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Afinal, os padres são ou não obrigados a usar batina?

Dia de S. João Batista - Card. Ratzinger


São João Batista existe para chamar os homens para junto de Cristo. O seu ministério tem um caráter distinto do dos Apóstolos e dos seus seguidores. Ao contrário destes, João não representa diretamente o Senhor, mas abre a porta para Ele. Prepara-Lhe um ambiente em que a sua voz possa ser ouvida. Reúne, purifica e prepara o povo, a fim de que passe a existir a possibilidade de encontrar-se com Jesus. Põe os homens no caminho que conduz a Ele.

Num mundo que se tinha tornado cristão, como o dos séculos precedentes, esse tipo de ministério naturalmente passou para um segundo plano. Mas numa época como a nossa, que vive cada vez mais longe do Senhor, em que os nossos "órgãos de acesso" a Deus e a Cristo correm o risco de atrofiar-se, volta a ser urgente esse esforço de preparação para o catecumenato, que abre espaço para que o próprio Senhor possa fazer-se ouvir novamente.

Manifestar o Senhor

Comecemos pelo final do Evangelho de hoje. Nele se diz que João viveu no deserto até o dia em que se apresentou diante de Israel (Lc 1,80). A tradução não reflete, aliás, um elemento essencial do texto bíblico, que dizia originalmente: "permaneceu no deserto até o dia da sua anadeixis. Esta palavra deriva do antigo direito administrativo e significava o que hoje chamamos "investidura" ou "tomada de posse" de um cargo público. Lucas voltará a empregá-la no começo do capítulo décimo, para indicar o envio dos setenta e dois discípulos por Jesus. Com relação a João, ela significa: o Batista não faz a sua aparição no momento que lhe parece conveniente a ele, mas a sua atuação pública insere-se na ordem pública do Povo de Deus, na chamada "economia" da História da Salvação, na transição da Antiga para a Nova Aliança.

Não há dúvida de que existe uma forma de testemunho cristão que todo o fiel pode e deve exercer sem necessidade de qualquer mandato específico, e o Evangelho também nos fala dela ao contar-nos que os que presenciaram o nascimento do Batista difundiram o que tinham visto. É disso que vive a fé: desse transbordamento simples daquilo que compreendemos e experimentamos, da transmissão e comunicação cotidianas daquilo que vive em nós. Outra coisa, porém, é o serviço público prestado ao Povo de Deus, serviço que recebe a sua responsabilidade da ordem pública e que se torna, precisamente por estar inserido nessa ordem, um testemunho da fé coletiva, um episódio da História da Salvação. Porque a palavra anadeixis, "investidura", é uma expressão da ordem pública da Igreja, mas também pode significar "Revelação". É por meio da inserção na ordem coletiva da Igreja que a Revelação se torna presente, que a História da Salvação se cumpre e o Senhor se manifesta.

Deixar que Deus nos vença

Perceberemos qual o pano de fundo espiritual do que acabamos de dizer se examinarmos a narrativa da imposição do nome ao menino recém-nascido. Zacarias recebe de volta a voz no momento em que obedece expressamente à mensagem do anjo: ao dizer "sim" ao nome que Gabriel lhe tinha indicado, reconhece a veracidade da promessa divina. A mudez em que caíra até aquele momento era expressão metafórica do temor e da desconfiança com que reagira ao anjo, mensageiro de Deus (cfr. Lc 1,13-20). O velho sacerdote estivera preso àquilo que os homens costumam considerar "normal", isto é, àquilo que conseguem pensar e entender por si mesmos. Nessa disposição, que mede o mundo pela sua própria capacidade de compreensão e por aquilo que uma determinada época considera aceitável, a promessa de Deus só podia parecer-lhe um mito vazio. Diante de Deus - cuja novidade, alteridade e superioridade sempre rompe as nossas possibilidades e os nossos cálculos -, Zacarias estava surdo e mudo, por mais que soubesse recitar as solenes orações da liturgia do Templo de Israel.

