, com mais de setenta salmos atribuídos a ele. O que não é amplamente reconhecida é a sua proeminência no decorrer de todo o Antigo Testamento. Sem dúvida, a memória viva de Davi e do seu reinado são centrais para o Evangelho de Jesus Cristo, mas talvez seja mais importante para o direcionamento e significado do Antigo Testamento.

Por que Davi tem sido relativamente negligenciado? É difícil dizer, mas, uma das razões é que os pesquisadores tendem a se concentrar mais na importância e influência de Moisés e da aliança no Sinai.

Moisés é, de fato, uma figura de grande influência em ambos os Testamentos da Bíblia. Mas seria Davi menos influente? Consideremos apenas alguns pontos. Enquanto o nome Moisés ocorre mais de 720 vezes no Antigo Testamento, Davi é mencionado cerca de 1.020 vezes. A vida de Davi é o tema de quarenta e dois capítulos, ou quase 30% do que os antigos rabinos chamavam de "profetas antigos" (de Josué até 2º Reis). Em Crônicas, que faz uma revisão da história de Israel numa perspectiva sacerdotal, o percentual é anda maior.

Nos livros proféticos, Davi é mencionado trinta e sete vezes e Moisés apenas sete. E as esperanças do povo judeu costumam focar no Monte Sião, o lugar do palácio real de Davi, em vez do Sinai, onde Moisés recebeu a Lei. Ainda hoje, o movimento judeu de restabelecimento da antiga pátria é conhecido como "Sionismo", e seu símbolo pertence, não ao legislador, mas ao rei: a estrela de Davi.

Quando os antigos israelitas, e mais tarde os judeus, falaram de "reino", o seu único referencial histórico era o reinado de Davi. Como as histórias de Adão, Abraão e Moisés previam o reinado de um rei sacerdotal, este rei sacerdotal era Davi e, por sua vez, sua casa, sua descendência, seu "filho".

A casa do Sol Nascente

As Escrituras nos falam que Davi era um homem conforme o coração de Deus (1Sm 13,14). De fato, era um homem diferente de Saul. Enquanto este olhava o principado, Davi era um jovem simples e de pequena estatura (1Sm 16,7). Mas quando "Samuel pegou o chifre com óleo e ungiu Davi no meio de seus irmãos... o Espírito do Senhor apoderou-se dele, a partir daquele momento." (1Sm 16,13)

No mesmo instante, o Senhor retirou Seu Espírito de Saul, que passou, então, a ser atormentado pelos demônios. Esses demônios se retiravam somente quando Davi tocava sua lira (da mesma forma que os demônios, um dia, correriam de jesus, confessando que Ele é o Ungido, o Cristo. Ver Lc 4,41).

Saul provocou sua própria morte quando se opôs à vontade de Deus e procurava matar Davi. Tão logo Davi assumiu o trono, ele começou um reinado completamente diferente de Saul, mudando a capital do país para Jerusalém, a fim de unir as tribos. Uma vez firmemente estabelecido em Jerusalém, Davi decidiu trazer a Arca da Aliança para o santuário - Arca esta que continha a Lei que Deus havia dado a Israel, e outras relíquias, tais como o cajado sacerdotal de Aarão e o maná do céu. A presença da Arca em Jerusalém faria desta cidade, não apenas o centro político de Israel, mas também o centro religioso. O próprio Davi estava vestido com vestes reais, mas com paramentos sacerdotais: uma estola de linho. Ele dançou de alegria "com todo o seu poder" diante da Arca e, quando a procissão chegou a sua nova casa, o próprio Davi ofereceu sacrifícios.

Por que tudo correu bem para Davi quando atuou como um sacerdote? Afinal, ele não era um membro da tribo de Levi. Antes, quando Saul tinha tentado oferecer sacrifícios, este fora severamente punido. Porém, havia uma grande diferença entre Davi e Saul. Os sacrifícios de Saul eram apenas uma barganha comercial com Deus, enquanto que Davi dançou e prestou sacrifícios por amor e alegria, não porque quisesse algo de Deus.

Davi era um rei sacerdotal, como Deus pretendia que Adão fosse. Ele tinha o sacerdócio régio, como Deus desejava que Israel esperasse. Davi e seu filho, Salomão, deviam ser reis e sacerdotes como Melquisedeque que reinou e ofereceu sacrifício em (Jeru)Salém (ver Sl 110,1-4).

No entanto, Davi não estava satisfeito; desejava algo mais: ele queria construir um Templo para Deus em Jerusalém. Fez, então, uma consulta ao profeta Natã: "Veja! Eu moro em palácio de cedro, enquanto a Arca de Deus mora numa tenda!" (2Sm 7,2), No entanto, Deus não tinha a intenção de que Davi construísse o Templo, pois tinha guardado algo muito mais importante para o Seu rei. Natã transmitiu as palavras de Deus para Davi:

O Senhor te anuncia que Ele quer fazer-te uma casa... Eu estabelecerei o trono real dele para sempre. Serei para ele um pai e ele será um filho para mim. Se ele falhar, eu o corrigirei com bastão e chicote, como se costuma fazer. Mas eu não desistirei de ser fiel para com ele, como desisti de Saul, que tirei da sua frente. A dinastia e a realeza dele permanecerão firmes para sempre diante de mim; e o seu trono será sólido para sempre. (2Sm 7,11-16)

Aqui o Senhor renovou a Sua aliança com Israel através da casa de Davi. Ele restabeleceu Seu vínculo familiar com o Seu povo usando uma linguagem próxima de parentesco. Como Adão e, depois, Israel viveriam como os primogênitos de Deus, assim o herdeiro de Davi iria desfrutar de um relacionamento de pai e de filho com o Todo-poderoso. Desta vez, porém, ele veio com uma garantia eterna.

Os termos da Aliança são bem perceptíveis:

* O Senhor fará para ti uma casa: Davi não será apenas rei por um dia ou por uma vida, mas o fundador de uma dinastia real.

* Ele estabelecerá o Seu reino: o filho de Davi será o legislador de um vasto reino que inclui todo Israel, e também, o resto do mundo, "as nações" (ver Sl 2,8; 72,11.16). Os livros das Crônicas vão tão longe a ponto de chamá-lo de "o Reino de Yahweh" (ver 1Cr 28,5; 2Cr 13,8).

* ele edificará uma casa ao seu nome: O filho de Davi vai construir o templo como um lar permanente para a Arca da Aliança.

* Serei para ele um pai, e ele será Meu filho: o filho de Davi seria adotado como o próprio filho de Deus. Esta é a primeira vez em que a filiação divina é explicitamente aplicada a um indivíduo. Antes disso, o povo de Israel era chamado o filho primogênito de Deus (Ex 4,22), mas jamais uma pessoa em particular foi chamada de "filho de Deus".

* Se ele falhar... Mas eu não desistirei de ser fiel para com ele: Deus jamais renegaria Davi, não importando o quanto seus descendentes pudessem pecar. A Aliança seria permanente. Como um pai amoroso, Deus puniria Seu filho, mas apenas para o seu próprio bem.

* O seu trono será sólido para sempre: A dinastia de Davi nunca terminaria. Em todas as outras monarquias terrenas, as dinastias se elevam e caem, mas o trono de Davi seria sempre ocupado por um descendente do próprio Davi.

As chaves de Davi

Considerando-se que o reino de Davi seria eterno, este viria a definir o "reino" para todas as gerações subsequentes elevadas sobre a palavra de Deus. Não era apenas um conceito teórico ou uma metáfora teológica. Ele tinha uma forma histórica, definida de maneira vívida e especificamente registrada pelos historiadores, poetas e profetas de Israel. E as qualidades que eles registravam se relacionam diretamente com os termos da aliança revelada pelo próprio Natã.

Com o que se assemelhava o reino de Davi? É importante que saibamos, porque - como o próprio Jesus deixou claro - os contornos do "reino" marcam a forma da nossa salvação. O ministério terreno do coração de Jesus foi a proclamação do reino, e o uso que Ele faz desta palavra podia significar apenas uma coisa para os Seus ouvintes. Eles O entenderam com o significado da restauração do reino de Davi, e o Senhor não contradisse essa expectativa. Na verdade, Ele a confirma e esclarece, nunca diminuindo seu caráter messiânico.

Das fontes históricas, podemos identificar certos elementos que prevaleceram enquanto a Casa de Davi governava de Jerusalém. Aqui eu gostaria de identificar sete características principais da aliança de Deus com a casa de Davi e três secundárias. Concentro-me nessas dez características porque são essenciais para o drama da dinastia que lemos nos últimos livros do Antigo Testamento, e também porque eles vão realçar as chaves da identidade Davídica de Jesus Cristo - e da Igreja que Ele estabeleceu na terra.