Mas não é ele, precisamente por causa disso, o nosso representante? Não somos todos, de uma maneira muito parecida à de Zacarias, mero surdos-mudos diante de Deus, enredados na nossa prudência míope, no espírito do nosso século, e por isso muito encerrados naquilo que consideramos certo e compreensível? Não será que até o nosso trabalho de teólogos, que lida com tantos conceitos, muitas vezes se torna um diálogo de surdos-mudos, em que perdemos de vista a realidade das idéias e lidamos apenas com umas palavras reduzidas a cascas vazias? E não acontece que até na interpretação da Sagrada Escritura, por mais que esmiucemos os textos, por maior que seja a nossa erudição histórica e filológica, frequentemente somos ouvintes surdos, que não captam nada, mas absolutamente nada, das verdades que ela nos traz, e permanecem na superfície de um conhecimento que não alcança nem de longe o mistério de Deus?

A língua de Zacarias solta-se no momento em que ele faz suas as palavras prescritas pela promessa do anjo. Também nós só poderemos falar retamente do Senhor se nos deixarmos vencer por Ele, se deixarmos que nos arranque dos nossos modos limitados e excessivamente pessoais de pensar e de compreender. Só se ousarmos lançar-nos no oceano da fé comum da Igreja, se tivermos a coragem de aceitar em plenitude as palavras que ela nos propõe, só então é que poderemos pouco a pouco falar juntamente com ela, ouvir com ela e assim também abrir os ouvidos dos outros aos mistérios de Deus. A mera razão, por mais importante que seja - mesmo a razão de uma década ou de um século - é muito pouco para Deus. A Palavra de Deus exige mais. Exige que superemos os estreitos limites do nosso mundo, exige que nos confiemos de coração, corajosamente, à grande fé de todos os séculos.

Desvencilhar-se da vontade própria

Mas há outro aspecto em jogo neste relato. Os parentes especulavam qual seria o nome escolhido para o menino, e surpreenderam-se ao saber que devia ser um nome não usado até então por nenhum membro da família. Para Zacarias e Isabel, porém, estava claro que o que conta não é a origem, que nem as idéias próprias nem a vontade própria são decisivas, mas apenas a vontade de Deus. Na sua fé, e na verdade em toda a fé, transparece a atitude de Abraão. A fé tem que desvencilhar-se uma e outra vez da vontade própria; exige que deixemos a nossa parentela, como se diz aqui e como aconteceu com Abraão, e nos encaminhemos para a vontade nova de Deus.

O Novo Testamento permanece sempre novo. Sempre é diferente daquilo que nos parece habitual, normal e evidente. Sempre nos exige a coragem de Abraão, que renuncia aos cálculos humanos, deixa que o Senhor tome a sua mão para conduzi-lo, e põe a vontade de Deus acima dos planos pessoais.

Um susto sagrado

E assim chegamos ao que o serviço à Palavra de Deus exige de nós. O Evangelho diz-nos desta cena: todos os que o ouviram [o relato do nascimento] conservaram-no no coração (Lc 1,66) Infelizmente, também aqui a tradução banalizou um pouco o original: o texto grego diz: Ethento en te kardia, "levaram-no ao coração", "puseram-no dentro do seu coração".

A palavra de Deus - já o dissemos - precisa da nossa razão. Usa-a e desafia-a. Mas a razão sozinha não basta. Precisamos levar essa palavra para dentro do nosso coração, até às profundezas mais íntimas do nosso ser, para que "nos vire do avesso" - nos converta - por dentro. Devemos assimilá-la e deixar que produza em nós essa fermentação que, como diz a Sagrada Escritura, "faz estremecer as nossas entranhas" (cfr. Cânt 5,4; Is 63,15; os 11,8; Hab 3,16; etc.) Só se recebermos assim a Palavra de Deus é que ela nos ferirá, e então também os homens "ficarão pasmados", como se diz no Evangelho. Ou ainda, "o temor apoderar-se-á deles", como também se diz no texto grego (Lc 1,65).

Tudo isto vem a dizer que não podemos ler a palavra de Deus e permanecer tranquilamente sentados como quem lê o jornal. Se realmente tivermos tocado aquilo que é diferente de nós, o totalmente Outro, deveremos sentir-nos atingidos como por um raio, feridos até o mais fundo do nosso ser. E então nos assustaremos em primeiro lugar ao ver como a nossa existência é banal e superficial, como é insuficiente diante da glória e do poder eternos de Deus. Mas só se nos expusermos a esse susto sagrado - ou seja, se não lermos a palavra de Deus como um simples jornal -, só então a alegria do Evangelho poderá realizar-se em nós. Pois quem permanece na superfície das coisas também será superficial na sua alegria; só quem se deixa abrir até o fundo consegue compreender o que significa que Deus é graça - o que é, precisamente, a tradução do nome "João". Esse é, no fim das contas, o resultado de todo o cristianismo: "Evangelho", alegria verdadeira.

Para que essa grande alegria de Deus possa atingir-nos, temos de estar plenamente abertos, temos de deixar que o poder da sua Palavra nos atinja. Não poderemos cumprir o ministério do Batista - levar ao íntimo dos homens o sagrado susto diante da palavra divina, que conduz à sagrada alegria - se antes não tivermos sido atingidos no mais íntimo do nosso ser por esse susto e assim nos tivermos encontrado com a sua alegria.

Por fim, a leitura de hoje abre-nos ainda para uma outra idéia: o fracasso do Profeta (cfr. Mc 14,1-12), que no entanto se sabe abrigado no Senhor. Nunca poderemos julgar a nossa missão pelo critério do êxito. Se alguém por assim dizer quisesse encontrar a sua identidade no sucesso, em breve acabaria por falsear a identidade da Palavra que lhe foi confiada. Os nossos pontos de apoio devem ser mais profundos. São a união com a vontade de Deus, a fidelidade à Igreja como um todo e o abandono confiado nas mãos de Deus que nos tornam livres, nos enchem de coragem, nos ajudam a atravessar tempos obscuros com a luz da Palavra, e nos fazem audazes por sabermos que Deus está ao nosso lado.

***

Santo Agostinho tem um comentário muito profundo acerca da relação entre o Batista e Cristo ao apontar que João se apresentava como a voz do que clama (Jo 1,23), ao passo que Jesus era a Palavra de Deus (cfr. Jo 1,14). "Voz" e "palavra". A voz passa, a palavra permanece. Mas apenas a palavra entra e permanece. A voz não é, por assim dizer, senão o veículo da palavra e, cumprido o seu papel, extingue-se: É preciso que Ele cresça e que eu diminua (Jo 3,30), diz o Batista.

A voz está a serviço da palavra. No entanto, sem o instrumento da voz, a palavra não poderia propagar-se neste mundo nem chegar àqueles a quem queria chegar. E esta é a nossa missão: sermos voz a Palavra! Peçamos ao Senhor que cada vez mais nos seja dado, a nós, ministros da Palavra, ser essa voz de Deus, esse seu veículo, para assim podermos participar da sua eternidade e da sua plenitude.

Cardeal Joseph Ratzinger, Homilia Sobre os Santos

Dia de Sto Agostinho - Tarde te Amei...

Ainda a Teologia da Libertação


Nesta postagem, quero tratar um pouco sobre a Teologia da Libertação. Muita gente já conhece a sua origem e a sua natureza e, portanto, já está devidamente vacinada contra este vírus. No entanto, ainda há inúmeros inocentes que podem se deixar levar por este canto de sereia. É para estes últimos que escrevo. Eu peço, então, uma leitura tranquila e meditativa sobre o que eu porei aqui.

Para dar suporte a um estudo mais aprofundado, eu recomendo particularmente três leituras:


Bem, a primeira dificuldade é que, para a grande maioria das pessoas, basta uma coisa parecer verdadeira para ela ser tida como tal. Muitos só rejeitariam um erro se ele fosse evidente. Se, ao contrário, ele se disfarça de discurso politicamente correto, ou se apela para o emocional das pessoas, é muito provável que ele venha ser aclamado como a via mais acertada. É por isso que, na Igreja, as coisas não são decididas por meio de consenso, porque as vozes mais profundas e que portam a verdade seriam abafadas pelo barulho irrefletido da comunidade ludibriada por expressões de efeito.

Então, se quisermos ter uma visão acertada das coisas, não podemos pecar por mediocridade e simplismo. Não podemos nos deixar levar pela verossimilhança, mas pela verdade, de fato. Iniciemos, pois, a nossa reflexão sobre a Teologia da Libertação.

Devemos reconhecer, antes de tudo, qual é a sua raiz. Sabemos que ela mantém os mesmos pressupostos que o Marxismo, e que consistem no seguinte: 1) a única realidade existente é realidade visível; 2) Se assim é, a história é a única dimensão onde as coisas podem acontecer e, portanto, onde se devem concentrar todos os esforços humanos; 3) Tudo será visto pelo esquema da Luta de Classes. Desse modo, o binômio 'Pecado-Salvação' e 'Demônio-Povo Escolhido' será lido de um modo estritamente social, identificando o povo de Deus com os pobres, e o demônio, com os ricos, responsáveis pela opressão. 4) O Céu, não se podendo produzir num porvir transcendente, que inexiste, deverá realizar-se no aqui e agora.