1- A monarquia Davídica foi fundada sobre a aliança divina, o único sre humano do reino do Antigo testamento que desfrutaria de tal privilégio (ver 2Sm 8,11-16).

2- A monarquia Davídica era o Filho de Deus. A relação familiar do rei com Deus é evidenciada nos oráculos de Natã, e também em outros lugares (ver Sl 2,7). O filho de Davi recebeu a graça da filiação divina no momento da sua unção.

3- O filho de Davi era "o Cristo", ou seja, "o messias", cujo termo em hebraico é "mashiach" que, literalmente, significa "o ungido" (ver 1Sm 16,13; 1Rs 1,43-48; 2Rs 11,12; Sl 89,20-39). Sua unção com óleo fez dele um sacerdote e um rei, "um sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque" (Sl 110,4). Este era um sacerdote-rei em Jerusalém dos tempos de Abraão (Gn 14,18; Sl 76,2).

4- A Casa de Davi era indissoluvelmente ligada a Jerusalém, particularmente ao MOnte Sião, o qual era de propriedade pessoal do rei Davi e de seus herdeiros (2Sm 5,9), Mais do que a capital de uma monarquia, Jerusalém tornou-se o centro espiritual do povo de Deus, bem como o local de peregrinação para Israel e todas as nações (Is 2,1-3).

5- O templo era o sinal visível da aliança Davídica e do reino de Deus. A construção do Templo era algo central para os termos da aliança, e a mesma palavra hebraica para "casa" era usada para descrever, não somente a dinastia de Davi, mas também o lugar da morada de Deus, que servia como uma "casa de oração para todos os povos" (Is 56,7; Mt 21,12-15).

6- O reino de Davi era para governar sobre todas as doze tribos de Israel - e também, sobre todas as nações. Foi somente sobre Davi e Salomão que, tanto Judá quanto as outras tribos do norte, foram unidas num só reino que os libertou da opressão estrangeira (ver 2Sm 5,1-5; 1Rs 4,1-19). O Senhor também decretou que o reino de Davi seria para governar sobre todas as nações (Sl 2,8; 72,1-17), sobre todos os gentios que peregrinavam a Jerusalém (1Rs 8,41-43; 10,1-24) e sobre todo o mundo. O reino de Davi em Sião marca, assim, a primeira vez que Israel fora chamado a acolher os gentios como parte integrante da sua aliança com Deus.

7- A monarquia devia ser eterna. Um dos destaques mais evidentes nos Salmos e na história era de que a dinastia de Davi seria eterna (ver 2Sm 7,16). Não somente a dinastia, mas também a abrangência da vida do monarca reinante, eram descritas como eternas (ver Sl 21,4).

Junto a essas sete características principais, devemos observar três elementos secundários. Embora estes não tenham sido mencionados explicitamente nos oráculos de Natã, são encontrados em todas as histórias e hinos da Casa de Davi. Novamente, eles se tornarão ainda mais importantes sob a Nova Aliança em Jesus Cristo.

1- A Rainha Mãe se torna uma parte importante do governo real. Começa com o Rei Salomão em 1Rs 2,19;

Betsabá foi ao rei Salomão para lhe falar sobre Adonias. O rei se levantou para recebê-la e se inclinou diante dela. Depois se assentou no trono, mandou trazer um trono para sua mãe, e Betsabá se sentou à sua direita.

Note-se, aqui, que todos se curvaram diante de Salomão, mas Salomão se prostrou diante de sua mãe. A partir desse ponto, a rainha-mãe se torna um elemento permanente no reino, um símbolo da continuidade da linhagem real de Davi. Ela também atuava como um dos mais importantes conselheiros do rei. Na verdade, Provérbios 31 é identificado como o conselho da rainha-mãe ao Rei Lamuel: "Palavras de Lamuel, rei de Massa, ensinadas por sua mãe." Quando o profeta Jeremias aborda o rei, ele se dirige à sua mãe, pois tal era a sua autoridade: "Diga ao rei e à rainha-mãe..." (Jr 13,18; ver também 2Rs 24,15).

2- O "primeiro-ministro" ou chefe se tornara uma função distinta no governo real. O rei tinha vários servos (em 1Rs 4,7 havia doze), mas um homem era o chefe diante deles e se situava entre o rei e seus outros ministros. Quase dois séculos após Davi, Isaías profetizou uma transição no governo real, na qual um primeiro-ministro seria trocado por outro (ver Is 22,15-25). Desta profecia, podemos dizer que qualquer um no reino podia identificar o primeiro-ministro: "ele será um pai para os habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá". O sinal do papel do primeiro-ministro era o da chave do reino. "E eu vou colocar sobre seu ombro a chave da casa de Davi: ele abrirá, e ninguém fechará; ele fechará, e ninguém abrirá."

3- A oferta de agradecimento ou o "sacrifício de ação de graças" se tornou a primeira liturgia celebrada no Templo, muito mais do que o sacrifício de reparação pelos pecados (ver Sl 50,13-14; 116,17-19). A oferta de agradecimento (Lv 7,12-15) incluía pão não fermentado e vinho oferecidos a Deus em gratidão pela libertação. Mestres judeus antigos previam que, quando viesse o Messias, nenhum outro sacrifício seria oferecido: a única oferta de agradecimento continuaria. A palavra hebraica para "oferta de agradecimento" é tidah, e foi traduzida para eucharistia em várias traduções gregas das Escrituras e nos escritos de antigos judeus, tais como Fílon e Áquila.

O trono perdido

Sob Davi, e depois, sob seu filho Salomão, o reino florescia. Deus fez cumprir Sua promessa de paz, estabilidade e vínculo familiar entre Ele e Seu povo. As bênçãos da aliança pareciam evidentes em toda a parte e as nações estrangeiras queriam uma parte dessas bênçãos. Procuraram fazer alianças com Salomão, enviando suas delegações a Jerusalém para prestar homenagem ao seu Deus. E Salomão preparou o seu Templo para acolher o culto dos pagãos, como sendo "uma casa de oração para todas as nações" (Is 56,7). Tão grande era o prestígio e a prosperidade de Israel que a memória daquelas gerações, de Davi a Salomão, permaneceria indelével durante milênios, especialmente para a tribo de Judá.

No entanto, a realidade histórica do reino desmoronou muito rapidamente.

Da mesma forma que antes Adão e Israel tinham pecado, Salomão pecou gravemente e, em seguida, entrou numa espiral descendente de pecado. Ele desrespeitou as leis de Moisés que regiam a realeza; sobretaxou as tribos e multiplicou o número de suas esposas (setecentas!) e concubinas (trezentas!). Tais pecados levaram a pecados ainda mais mortais. As Escrituras nos dizem que "suas mulheres lhe perverteram o coração... aos deuses estrangeiros" (1rs 11,1-3). Inicialmente um homem de grande sabedoria, Salomão, agora, se tornara um idólatra.

Quando Salomão morreu, seu filho Roboão se recusou a renegociar a política de impostos do reino e as tribos se rebelaram. Dez das doze tribos se separaram e estabeleceram o Reino do Norte, isolando-se, não somente do trono de Davi, mas também do culto do Templo. Tudo o que restara da Casa de Davi foram as duas pequenas tribos de Judá e Benjamin.

Neste período de decadência, grandes profetas surgiram para anunciar um reavivamento da Casa de Davi. Isaías profetizou que a salvação viria com o nascimento de um herdeiro do trono de Davi. O domínio do novo rei seria amplo e duraria "tanto agora como para sempre" (ver Is 9,5-6). Em outra passagem (ver Is 11,1-16), Isaías previu o surgimento de um novo rebento da raiz de Jessé, que foi o pai de Davi. Repetidamente, os profetas retrataram a restauração como uma recapitulação das alianças de Deus no passado; seria como que uma nova criação, um novo êxodo, bem como um novo reino.

Os profetas, no entanto, não conseguiram deter o declínio de Israel. Bastante enfraquecido, o reino dividido foi presa fácil para os seus vizinhos, que almejavam conquistar as terras do rei de Jerusalém. O reino do Norte foi destruído em 722 a.C., na invasão dos Assírios. Em 587, a Babilônia saqueou Jerusalém, desmantelando o Reino do Sul e enviando suas elites para o exílio. O rei conquistado, englobando os descendentes do Rei Davi, foram abatidos sem piedade.