Como se vê, opta-se por uma reinterpretação de toda a história da Salvação. Esta reinterpretação obedece ao curso da história. Entender o sagrado segundo os moldes tradicionais, isto é, segundo ideais estáveis e verdades imutáveis, iria contra a própria estrutura da realidade, que é essencialmente histórica e evolutiva. Daí que a Teologia da Libertação alia-se a movimentos de caráter progressista e encara como vocação profética o ato de rebelar-se contra qualquer valor fixo ditado por alguma instância superior. Com relação à luta de classes, os cultores desta ideologia tendem a enxergá-la no próprio seio da Igreja. A comunidade simples, isto é, os leigos e os padres que se despojam de qualquer particularismo hierárquico, seriam, então, a verdadeira Igreja de Cristo, pois encarnariam o Jesus pobre. A Igreja hierárquica, ao contrário, apegando-se ao modo tradicional, apenas contribuiria para a manutenção do poder, travando a marcha progressiva e, portanto, sendo inimiga da emancipação. A esta Igreja hierárquica, conviria resistir.

A Teologia da Libertação é, pois, essencialmente rebelde, pois entende a Redenção como libertação das opressões dos poderosos, inclusos dentre estes os que lutam em favor uma Igreja Tradicional. Logo, não convém fiar-se nas determinações do Magistério, mas partir da própria comunidade. É neste sentido que se costuma usar a expressão "Igreja do Povo". Desse modo, não há mais uma Liturgia à qual se deva obedecer e observar com fidelidade. Agora, a própria Liturgia será resultado do protagonismo da comunidade que, portanto, a encherá de tudo aquilo que mais lhe agrade e que possa simbolizar este movimento de libertação. A Eucaristia não mais é vista como Sacrifício ou a Presença Literal de Cristo; ela agora assume um status representativo da partilha entre os pobres, se tornando um mero banquete figurativo da grande rebelião emancipatória e da caridade social.

Os pecados pessoais são relativizados. A noção de pecado, na Teologia da Libertação, está muito mais associada à sua repercussão coletiva. Se um sujeito se opõe a esta ideologia e opta pela Igreja Tradicional, ele estaria rejeitando o espírito revolucionário e, portanto, incorreria em pecado. Um outro, porém, que viesse a pecar pessoalmente, mas que mantivesse sua luta social, não teria cometido pecado nenhum. Desse modo, o pecado é visto de um modo absolutamente prático e utilitarista. O foco não mais está no campo metafísico, segundo o qual o pecado afasta o homem de Deus. A grande ênfase agora é dada àquilo que promoveria a dignidade humana e esta será entendida em termos puramente políticos.

A Teologia da Libertação, restringindo-se somente àquilo que acontece dentro da história, tende a negar o que está além dela. Portanto, não vê com bons olhos a crença em eventos sobrenaturais. É por isto que, na reinterpretação que farão dos eventos bíblicos, os adeptos desta heresia dirão que os Apóstolos costumam utilizar modos conotativos para expressar fatos que, na verdade, nada tiveram de sobrenatural. Se a Bíblia narra, por exemplo, a multiplicação dos pães, eles dirão que isto é um modo de fazer significar a partilha dos alimentos. Se a Escritura narra a cura de leprosos e cegos, eles dirão que isto é só um modo de dizer que eles foram acolhidos na comunidade, etc. Este modo de compreensão será dito mais científico e, portanto, mais seguro. A Teologia da Libertação cai, então, num tipo de racionalismo.

Vê-se como isto tudo dista infinitamente da compreensão legitimamente cristã. Poder-se-ia utilizar da própria Bíblia para refutar este erro, porém, para os teólogos da libertação o que é dito na Escritura não possui valor por si, mas somente enquanto serve como símbolo de realidades atuais que a comunidade está a vivenciar - é o que se chama "hermenêutica". Assim, o episódio do êxodo no Antigo Testamento vale menos enquanto relato de um acontecimento real do que como modo de representação e motivação de uma necessidade atual do povo. Prender-se a um suposto sentido objetivo e literal seria, de novo, optar por uma compreensão engessada da realidade e que, portanto, não corresponderia com a ordem das coisas. Não há pura verdade teológica ou metafísica; o que há é apenas a verdade da prática. A redenção não se daria pela posse de uma verdade, mas pela efetivação de um projeto político-social.