Aproximadamente uma geração após a morte de Davi, o "reino eterno" havia desaparecido. Por 500 anos, também a linhagem real foi aparentemente extinta.

Tudo era tão evidente: o cumprimento das promessas de Deus e Abraão de abençoar todos os povos através da sua descendência; a reabilitação de Israel como uma nação sacerdotal por meio do sacrifício do Templo; e até mesmo a restauração da aliança universal de Deus com todos os filhos de Adão [não aconteceram].

A esperança é eterna

Ainda assim, as palavras dos profetas sustentavam a promessa e a história relembrava os oráculos de Deus através de Natã como uma garantia incondicional.

Na segunda metade do século VI a.C., depois da queda da Babilônia para os Persas, alguns israelitas voltaram para Jerusalém e começaram a reconstruir o Templo. O Segundo Templo era apenas uma sombra do de Salomão, um lembrete humilhante de quão fundo o povo e sua terra haviam caído diante da prosperidade e do próprio Deus.

A literatura intertestamentária evidencia a esperança residual que a Casa de Davi tinha em sua restauração: "levante-se o seu rei, o filho de Davi... que ele possa reinar sobre Israel, seu Servidor... Por tudo será santo e, seu rei, o ungido (Messias, Cristo) do Senhor!" Os escritos do Mar Morto testemunham a mesma esperança: "Ele é o ramo de Davi, que se levantará... em Sião, no fim dos tempos. Como está escrito, 'Levantarei a tenda de Davi que está caída'. Ou seja, a tenda caída de Davi é aquela que se levantará para salvar Israel."

Apesar da aparente impossibilidade da sua realização, a esperança suportou. Depois de tudo, a tenda de Davi tinha caído; o tronco de Jessé tinha sido cortado. Mas foi Deus quem fez aliança com a Casa de Davi; foi Deus quem fez as promessas. O Todo-poderoso podia suscitar filhos de Abraão até das pedras, se o quisesse. Ele poderia fazer brotar o tronco de Davi de um pequeno toco da árvore genealógica de sua família.

Aquele que fez a aliança também havia criado a terra, e poderia reunir os filhos de Adão, mais uma vez, das profundezas da terra para receber as bênçãos do filho de Davi, do filho de Abraão.

A idéia de uma fé católica, de uma fé universal - desejada na criação, prometida a Abraão, mediada por Israel, vislumbrada em Davi - permaneceu como algo especial, próprio do remanescente de Israel. As nações pagãs estavam contentes com seus deuses locais. Mas o povo de Deus aguardava pelo dia do grande rei de Israel e das nações. "Providenciarei um só pastor para cuidar das minhas ovelhas. Será o meu servo Davi. Ele cuidará delas, e será o seu pastor... O meu servo Davi reinará sobre elas, e haverá um só pastor para todas. Elas viverão segundo as minhas normas, observarão os meus estatutos e os colocarão em prática" (Ez 34,23; 37,24).

O REINO SE APROXIMA

Sobre Cristo como Rei, o Filho de Davi

Há uma ampla evidência de que no século I a.C. o povo de Deus sentia (e esperava) que o momento estava próximo. A hora havia chegado.

A tradução grega do Antigo Testamento, chamada Septuaginta, muito popular entre os judeus dispersos em terras pagãs, por vezes adicionou títulos de realeza que não haviam na Bíblia hebraica. Por exemplo, em Gênesis 49,10, a Septuaginta acrescenta que o legislador que vem será um "príncipe".

No livro apócrifo do 2º Esdras, o oráculo divino antecipa a chegada do "Meu filho, o Messias" (2Esd 7,28-29), que governará "todo o povo" do "topo do Monte Sião" (13,36-37). Uma linguagem similar aparece na literatura atribuída à tradição de Enoque e nos Manuscritos do Mar Morto. Os autores deste esperavam a iminente chegada, não de um messias, mas de dois: um rei guerreiro e um profeta sacerdotal. Os Manuscritos se referem ao futuro rei com ambos os títulos: "messias" e "descendente de Davi". Encontramos o espírito da época vividamente preservado nos anais do historiador judeu Flávio Josefo, que registra a ascensão e a queda de vários autoproclamados messias. O próprio Josefo apresentou um candidato improvável para este título: o seu patrono, o imperador Romano Vespasiano.

Aqueles que mantinham viva a fé permaneciam firmes na esperança; embora isso devesse ser bem difícil. As condições do povo de Deus na época eram, certamente, humilhantes. Muitas vezes, os gentios zombavam dos judeus pelo forte contraste entre o elitismo deles - pois apregoavam ser o "povo escolhido" por Deus - e seu efetivo status, de um estado vassalo dos impérios pagãos decadentes.

Mas Deus tinha enunciado claramente as Suas promessas na aliança com Davi. Sua descendência seria eterna; embora, agora, parecesse extinta. O filho de Davi iria governar sobre todas as nações; mas, agora, as nações se revezavam no poder sobre Israel! As Escrituras hebraicas proclamavam a permanência e a majestade da Casa de Davi; mas, agora, essa majestade estava longe de ser encontrada. Aliás, a Casa de Davi é que estava longe de ser encontrada.

A situação beirava o ridículo. A evidência de algo errado estava por toda a parte. Exceto por um breve período na época dos Macabeus, Israel - ou melhor, o que restava de Israel - era governado por potências estrangeiras.

Falsos começos

Após o período dos Macabeus, então, ocorre um intervalo estranho, quando os reis pareciam ansiosos e capazes de restaurar as riquezas de Israel - nos próprios termos da aliança de Deus com Davi. Eles reconquistaram quase todas as terras que, anteriormente, haviam pertencido a Israel, e forçaram os habitantes do sexo masculino a se submeterem à circuncisão.

Com o tempo, veio um rei chamado Herodes, o qual é mencionado pelos historiadores como Herodes, o Grande. Este rei tentou, pelo poder, ser visto como o "filho de Deus". Reconstruiu o Templo de Jerusalém em grande escala, superando até mesmo Salomão - inclusive, adquiriu muitas esposas para si, exatamente como o fez Salomão. E o povo prosperava. Os patronos romanos de Herodes proporcionaram certa paz, estabilidade e segurança para a região.

Herodes, porém, não era judeu. Embora se mantivesse com alimentos judaicos e fizesse um show com algumas práticas religiosas, ele nascera um edomita, ou seja, pagão. Além disso, Herodes era um insano. Assassinou brutalmente três de seus próprios filhos, pois temia que estes tramassem sua saída do trono. Essa curiosa combinação de religiosidade exterior com extrema crueldade, movia César Augusto a dizer que era preferível ser um porco de Herodes a ser filho dele. Os feitiços paranoicos de Herodes muitas vezes terminavam com expurgos assassinatos de seus súditos. Certa vez, ele mandou crucificar ao longo de uma movimentada estrada centenas de suspeitos de conspiração, deixando seus corpos apodrecerem lá por semanas.

No entanto, os sucessos de Herodes eram indiscutíveis: a restauração da terra; a recuperação das tribos, que há muito haviam se misturado com os pagãos; e a reconstrução do Templo. Algumas pessoas perguntavam se ele não poderia ser realmente o Filho de Davi. Afinal, mesmo Salomão tivera suas faltas...

Provavelmente, Herodes soubesse melhor disso do que qualquer pessoa, mas a sua vida dependia dessa estratégia. É bem possível que ele também esperasse a chegada do verdadeiro "filho de Davi" a qualquer momento. Mas até quando ele manteria isso?

Tal era o clima social, político, religioso e de aliança no momento em que o Verbo se fez carne, no momento em que Ele fez Sua morada junto a Seu povo.

Nasce um Rei

"Assim diz o Senhor: se vocês puderem romper a minha aliança com o dia e com a noite, de modo que já não haja mais dia e noite no tempo certo, também será rompida a minha aliança com meu servo Davi, de modo que lhe falte um descendente no trono" 9Jr 33,19-21). Assim diz o Senhor por meio do profeta Jeremias - após o reino dos descendentes de Davi já ter sido pilhado.

Aqueles que tinham fé continuaram esperançosos. Deus fez promessas muito específicas ao Rei Davi. Ele não poderia ter sido mais claro, mesmo que as circunstâncias fizessem tais promessas parecerem absurdas. A oração do povo de Deus no Antigo Tesamento continuava a se elevar ao céu durante o reinado de Herodes: "Até quando, ó Senhor?"

Vemos a resposta a esta pergunta - e às orações - nas primeiras palavras do Novo Testamento: 'Livro da genealogia de Jesus Cristo, Filho de Davi, Filho de Abraão" (Mt 1,1), Enfrentando um público judeu, Mateus identifica Jesus como "o Cristo", o Ungido, o Messias esperado; e acrescenta que, fiel às expectativas, o Messias nasce da Casa de Davi e da descendência de Abraão. Ao invocar esses dois nomes, Mateus evidencia as alianças. Assim, a partir do início de seu Evangelho, ele deixa claro que está anunciando a chegada do reino. Essa é a essência de sua "Boa-Nova" (significado literal da palavra 'Evangelho'). As alianças tinham sido cumpridas. O reino prometido havia chegado e, de fato, era um reino universal, composto por Israel e os gentios. "De você nascerão reis... Abraão se tornará uma nação grande e poderosa, e através dele serão abençoadas todas as nações da terra" (Gn 17,6; 18,18). "Eu estabelecerei o trono real dele [de Davi] para sempre" (2Sm 7,13-14),

O tão esperado rei havia chegado, o filho de Davi, o filho de Deus, o Cristo - o ungido. E Ele tinha sangue real para prová-lo.

A genealogia de Mateus começa com Abraão, mas é centrada no reino de Davi. Os quatro pontos de destaque são a vida de Abraão, o reinado de Davi, a queda da Casa de Davi com o exílio babilônico, e a chegada de Jesus. Mateus resume as gerações de modo a dividi-las em três grupos de quatorze, número este que, em hebraico, corresponde ao nome de Davi (DVD = D:4; V:6; D:4 - 4+6+4=14). Assim como no latim, também no hebraico as letras correspondem a valores numéricos; de modo que a genealogia do filho de Davi é repetidamente identificada com a familia real.

Com o desenrolar de sua narrativa, Mateus nos mostra a convergência de dois personagens antagônicos para o reino: Herodes e Jesus. Jesus nasce em Belém, a cidade de Davi, a qual foi identificada pelos profetas como a terra natal do Rei-Messias, (Mt 2,6; Mq 5,2). Além disso, Ele nasceu de uma virgem, cumprindo a profecia de Isaías sobre o Rei messiânico: "Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho" (Mt 1,23; Is 7,14).

Quando do nascimento de Jesus, os gentios, representados pelos Magos, vêm prestar homenagem ao rei recém-nascido, assim como o fizeram com o filho legítimo de Davi, o rei Salomão (Sl 72,10-11). Os magos encontraram Jesus com Maria - o rei com sua rainha-mãe, assim como encontraram Salomão com Betsabá na corte real de Jerusalém, em tempos passados (ver 1Rs 2,19).

A visitação dos Magos provoca um dos assassinatos furiosos de Herodes, que ordena o massacre dos inocentes. A sagrada família deixaria o país, da mesma forma que o legítimo ungido Davi tinha sido forçado a fugir da ira do invejoso, e divinamente deposto, Saul.

A própria revelação do Rei

Não são apenas os evangelistas que identificam Jesus como rei e o reino como Davídico. Não é apenas uma questão de encaixar as profecias nas cenas. Repetidas vezes, os contemporâneos e, até mesmo os seus inimigos, dão esse título a Jesus. Lembre-se dos cegos que clamam "Filho de Davi, tem compaixão de nós!" 9Mt 9,27; 20,30) ou da mulher Cananeia que busca a cura para sua filha (Mt 15,22). A multidão que acolhe Jesus na capital de Davi, Jerusalém, e o saúda com "Hosana ao Filho de Davi!" (Mt 21,9). Os fariseus hostis identificam "o Cristo" com "o Filho de Davi" (Mt 22,42). Mesmo Pilatos e os soldados romanos que zombam de Jesus com títulos davídicos (Mt 27,11.29,37), bem como a multidão, que o injuriava dizendo que se fosse o filho de Davi deveria ser também o filho de Deus (Mt 27,40).

Jesus não recusa nem nega os títulos Davídicos, mas os confirma com suas próprias declarações. Certo capítulo começa com a história de Jesus e seus discípulos colhendo grãos num sábado, uma ação que Jesus justifica comparando a Si mesmo e aos Seus com Davi e seus companheiros: "Não lestes o que fez Davi num dia em que teve fome, ele e seus companheiros...?" (Mt 12,3). Mais adiante no mesmo capítulo, o povo se questiona: "Não será este o filho de Davi?" (12,23). E Jesus responde a eles dizendo: "Se é pelo Espírito de Deus que expulso os demônios, então chegou para vós o Reino de Deus" (12,28).

Sem qualquer dúvida, os Evangelhos identificam Jesus como "filho de Deus" e "filho de Davi", como rei e ungido. Seu reino é claramente o reino de Deus, bem como o reino de Davi, o que é confirmado em pequenos detalhes. Pois o reino de Jesus, como encontramos nos Evangelhos, apresenta as características que constituem a monarquia davídica. Vamos rever as sete principais características e as três características secundárias da aliança de Deus com Davi, e assim veremos como Jesus preenche este papel.

1. A monarquia Davídica foi estabelecida sobre uma aliança divina. A aliança de Deus com Davi, conforme descrita na profecia de Natã (2Sm 7,9-16), fornece todo o conteúdo do relato angélico de Jesus em Lucas 1,32-33. Posteriormente, Jesus associa o Seu reino com a "nova aliança" (Lc 22,20) e afirma que o reino foi atribuído a Si (literalmente, "feito uma aliança") pelo Pai (Lc 22,29).

2. A monarquia Davídica era o Filho de Deus. Jesus não é simplesmente adotado, mas o Filho natural de Deus (Lc 1,35), e este título é utilizado por Ele em todo o Novo Testamento.

3. O filho de Davi era "o Cristo". De fato, "Cristo" é o título preferido de Jesus, da primeira linha do Novo Testamento em diante. Na verdade, Ele é o "Cristo do Senhor" (Lc 2,26), um título aplicado somente aos reis do Antigo Testamento (ver 1Sm 16,6).

4. A Casa de Davi foi ligada indissoluvelmente a Jerusalém. As cenas de clímax do ministério de jesus ocorrem em Jerusalém - Seu julgamento, Paixão e Morte. O Evangelho deixa claro que a Palavra de Deus deve sair "de Jerusalém" para os confins da Terra (Lc 24,47).

5- A monarquia foi também ligada ao Templo. O Evangelho de Lucas começa narrando a infância de Jesus no Templo. Depois, Ele purifica o Templo ao expulsar os mercadores. Durante a maior parte do Evangelho, Jesus está a caminho de Jerusalém (9,51-19,27), tendo seu ponto alto quando de Sua chegada a esta cidade, onde se purifica e ensina a partir do Templo (Lc 19,45-21,38).

6. O Reinado de Davi é destinado a governar as doze tribos de Israel, bem como todas as nações. Os Evangelhos nos mostram por vários sinais que Jesus pretende restaurar a unidade das doze tribos. Ele nomeia doze Apóstolos e promete que vai julgar "as doze tribos de Israel" (Lc 22,30). Figuras-chave, tais como a profetisa Ana, da tribo de Aser, representam um resquício fiel das tribos "dispersas" do Norte (Lc 2,36). E Jesus ganhou uma "multidão" de seguidores das antigas terras do Estado de Israel ao pregar na Galileia, Samaria e Judeia. Com Sua entrada em Jerusalém, Ele forma um reino unido. Contudo, a realeza de Jesus se estende a todas as nações" (Lc 2,32). Lucas descreve a genealogia a partir de Adão, em vez de Abraão. Jesus cura os gentios e judeus (por exemplo, Lc 7,1-10). Ele profetiza dizendo que "os homens virão do oriente e do ocidente, do norte e do sul" para se sentarem à mesa do Reino de Deus (Lc 13,29). E ordena que o "perdão dos pecados seja levado em Seu nome a todas as nações, a começar por Jerusalém" (Lc 24,47).

7. O Reino de Davi era destinado a ser eterno. O anjo Gabriel promete a Maria que Jesus "reinará sobre a casa de Jacó para sempre, e Seu reinado não terá fim" (Lc 1,33).

As três características secundárias também se encontram relatadas no Evangelho:

1. Maria aparece como a Rainha-Mãe quando aconselha seu filho rei (Jo 2,3), quando defende a causa de seus súditos, quando recebe os dignatários estrangeiros com ele (Mt 2,11) e quando se encontra com Sua corte real de doze ministros, os Apóstolos (Jo 19,25; At 2,14).