É possível também, com base nisso tudo, compreender por que razão a TL exerce esse fascínio em algumas pessoas. Se olharmos à nossa volta, nós veremos que os problemas sociais são mesmo graves e que qualquer proposta minimamente moral não deve ignorá-los. Neste sentido, fazer o bem a alguém toca necessariamente neste ponto. A Teologia da Libertação, identificando os tais problemas e se detendo sobre eles, oferecendo ainda uma teoria puramente natural sobre as suas causas e sobre o suposto modo de resolvê-los, aparece, aos olhos incautos, como uma via dotada de mais realidade, de mais substância, um caminho mais pé no chão. Uma grande parte dos católicos, ainda que não sigam expressamente a TL, costuma pensar desse modo: aquilo que é imediatamente palpável e visível seria mais real do que aquilo a que nos referimos no Credo e do que todo este mundo invisível para o qual nos voltamos quando rezamos. A Teologia da Libertação, portanto, permite que esta desconfiança comum ganhe um corpo sistemático. Para reconhecer-lhe o veneno, é necessário possuir uma boa catequese, sem a qual as pessoas se verão desarmadas diante de tão nefasto inimigo. É por isto, também, que uma imensa parte das catequeses modernas é uma negação.

Enquanto a Teologia da Libertação aparece com ares de caridade e de bondade, o que ela faz é, na verdade, exatamente o oposto. Pregando a necessidade da Luta de Classes, ela semeia a discórdia no coração humano que passa a vê-la como um bem necessário à emancipação. É a sacralização do ódio. Utilizando-se da religião para pregar um socialismo pseudo-cristão, a TL impede que as pessoas efetivamente conheçam os meios eficazes para que se salvem da primeira e maior escravidão que existe - o pecado -, sem a qual os problemas sociais se resolveriam. Deixando nas mãos da própria comunidade a crença num paraíso terrestre, a TL semeia uma falsa esperança, eivada de ódio, e faz que os homens acreditem ser auto-suficientes, capazes de se libertarem a si mesmos, reduzindo o papel de Deus ao de um mero incentivador ou inspirador. Falseando ainda a estrutura da realidade, a TL põe nas mãos das pessoas um projeto irrealizável, mobilizando infinitamente - já que nunca leva a termo o que promete - o ódio que consegue provocar nas almas. Distraindo-as, enfim, da verdade e da Pátria Celeste, a TL as ensina a depositar todas as suas esperanças no exílio, aviltando a sua dignidade de almas imortais; as impede de buscar o auxílio efetivo em Deus e faz com que não se arrependam dos seus pecados pessoais nem tenham comunhão real com Deus por meio dos Sacramentos. Em suma, travestida de religião, a TL é todo um projeto sistemático - expressão da revolução cultural na Igreja - para destruí-la por dentro.

Devemos ficar, pois, atentos e fazer o possível para os que ainda dormem sejam acordados e vacinados contra este inimigo de Cristo, contra este erro perverso que a tantas almas ameaça e que tanta discórdia promove.

Para isto, peçamos o auxílio da Virgem Santíssima, para que esmague todo erro e heresia, para que nos socorra em nossa nossa fraqueza e inércia, e nos ajude a cumprir a vontade de Seu Filho. Amém.

A Mística de S. Bernardo de Claraval IV - A união pela harmonia das vontades


Hoje, dia de S. Bernardo de Claraval, grande doutor da Igreja, termino as postagens referentes à sua mística que iniciei semanas atrás. Recomendo veementemente a sua leitura e rogo por todos os leitores deste blog a sua intercessão. Deleitem-se...

Poderão acessar os artigos anteriores pelos links abaixo.


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S. Bernardo é o doutor por excelência da mística, e como tal foi tido na mais alta estima por toda a Idade Média. Dante, nos últimos cantos da Divina Comédia, escolheu-o por guia no caminho da união mística. Como mestre da ascese e da mística sua influência foi profunda e duradoura. Desde os Vitorinos até S. Boaventura, os grandes mestres da espiritualidade medieval vão inspirar-se nos seus escritos. Em todos eles, o ardor do amor místico vai de mãos dadas com o esplendor das ciências profanas. Ainda hoje, o grande místico e asceta faz jus à nossa gratidão, mercê de suas profundas intuições psicológicas, notadamente no domínio da vontade.

A União do Homem com Deus
S. Bernardo de Claraval

Deus e o homem, porém, não se identificam nem pela substância nem pela natureza; por isso não podemos dizer que sejam uma só coisa; contudo, podemos afirmar com absoluta verdade e certeza que são um só espírito, desde que se encontrem unidos pelos laços do amor. Este ser-um, porém, decorre menos de uma associação das essências do que da harmonia das vontades.

Patenteia-se assim, salvo engano meu, de maneira suficiente, não só a diversidade, como ainda a disparidade dessas duas unidades; pois se aquela se encontra até num mesmo ser, esta só se verifica entre essências diversas. Haverá uma distância comparável à que existe entre a unidade de vários e a unidade de um só? É, pois, pelo "unus" e pelo "unum" que essas duas unidades se delimitam uma da outra. Com efeito, o "unum" designa a unidade da essência no Pai e no Filho, ao passo que o "unus" não designa o mesmo entre Deus e o homem, mas sim a comunhão íntima de amor.

É verdade que, em certo sentido, também o Pai e o Filho podem dizer-se "unus"; é o que fazemos, por exemplo, ao falarmos de um Deus, de um Senhor, etc.; pois dizemos isso de cada um em particular, e não em relação ao outro. Pois eles não possuem uma divindade ou majestade diversa, tampouco como têm uma substância ou essência ou natureza diversa. Pois todas estas coisas, se as considerares com reverência, não são diversas nem divididas neles, mas uma só coisa. Que digo? são também uma só coisa com eles.

Que será então aquela unidade pela qual muitos corações e muitas almas se dizem uma só coisa? Não me parece que lhe devamos dar o nome de unidade, se a compararmos àquela que não une muitas coisas, mas designa um único de maneira inteiramente singular. Logo, a unidade singular e suprema é aquela que não resulta de uma associação, mas que vigora desde a eternidade. Esta não se efetua em virtude do referido ágape espiritual, posto que nem sequer é produzida. Ela é, pura e simplesmente. Muito menos devemos fazê-la proceder de uma como aliança de essências para que haja uma reunião ou unificação por consenso.

Ora, Deus e o homem subsistem em si mesmos e distanciam-se por suas própria vontades e substâncias; a nosso ver, eles se mantêm unidos um ao outro de maneira inteiramente diversa, a saber: não pela confusão das substâncias, mas pela harmonia das vontades. Esta união consiste, pois, na comunhão das suas vontades e no consenso da caridade. União feliz, se a conheceres por experiência! Nenhuma, se a comparares!

BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

Adolescentes matam uma religiosa em um ato satânico; morreu perdoando e poderá ser santa


A religiosa, que foi declarada mártir em 2008, se dedicava há anos a trabalhos educativos e de ajuda aos necessitados no pequeno povoado de Chiavenna, ao norte da Itália. Contudo, a noite de 6 a 7 de julho, três meninas adolescentes lhe armaram uma armadilha mortal.

Ambra, Vernônica e Milena, duas delas de 16 e 17 anos, planejaram o assassinato, segundo reconheceram depois de serem detidas. As declarações chocaram todo o país, sobretudo quando confessaram que em um ato satânico se lhes havia pedido assassinar um religioso.

Uma das menores, fingindo estar grávida e à beira do desespero, pediu ajuda à religiosa. Uma vez atraída à armadilha num lugar à parte, lhe aplicaram a Mainetti 6 punhaladas cada uma: um total de 18. Maria Laura Mainetti continuava viva, mas ignoraram suas súplicas, e a apedrejaram até morrer, sem outra razão que a de levar a cabo um ato satânico.

A religiosa tinha 61 anos e pertencia à Congregação das Filhas da Cruz. No momento em que a assassinaram era a superiora de sua comunidade no Instituto de Maria Imaculada em Chiavenna. 

As perdoou

As próprias adolescentes reconheceram também que a religiosa pediu o perdão por elas, o que consistiu no principal motivo para qualificar a morte de Mainetti como martírio. Em 23 de outubro de 2005 se abriu seu processo de beatificação.