2. Jesus nomeia Pedro como primeiro-ministro com os próprios termos usados na nomeação do "administrador", que reina na "corte real de Davi" como vice-rei (ver Mt 16,19; Is 22,15-25). O rei concede uma autoridade simbólica com "as chaves".

3. Jesus renova o sacrifício de ação de graças, a todah, mediante Sua própria oferta de pão e vinho, [Eucharistia], a Eucaristia. Com efeito, sempre que encontrarmos Jesus partindo o pão, o veremos "dando graças" (por exemplo, Lc 24,30-35; Jo 6,11).

Ninguém que crê nos Evangelhos pode negar que os contemporâneos de Jesus esperavam por um Messias-rei vindo da Casa de Davi. Ninguém que crê nos Evangelhos pode negar que Jesus se apresentou como o tão esperado rei da Casa de Davi.

Se Jesus é rei da Casa de Davi, o Seu reino deve ser, em certo sentido, um reino Davídico - o reino Davídico. O "reino de Deus" em Jesus não suplantou nem substituiu o reino eterno criado pela aliança com Davi. O reino de Jesus era aquele reino, pois é aquele reino, cumprido em plenitude.

Apenas o reino de Davi fora chamado de o "reino de Yahweh" (1Cr 28,5). Os autores do Antigo Testamento entenderam que o reinado da casa de Davi era baseado numa aliança divina, na qual o filho de Davi seria chamado de o Filho de Deus (2Sm 7,14; Sl 2,7). Portanto, o reino de Davi era a manifestação do domínio de Deus sobre a Terra, isto é, do reino eterno de Deus sobre Israel e sobre todas as nações.

Mas aonde está esse reino hoje? Na verdade, onde ele esteve todos esses anos, desde a Ascensão de Jesus? Para o apologista cristão, antigo ou moderno, talvez não haja questão mais importante do que esta.

QUANDO CHEGAR O REINO

Um estudioso bíblico moderno, Alfred Loisy, profetizou a sua própria perda da fé, quando comentou, ironicamente: "Jesus proclamou o reino; o que veio foi a Igreja." Porém, Loisy não falava simplesmente dele mesmo. Essa justaposição da Igreja ao reino tornou-se um ponto comum em certos círculos acadêmicos no final do século XIX.

Quando se trata do reino de Deus, de fato, muitas vezs, há uma diferença entre as expectativas daqueles que acreditavam, e o seu cumprimento pelo Senhor. Pessoas com melhores disposições do que Alfred Loisy foram atormentadas por este problema. Considere a profunda tristeza dos discípulos após a morte de Jesus: "Nós esperávamos que fosse ele quem havia de restaurar Israel..." (Lc 24,21).

Eles esperavam que a redenção viesse com uma conquista militar ou com uma intervenção milagrosa do céu. Eles não esperavam que esta redenção implicasse num sofrimento, na morte e num aparente fracasso. Quando eles clamavam por um reino, certamente não esperavam a Igreja. No entanto, é isso o que eles têm.

Ao longo dos séculos, os judeus citaram o "fracasso" de Jesus em criar o esperado reino como uma evidêcia óbvia contra as reivindicações do Cristianismo. Alguns pagãos adversários do Cristianismo (Celso, no século II e Juliano, no século IV) seguram na mesma linha de argumentação. Entretanto, no século XIX e XX, certos cristãos juntaram suas vozes a esse coro incomum. Alfred Loisy estava entre eles, mas não estava sozinho. Outro foi o alemão F. C. Baur, que afirmou que Paulo inventou o Cristianismo como o conhecemos hoje, adequando-se ao não aparecimento do reino.

No extremo oposto do espectro teológico de Baur e Loisy, o dispensacionalista americano C. I. Scofield - cuja famosa obra Scofield Reference Bible tem alimentado gerações de americanos fundamentalistas - tentou uma resposta aos críticos liberais, mas aceitou a alegação de que houve uma ruptura entre a expectativa e a realização do reino. A versão de Scofiel assim afirmava: Jesus ofereceu o reino aos judeus, mas eles O rejeitaram. Por isso, Ele estabaleceu a Igreja com um "grande parênteses" entre o ministério de Jesus e a vinda do verdadeiro reino, que não chegará até que haja o "arrebatamento".

Nos dias imediatamente seguintes à ressurreição, um discípulo perguntou: "Senhor, é agora que vais restaurar o reino de Israel?" (At 1,6) E esta angustiada pergunta ecoa por milênios. É claro que, depois de todos esses anos, alguns discípulos ainda encontram uma insuportável disparidade entre o que Deus prometeu e o que o Cristianismo é.

Porém, devemos nos questionar se o problema é com a provisão de Deus ou com as expectativas humanas. Voltemos comigo ao momento da Escritura no qual Jesus proclamou o Seu reino nos termos mais evidentes e claros - na Última Ceia. A partir do Evangelho de Lucas, que nos fornece abundantes detalhes relacionados com o reino, vamos olhar mais de perto a questão.

Uma ceia adequada a um Rei

O relato da Última Ceia em Lucas é u texto-chave para a ligação entre a identidade de jesus com o "filho da realeza de Davi" e o "Reino de Deus" em Davi. Naquela ceia, Jesus estabeleceu os Apóstolos como Seus vice-reis, isto é, como os homens que, a partir daí, vão exercer a autoridade em Seu nome. Nos Atos dos Apóstolos - livro que Lucas escreveu como continuaão do seu Evangelho - vemos os Apóstolos exercendo a autoridade que Jesus havia lhes dado e como deviam governar a Igreja.

Mais do que os outros evangelistas, Lucas associa a imagem do reino com a ceia de comunhão Os estudiosos identificam dez refeições diferentes em Lucas, as quais odem servistas como antecipações da Ceia do Messias anunciada pelos profetas do Antigo Testamento (ver Is 25,6-8; Zc 8,7-8. 19-23). Isso se torna particularmente evidente nas refeições organizadas pelo próprio Messias: na alimentação das cinco mil pessoas (9,10-17); na Última Ceia (22,7-38) e na ceia de Emaús (24,13-35). NEstas três refeições em Lucas - e somente nelas - o pão é "partilhado"; expressão esta que será utilizada em Atos 2,42,46; 20,7.11; 27,35.

O tema do reino é assinalado nestas três refeições:

- todas as cinco mil pessoas ficam "satisfeitas" e ainda sobram doze cestos cheios (9,17), enfatizzando a plenitude das doze tribos de Israel sob o Filho de Davi (ver 1Rs 4,20; 8,65-66);

- a Última Ceia é intimamente associada à vinda iminente do reino (ver Lc 22,26.18,29-30);

- a sequência de Emaús e iniciada com  observação dos discípulos: "Esperávamos que Ele fosse estabelecer o reino de Israel", ou seja, restaurar o reino de Davi (ver Lc 1,68-69).

Nas refeições de partilha, Jesus estava agindo como o Seu antepassado real. Davi tinha estendido a fidelidade da aliança através de uma ceia-real de comunhão (2Sm 9,7.10.13; 1Rs 2,70. Os Salmos de Davi usam a imagem de comer e beber para celebrar o dom de Deus, e os profetas descrevem a restauração da vidade de Davi (Is 25,6-8; Jr 31, 12-14) e a aliança de Davi (Is 55, 1-5) mediante as imagens de uma festa. Em Ezequiel, o papel principal do "pastor" Davi é "alimentar" Israel (Ez 34,23).

Então, essa é a marca verdadeiramente real que Jesus fala aos Seus Apóstolos: "'Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de sofrer. Pois vos digo: não tornarei a comê-la, até que ela se cumpra no Reino de Deus.' Pegando o cálice, deu graças e disse: 'Tomai este cálice e distribuí-o entre vós. Pois vos digo: já não tornarei a beber do fruto da videira, até que venha o Reino de Deus.'" (Lc 22,15-18).

Jesus enfatiza aqui que a Ceia é algo relacionado ao reino e à sua vinda, cujo reino, na verdade, está próximo. Ele associa o reino com comer e beber, como Ele dirá novamente alguns versículos depois, ao assegurar a Seus discípulos que eles vão "comer e beber... no Meu reino" (v. 30). Aquelas duas declarações enquadram a história da Ceia, e estabelecem uma promessa: o comer e o beber com Jesus são manifestações importantes da presença do reino. Alguns dias depois, quando o Cristo ressuscitado come com os discípulos, aqueles momentos são a Sua garantia de que o reino se fez verdadeiramente presente.

As evidências da Última Ceia

Se a promessa de Jesus é o quadro da história, o ponto focal é a assim chamada "narrativa da institução". As palavras da instituição são, certamente, estranhas, embora os cristãos tenham se acostumado a elas ao longo dos milênios. Jesus, o rei e o ungido, se identifica com a fração do pão e com o vinho: "Isto é o Meu corpo... este é o cálicce... da nova aliança no Meu sangue" (Lc 22, 19-20). Em seguida, em Lucas e na narração da história de Paulo, ouvimos a ordem de Jesus para repetir esta ceia "em Sua memória". É essa ordem que torna essa passage uma narrativa da instituição. Sem essa ordem, nada seria instituído: seria, apenas, a história da última ceia de Jesus antes da Sua morte. Mas Jesus ordena aos Apóstolos para repetirem a refeição quando Ele não estiver mais visivelmente presente, e assim, o episódio da Última Ceia se torna a história fundamental para as ações da Igreja, como vemos nos Atos dos Apóstolos (2,42.46; 20,7.11; 27,35).

Algumas pessoas dizem que Jesus usou o pão e o vinho como metáforas para explicar o seu sacrifício que estava próximo. Mas se fosse esse o caso, tais metáforas seriam inúteis, pois são falhas, uma vez que seriam o pão e o vinho que necessitariam de uma explicação, e não a Sua morte! As palavras de Jesus não são tanto uma explicação ou um ensinamento em forma de "discurso", uma declaração que evidencia o que expressa, tal como "Faça-se a luz!", ou qualquer uma das promessas da aliança de Deus. O discurso de Jesus não vem após o evento; mas ele torna o evento presente.

E o que está implícito na Última Ceia, se torna explícito na história de Emaús, onde a presença visível do Senhor desaparece durante a distribuição das espécies (24,31). Por que isso aconteceu? Porque, à luz de Lucas 22,19, a Sua presença estava agora evidente com o pão. Assim, o reino messiânico foi "dado a conhecer" aos discípulos "no partir o pão" (24,35). Depois, Lucas correlaciona a sua própria experiência litúrgica à Última Ceia de Jesus, incluindo-se dentre aqueles que se reúnem no primeiro dia da semana para a "fração do pão" (At 20,7)

Na Última Ceia e no episódio de Emaús, os cristãos aprenderam, com estes fatos, que o Cristo ressuscitado está realmente presente no pão que juntos nós partimos. Onde está a Eucaristia, aí está o Rei. E onde está o Rei, aí está o Reino.

Novo e melhor

No Evangelho de Lucas, Jesus se refere ao cálice Eucarístico como o cálice da "nova aliança no Meu sangue" (22,20). Certamente, Ele estava evocando as palavras de Moisés em Êxodo 24,6-8, "Eis o sangue da aliança...", mas combinando-as com as posteriores palavras de Jeremias no oráculo sobre as promessas de Deus: "Dias hão de vir - oráculo do Senhor - em que firmarei nova aliança com as casas de Israel e de Judá" (Jr 31,31). A "nova aliança" de Jeremias era para ser o contrário da aliança do Sinai que foi violada (Jr 31,32). O profeta esclarece (em Jr 30-33) que a "nova aliança" envolveria outro nível de intimidade com Deus (Jr 31, 33-34) - além da reunificação do reino dividido (31,31) e da restauração da Casa de Davi (30,9; 33,14-26) e da aliança de Davi (33,19-21). Essa é a grande notícia: que tudo está contido nas palavras de Jesus na instituição.

Com essas associações da aliança, Jesus marca esta ceia como a ceia de renovação da aliança, assim como a Pásacoa era a renovação da aliança de Deus com Moisés também numa refeição. Quando os cristãos bebem do cálice da Eucaristia, eles reafirmam o seu lugar dentro da aliança, renovando e transformando a aliança messiânica de Davi.

Dentro desse reino renovado, Jesus irá partilhar a Sua autoridade, mas não sem antes corrigir as noções equivocadas dos discípulos sobre o reino e seu poder (Lc 22,28-30). Ele lhes diz: "Assim como o meu Pai confiou o Reino a mim, eu também confio o Reino a vocês" (v.29). O verbo, traduzido aqui como "confiar" não chega a captar o sentido do grego. A palavra original, diatithemai, significa, literalmente, "estabelecer uma aliança". Portanto, uma tradução mais precisa da frase seria: "Assim como o meu Pai estabeleceu uma aliança em mim, eu também estabeleço uma aliança em vocês. E vocês hão de comer e beber à minha mesa no meu Reino, e sentar-se em tronos para julgar as doze tribos de Israel." (Lc 22,29-30)

O esclarecimento desse verbo pode parecer uma mudança pequena, mas, realmente, ele condiciona um elemento surpreendente à lilsta já notável de privilégios messiânicos, que Jesus está passando aos Seus Apóstolos: os tronos, as tribos, a relação pai e filho, o banquete à mesa real - e, agora, a aliança.

Pois as Escrituras nos falam somente de um reino que foi fundado sobre uma aliança: o reino de Davi (ver Sl 89,3-4. 28-37). Somente este reino gozava dos laços familiares com o próprio Deus, mas que, agora, Jesus está estendendo a aliaça mediante a renovação em Si mesmo.

O significado de Lucas 22,29 se torna claro: uma vez que Jesus é o filho de Davi, Ele é o herdeiro legítimo do trono e da aliança de Davi. Deus "estabelelce" um reino em Jesus. E agora, Jesus, através da "nova aliança no [Seu] sangue", "estabelece" esse mesmo reino com os discípulos. Esta aliança estabelecida não é a promessa de uma atribuição (algo futuro), mas a declaração da atribuição (tempo presente).

No entanto, Jesus não está dando o Seu reino. Ele continua a se referir a ele como "o meu reino". Assim, os Apóstolos não substituem Jesus, mas agora eles podem participar de Sua realeza, bem como, de Seu sacerdócio. O propósito da Nova Aliança, diz Jesus, é de admitir os discípulos a "comer e beber à Minha mesa no Meu reino." O Senhor está compartilhando o exercício da autoridade sobre Seu reino com aqueles que compartilham de Seu corpo, de Sua aliança, de Sua vida. E a marca distintiva dessa autoridaade é o serviço. O próprio Jesus não está sentado, mas sim, servindo os outros.

O sinal do reino será comer e beber à mesa do rei. Mas perceba que os discípulos já estão - na Última Ceia - comendo e bebendo à mesa de Jesus. E Ele não desloca esse gesto para uma data futura. O sinal do reino já está lá, presente, no Cenáculo. Qual o significado desse gesto? Significa que o reino já se fa presente no comer e no beber Eucarísticos. E a ppresença do reino continua quando os Apóstolos partem o pão em memória de Jesus. A celebração da Eucaristia manifesta o rein. O reino e a Eucaristia estão fortemente ligados, pois o reino de Deus é um reino Eucarístico.

Jesus é o herdeiro da aliança com Davi. Ele é o eterno rei de Israel e das nações (Lc 1, 32-33). Mas agora Ele decreta uma nova aliança entre Ele e os seus discípulos, estendendo os privilégios da aliança de Deus para além da Casa de Davi, ou seja, a todos os Apóstolos. Estes, como Cristo, sã~agora herdeiros do reino de Davi; e porque são herdeiros, gozam dos privilégios dos filhos de Deus: eles comem à mesa real e se sentam em tronos da Casa real, para julgar as doze tribos.

E isso é tudo sobre o reino de Davi. É tudo sobre o reino de Deus. É tudo sobre a Igreja. E é tudo sobre você e eu. Pois Cristo deixou claro: o reino de Deus é a Igreja, e esta pertence aos filhos de Deus, pois "participam da carne e do sangue" (Hb 2,14) do grande rei.

Rumo ao Alto

O que isso signfica para a Igreja? Logo descobriremos em várias situações nos Atos dos Apóstolos. A promessa da heraça e do reino de Jesus é cumprida com os Apóstolos assumindo sua autoridade na Igreja. Além do mais, a promessa da comunhão à mesa é cumprida logo após a Ressurreição e, depois, continuada na prática Eucarística da Igreja.

Nos primeiros versículos dos Atos (1,3.6), aprendemos que o assunto tratado por Jesus com os Apóstolos, ao longo dos 40 dias, foi o reino de Deus. O "reino" continuará sendo um tema central em todo o livro, que termina com Paulo anunciando o reino de Deus em Roma (28,31). Atos 1,4 faz a conexão, agora familiar, entre a promessa do reino e o comer e beber - o banquete messiânico - quando afirma que Jesus lhes ensinou nesse período de quarenta dias, e "fez uma refeição" com eles. "Fazer uma refeição" é uma gíria que significa "comer juntos".