Assunção de Nossa Senhora - Cardeal Joseph Ratzinger


Abriu-se o templo de Deus no céu e apareceu, no seu templo, a arca do seu testamento. Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida de sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Estava grávida e gritava de dores, sentindo as angústias de dar à luz. Depois apareceu outro sinal no céu: um grande Dragão vermelho, com sete cabeças e dez chifres, e nas cabeças sete coroas. Varria com a sua cauda uma terça parte das estrelas do céu, e atirou-as à terra. [...] Então a Mulher fugiu para o deserto, onde Deus lhe tinha preparado um retiro. Eu ouvi no céu uma voz forte que dizia: Agora chegou a salvação, o poder e a realiza do nosso Deus, assim como a autoridade do seu Cristo" (Apoc 11,19 - 12, 1-6a.10ab).

A festividade da Assunção de Nossa Senhora põe-nos diante dos olhos, ano após ano, o grande sinal de que nos fala a leitura que acabamos de ouvir: uma mulher revestida de sol, ou seja, impregnada da luz de Deus, que habita em Deus - e na qual Deus habita. Deus e o homem tocam-se e se compenetram. Céu e terra encontram-se. E a lua debaixo dos seus pés significa que a transitoriedade, a condição mortal e a própria morte estão superadas e que o temporal foi elevado à vida eterna. E Ela está sob o sinal da Redenção, pois as doze estrelas indicam a nova família de Deus, representada pelos doze filhos de Jacó e pelos doze Apóstolos de Jesus Cristo.

Esta festa repleta de esperança e alegria mostra-nos que Cristo não quis permanecer só à direita do Pai; de certa forma, é somente agora que se encerra propriamente a comemoração da Páscoa. Cristo, o grão de trigo que morreu, não volta sozinho nem sobe sozinho para o Pai, deixando a terra simplesmente abandonada a si mesma. Ao levar Maria consigo, começa a levar para o alto o mundo, a terra e nós mesmos, de forma que Deus e o mundo se compenetram e começa a aparecer uma nova terra (cfr. Apoc 21,1). Esta é a orientação que o dia de hoje nos dá: o Senhor não permanecerá sozinho, e a nova terra já começou. E ela não é apenas um sonho futuro, mas abre-se no presente e permanece aberta onde quer que o homem se entregue completamente a Deus.

Isto é o que a Bíblia nos diz com a metáfora da Mulher, do sol e das estrelas, e isto é o que a linguagem do tempo litúrgico exprime numa fórmula simples: Maria foi levada em corpo e alma para o céu. Encontramos aqui, portanto, três palavras-chave: Maria - ser humano em quem já se cumpriu todo esse processo, e que por isso representa para nós um sinal de esperança -, céu e corpo. Maria é o ser humano que se adiantou plenamente a nós e que por isso é um foco de esperança para nós. As tentativas feitas ao longo dos últimos duzentos anos para criarmos nós mesmos o homem novo e estabelecermos a nova terra acabaram em catástrofe. Nós somos incapazes de consegui-lo, mas Deus é capaz, e assim o faz, e nos mostra como ir ao seu encontro.

Permanecer fiéis ao céu

tomemos agora as duas palavras-chave que a liturgia nos oferece - céu e corpo, céu e terra -, como conceitos relacionados entre si. À primeira vista, parece ultrapassado falar do céu. Quem o faz hoje? Mais: quem ousa fazê-lo hoje? "Irmãos, permanecei fiéis à terra", dissera Nietzsche, para afastar enfim os nossos olhos do céu e convidar-nos a desfrutar plenamente da terra, sem nada esperar além daquilo que ela nos pode dar. "O céu, deixemo-lo para os pardais", acrescentou Bertold Brecht. E Albert Camus contrapôs deliberadamente o seu programa - "O meu Reino é deste mundo" - às palavras de Cristo: O meu Reino não é deste mundo (Jo 18, 36), e esse foi na verdade o programa de todo um século, pois o nosso século vive de acordo com ele, e em ampla medida nós também vivemos silenciosamente assim.

"O meu reino é deste mundo" significa que devemos exigir do tempo o que, na realidade, só a eternidade pode dar. Precisamos extrair do tempo a eternidade, e isso significa que o tempo sempre nos parece pouco. Corremos o tempo todo atrás do tempo perdido. Se o tempo tem de ser tudo, necessariamente tem de ser insuficiente, e o resultado só pode ser pressa, perda de tempo, falta de tempo. Quando queremos encontrar no tempo a eternidade, o próprio tempo se nos escapa das mãos.