Quando os discípulos perguntam a Jesus: "Senhor, é agora que vais restaurar o reino de Israel?" (1,6), eles podiam estar se referindo à promessa de Jesus em Lucas 22,30 que dizia: "vocês se sentarão nos tronos". E assim sendo, os Apóstolos ficam se questionando, então: "quando receberemos a autoridade a nós prometida?" Ao mesmo tempoem que Jesus não incentiva qualquer especulação sobre a época desses acontecimentos (v.7), por outro lado, Ele descreve os meios através dos quais o reino seria restaurado, ou seja, mediante o testemunho dos Apóstolos por toda a Terra, quando inspirados pelo Espírito (v.8). Por um lado, a descrição geográfica de Jesus sobre a missão deles - "em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra" - é um destaque profético da narrativa de Atos, nos ajudando a reconhecer que todo o livro nos fala sobre a expansão do reino (cf. At 28,31). Mas, por outro lado, é um mapa Davídico que reflete a geografia teológica da promessa da aliança de Deus relacionada à extensão do império de Davi. Jerusalém era a cidade de Davi (2Sm 5,6-10); a Judéia, a terra de sua tribo (2Sm 5,5; 1Rs 12,21); a Samaria representava o norte de Israel, a nação de Davi (1Rs 12,16); e "os confins da Terra" significa os gentios (cf. Is 49,6), os vassalos de Davi (Sl 2,7-8; 72,8-12; 89,25-27).

Mesmo assim, os Apóstolos não compreendiam ainda o que Jesus estava lhes dizendo. Eles não sabiam que Ele transformaria as expectativas deles de um reino nacional terrestre na realização de um reino internacional, universal, católico - um reino que se manifesta na Terra, mas que é essencialmente celeste. O Espírito ainda seria derramado antes que os Apóstolos percebessem o reino transformado. Assim, somente após os discípulos terem recebido o poder do Espírito Santo, é que eles se tornariam verdadeiras testemunhas (At 1,8).

Entre a promessa do Espírito (At 1,8) e Pentecostes (2,1-4), Lucas nos recorda a restauração do grupo dos Doze mediante a substituição de Judas por Matias. Uma vez reconstituídos os Doze, o evento de PEntecoestes (At 2,1-42) marca a restauração de Israel como o reino sob o Filho de Davi, e o começo do vice-reinado dos Apóstolos neste mesmo reino.

De modo bem vivo, Lucas nos mostra as promessas da restauração do reino. Não somente todos os Doze (e presumidamente os cento e vinte) estão "reunidos no mesmo lugar" (2,1) - assim representando o núcleo do Israel restaurado - mas eles endereçam sua mensage aos "judeus piedosos de todas as nações que há abaixo do céu" (v.5); e Lucas enumera tais nações (vv. 9-11). POr um momento, o trabalho dos Apóstolos transforma os efeitos do exílio e da dispersão das tribos.

Assim, as profecias de Joel (Jl 2,28-32) e outras são cumpridas, e Israel é restaurado, não definitivamente - coo a Igreja mais tarde o seria - mas, neste sentido, fundamentalmente, pois Deus reuniu os filhos dispersos de Israel e todo o povo eleito, que agora reunidos, eram a própria salvação definitiva.

Nos Atos, vemos que o Israel restaurado tinha uma certa forma e esstrutura: não daquelas tribos reunidas no Sinai, mas daquelas doze tribos reunidas no reino de Davi. O discurso de Pedro engloba a realeza Messiânica de Jesus Cristo (At 2,36). Ele prega aos exilados de Israel, ali presentes, que Jesus é o cumprimento da aliança de Davi (v.30) e o cumprimento das profecias que Davi fez a respeito do próprio Jesus (vv. 25-28; 34-35). Ele aplica a Jesus o salmo da entronizzação real (Sl 110), assegurando que Jesus foi agora entronizado no céu ("exaltado à direita de Deus") de onde derrama o Seu Espírito sobre os Apóstolos, como todos ali podiam testemunhar (v.33). Assim, Jesus está agora reinando no céu e os resutlados do Seu reino estavam sendo manifestados naqueles eventos que o povo podia "ver e ouvir" (v.33).

Pedro e os Apóstolos, cheios do Espírito, tinham se tornado testemunhas. Agora, eles vêem a natureza do reino de Jesus e  Sua realização presente. Quando os ouvintes de Pedro aceitam o fato de que Jesus é o Messias de Davi - e, assim, reconhecem o Seu reino legítimo sobre eles - são incorporados na Igreja pelo Batismo (2,41-42; ver também 4,32-5,11, especiamente este último versículo, o 5,11).

Entretanto, é importante notar que o reino messiânico não é somente restaurado, mas também, transformado. O Fiho de Davi não é entronizado na Jerusalém terrestre, mas na celeste, "exaltado à direita de Deus". O reino foi deslocado da Terra para o Céu, mesmo que continue a se manifestar na Terra pela Igreja. O reino - a Igreja - existe simultaneamente na terra e no Céu. O rei é entronizado no céu, mas Seus ministros (os Apóstolos) estão em atividade na Terra. Enquanto isso, o rei celeste está unido aos Seus oficiais e a Seus súditos através do Espírito Santo e dos sacramentos, especialmente do Batismo e da Eucaristia (At 2,38-42).

Historicamente, o reino de Davi se realiza na Igreja Católica. No entanto, ele também sofre uma transposição do reino terrestre para a esfera celeste. A Jerusalém terrena e seu Templo, apesar do genuíno respeito de Lucas por eles, não podem ser o cumprimento final ldo reino (ver At 7,48-50; Lc 21,6). Pedro deixa claro que a lei atual de Cristo não se dá a partir da Jerusalém terrena, mas da Jerusalém do alto (At 2,33). Contudo, o Seu reinado se expressa no reino terrestre mediante o que pode ser "visto e ouvido" (At 2,33). O novo reino de Davi, do qual a Igreja é a sua manifestação visível, existe simultaneamente no céu e na terra, pois seus cidadãos passam de uma esfera à outra.

Ainda, o reino inteiro - ou seja, toda a Igreja - está unido(a) pela presença do Espírito Santo nele(a) e pela celebração da Eucaristia. Essa é a forma do rei se fazer presente, quando o reino é manifestado e quando os cidadãos deste reino da terra participam perpetuamente do banquete messiânico do rei celestial.

Tudo é novo. No entanto, tudo já estava lá, como que em gérmen, no tempo de Davi. O estudioso das Escrituras do século XX, Padre Raymond Brown, atesta que o reino de Israel unido sob Davi permanece uma instituição israelita da maior relevância para o estudo atual da Igreja:


A história de Davi evidencia todos os pontos fortes e fracos dos primórdios da instituição religiosa do reino para o povo de Deus... O reino estabelecido por Davi no Antigo Testamento... tem seu paralelo mais próximo na Igreja no Novo Testamento... Para ajudar os cristãos a entenderem como a Bíblia nos fala (em questões relacionadas à Igreja), seria bom se eles conhecessem sobre Davi e seu reino, pois este reino também era o reino de Deus e cujos reis, apesar de todas as suas imperfeições, o Senhor prometeu tratar como Seus “filhos” (2Sm 6,14)

De fato, há imperfeições no que vemos da Igreja. Afinal, todos os governantes terrenos do reino são imperfeitos, como eu sou e, como eu suponho que você também seja; e como Davi era, e como Pedro também foi. Como disse no início do livro, o Papa se confessa pelo menos uma por semana.

Mas este Igreja, com todas as suas imperfeições, é a única Igreja que pode corresponder tanto com o reino da aliança de Jesus, como com as “parábolas do reino” que Jesus nos fala no Evangelho de Mateus. Com aquelas sete parábolas, Ele preparou seus discípulos para que reconhecessem o reino dos céus, e também, para que percebessem que o reino na Terra seria uma mistura de bons e de maus – muito parecido com o reino original de Davi. Seria como um campo semeado tanto com trigo como com joio, ou como uma rede de arrastão cheia de bons peixes, mas também de peixes ruins.

Ao mesmo tempo, as parábolas deixam claro que o reino restaurado será manifestado de uma forma inesperada e que muitos poderão não reconhece-lo (cf. Mt 13, 11-15.44-46). Este reino não será caracterizado pela pompa real, por uma conquista militar, por um poder político, nem por uma riqueza econômica. Em meio ao interrogatório de Pilatos, Jesus falou o que importava saber em termos inequívocos: “O meu Reino não é deste mundo; se o meu Reino fosse deste mundo, os meus súditos certamente lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu Reino não é deste mundo” (Jo 18,36). Jesus não quis dizer que o Seu reino não estava neste mundo, mas apenas que o Seu reino não tinha sua autoridade real derivada de espadas ou exércitos, ou votos majoritários em eleições ou partidos políticos. Sua autoridade real é derivada de Seu Pai celeste. O Reino não era o que Caifás ou Pilatos – ou qualquer dos seus contemporâneos – esperavam.

A partir das parábolas do Reino, podemos concluir, sem sombra de dúvida, que Jesus estabeleceu com a Sua vinda, um reino sobre a Terra. No século IV, Santo Agostinho colocou isso muito bem: “A Igreja já é agora o reino de Cristo e o reino dos Céus”! Um teólogo moderno, o cardeal Charles Journet, corroborou: “O Reino já está na terra; e a Igreja já está no céu. Abandonar o valor idêntico que tem a Igreja e o Reino significaria desconsiderar esta importante revelação.”

Assim, a menos que consideremos o reino tanto terreno como celestial, não estaremos vendo a Igreja (ou o Reino) como Jesus quer que vejamos. Pois não existem duas Igrejas, uma no céu e outra na terra. Também não existem dois reinos, um na terra e outro (para o momento) apenas presente no céu. Assim, a Igreja existe em dois estados, mas é uma única Igreja. É um único reino. Como professamos no Credo, há somente a Igreja uma, santa, católica e apostólica.

O Reino chegou e este é a Igreja – a Igreja universal, a Igreja Católica – um campo com trigo e joio, uma rede com peixes bons e ruins. Se Jesus pretendesse estabelecer um reino em sua total perfeição, Ele não teria incluído o joio no campo, nem os peixes ruins nessa rede de arrasto. As Suas parábolas só têm sentido se o reino for a Igreja como nós a conhecemos – uma, santa, católica e apostólica – cheia de pecadores, alguns de nós arrependidos.

Somente no céu, no fim dos tempos, nós conheceremos o Reino manifestado em sua glória: “quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Deus, porque o veremos tal como Ele é” (1Jo 3,2). Até aquele dia, Ele ainda permanecerá conosco, na Igreja, com toda a Sua glória na Eucaristia. E não é que Ele seja menos glorioso agora, mas é que esta é a forma que h oje temos para perceber como Ele é.

Ainda, graças à aliança, “agora somos filhos de Deus” (1Jo 3,2). Somos filhos no “Filho de Deus”, o rei da criação, pela linhagem de Davi. E isso é motivo suficiente de alegria, desde agora até o dia em que o Filho de Davi nos restaurar, para podermos vê-Lo (cf. Lc 18,41) em Sua glória.

Jerusalém, meu lar doce lar

O Antigo Testamento previu o nosso dia e o profetizou. Mesmo nos tempos de Davi, a B´´iblia grega Septuaginta nos diz que, quando o rei-sacerdote se reuniu com o povo de Israel para adorar a Deus, ele se reuniu com a ekklesia. Essa é a palavra que o Novo Testamento usa para significar a Igreja. Então, o rei-sacerdote se reúne hoje com a Sua Igreja. Mas onde?

Não devemos nos surpreender ao saber que, quando vamos à Missa, estamos indo para a casa do Rei Davi: “Vós vos aproximastes da montanha de Sião, da cidade do Deus vivo, da Jerusalém celestial, das miríades de anjos, da assembleia [ekklesia, Igreja] festiva dos primeiros inscritos no livro dos céus” (Hb 12,22-23). Embora a Jerusalém terrestre e seu Templo tenham sido destruídos cerca de uma geração após Jesus ter subido aos céus, o próprio Cristo deu ao Seu povo mais do que uma consolação. Ele nos revelou a Jerusém celeste: “Levou-me em espírito a um grade e alto monte e mostrou-me a Cidade Santa, Jerusalém, que descia do céu, de junto de Deus, revestida da glória de Deus” (Ap 21,10-11), “a nova Jerusalém, que desce dos céus enviada por meu Deus” (Ap 3,12).

Isso é o que acontece quando celebramos a Eucaristia: a nova Jerusalém desce do céu – e Deus e os Seus anjos nos elevam à vida divina. Quando vamos à Missa, nos reunimos como Igreja ao redor do rei-sacerdote, um rei para sempre como Davi, um sacerdote para sempre como Melquisedeque. O rei de Salém, o rei da Paz, ainda reina no lugar onde o pãõ e o vinho são oferecidos a Deus em ação de graças, na todah, na eucaristia. O Filho de Davi está realmente presente entre nós e, por isso, nós estamos presentes no Seu reino.

O Monte Sião desce a nós do céu! A Jerusalém desce em graça ao lugar aonde eu e você vamos à Missa, quer seja numa humilde capela, quer seja ao ar livre atrás de muralhas numa terra estrangeira. Estamos na casa do Monte Sião. O reino dos céus toca a terra onde quer que estejamos presentes à Missa. Lá nós somos servidos pelos ministros apostólicos, vice-regentes de Cristo, ordenados de acordo com o costume dos Apóstolos.

O reino imaginário domina o livro bíblico do Apocalipse. É lá que encontramos Jesus como “o primogênito dentre os mortos e o príncipe dos reis da terra”, lembrando o que é dito sobre Davi no Salmo 89,28: “Por isso, eu o constituirei meu primogênito, o mais excelso dentre todos os reis da terra”. Este Jesus que “fez de nós [sermos] um reino” (Ap 1,6). A espada que sai de sua boca (Ap 1,16) se refere à profecia messiânica de Isaías 11,4: “[O tronco de Jessé] ferirá o homem impetuoso com uma sentença de sua boca, e com o sopro dos seus lábios fará morrer o ímpio”. Em Ap 5,5, Cristo aparecerá como “o Leão da tribo de Judá, o descendente de Davi”. O reino deste Cristo Messias é universal e eterno: “O reinado sobre o mundo pertence agora ao nosso Senhor e a seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos séculos” (Ap 11,15). Em Apocalipse 12,1-6, a mãe de Cristo (aquela “que deu à luz um filho homem, que veio para governar todas as nações com cetro de ferro”, v.5; ver Sl 2,8-9) é retratada com realeza (“uma Mulher revestida do sol, tendo a lua debaixo de seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas”, v.1), ou seja, cumprindo o papel da Rainha-Mãe de Israel.

Então, o que encontramos na última página do Apocalipse recapitula o que tínhamos visto nas primeiras páginas do Gênesis, num estado primitivo da natureza humana. Encontramos o homem divinizado com domínio sobre o cosmos, por meio de uma aliança com Deus. Na Sagrada Comunhão, nós somos um com aquele Homem. Muito mais do que sermos um com nosso antepassado Adão, nós somos um com Jesus, o Cristo, o Filho de Deus, o Rei.

O Seu reino é a Igreja e esse fato nos deixa surpresos. Mas o Senhor nos disse que assim faria, pois assim devia ser; afinal, nosso Deus nos transcende. Ele cumpre com Suas promessas e nos surpreende com suas expectativas evidentes, mas, por vezes, ocultas. Aliás, essa é a própria definição de mistério.

Então, qual era a intenção de Alfred Loisy com sua provocação de ser a Igreja uma pobre substituta para o reino? Loisy se deparou com a evidência de que Jesus intencionava fundar uma Igreja, e que Ele desejava fazê-lo. Mas nós podemos muito bem responde-lo com esta pergunta: onde está dito que Jesus pretendia abolir as estruturas e as tradições de Israel? Simplesmente não está!! O próprio Jesus declarou enfaticamente: “Não penseis que vim abolir a Lei ou os Profetas; não vim para os abolir, mas si, para leva-los à plenitude. Pois, em verdade vos digo: passará o céu e a terra, antes que desapareça um jota, um traço da lei. Aquele que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e ensinar assim aos homens, será declarado o menor no Reino dos céus. Mas aquele que os guardar e os ensinar será declarado grande no Reino dos céus” (Mt 5, 17-19). A pergunta que deveríamos fazer é esta: o que seria daquelas antigas tradições e estruturas davídicas se não fossem todas cumpridas numa nova forma messiânica, agora restaurada e transformada?

HAHN, Scott Walker. Razões para crer: como entender, explicar e defender a Fé Católica. São Paulo: Cléofas, 2005. p.146-188
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