O mesmo acontece com o mundo, com a terra. Quando queremos extrair tudo da terra, ela torna-se necessariamente muito escassa e acaba por ser destruída. As consequências necessárias são o ódio contra os outros, contra nós próprios e contra Deus, a falta de paz e a violência. Portanto, talvez valha a pena voltarmos a pensar o que essa Mulher vestida de sol tem a dizer-nos: que se trata de vivermos para o céu, com a certeza de que assim também se renovará a terra!

Viver para o céu significa abrir-se para Deus, deixá-lo entrar nesta vida. No começo da Idade Moderna, alguém escreveu: "Deveríamos viver como se Deus não existisse". Conhecemos os resultados dessa atitude. Muito pelo contrário, deveríamos dizer: porque Deus existe, devemos viver dando ouvidos à sua Palavra e à sua vontade. Temos de viver sob o seu olhar.

Quando vivemos assim, por um lado a nossa responsabilidade aumenta, mas por outro a vida torna-se mais leve e mais humana. Mais leve, porque todas as perdas, erros e fracassos deixam de ser algo último e definitivo, uma vez que temos a certeza de que o sentido dessas coisas aparecerá um dia, e nem tudo está perdido para sempre; tudo tem o seu significado , e acabaremos por compreendê-lo. Quando vivo para o céu, todas essas coisas continuam a custar-me, mas já não custam tanto porque são apenas algo de penúltimo, porque já não preciso preocupar-me tanto com o que não consigo fazer nem consigo atingir, uma vez que sei: "Também está bem assim. Ele é bom".

E quando morre uma pessoa, sei que voltaremos a ver-nos que ela não me foi arrebatada de maneira definitiva. Aliás, talvez devêssemos praticar exatamente isto: alegrar-nos com o futuro reencontro com aqueles que se afastaram de nós apenas por um pouco de tempo, e com os quais poderemos conviver num contentamento cem por cento puro, sem contrariedades e perturbações desta vida.

E deveríamos pensar, em tudo o que fazemos, que isso tem peso para a eternidade, que Deus nos vê e nos julga, esse Deus que é justo e fonte da justiça. Daqui nasce a responsabilidade por nós mesmos, pelo próximo, pela terra, e ao mesmo tempo nascem a liberdade e a confiança. A vida torna-se mais ampla e maior. Vivemo-la com mais serenidade e ao mesmo tempo com mais decisão, porque sabemos que avançamos numa direção clara - a da justiça e do amor de Deus.

Corporificar a vida cristã

E agora, o corpo. Hoje pensamos que Deus não pode ter nada a ver com a matéria: ela é como é, ela tem as suas leis. Assim o cristianismo reduz-se a mera idéia, perde a sua realidade. Mas, se refletimos, percebemos que nada disso é coerente. Sabemos que a saúde e a doença não são apenas fenômenos biológicos e psicológicos, que o corpo e a alma estão estreitamente vinculados e se condicionam e conformam mutuamente, pois a alma é uma força que modela a nossa vida corporal. E assim sabemos também que o ódio e o amor modificam a vida e modificam o mundo, e sobretudo que o corpo e a alma, a vida e o mundo, se modificam conforme expulsamos Deus ou o acolhemos.

A Virgem Maria é para nós um paradigma disto, pois ELa não adorou apenas a Deus no seu pensamento, mas pôs-se inteiramente à sua disposição, com todo o seu corpo, para que o próprio Deus pudesse tornar-se corpo. Ser cristão também segundo o corpo significa ser cristão no amor à Criação e ao Criador. E aqui deveríamos voltar a tomar consciência de que não conseguiremos preservar a criação se não quisermos conhecer o Criador, de que continuaremos a destruir a terra se não a usarmos e guardarmos em harmonia com Aquele que no-la deu.

Assim, o respeito pelo corpo, o nosso e o dos outros, e o respeito pela terra toda que Deus nos deu deveriam impregnar a nossa vida de cristãos, corporificá-la. E então perceberemos como precisamente nessa corporificação aparecem o novo e o maior, como a luz eterna de Deus transparece através dela.

Desde a Antiguidade, a festa da Assunção de Nossa Senhora está ligada à bênção das ervas medicinais. Este costume baseia-se na lenda segundo a qual, quando se abriu o sepulcro de Maria, o túmulo vazio cheirava a ervas aromáticas e flores. Isto quer dizer: onde um homem vive com Deus e para Deus, também a terra floresce; ali a própria terra se torna bom odor e canto de louvor, assim como, inversamente, a sujeira das almas ase reflete na poluição da terra e na sua destruição, é o que vemos.

As ervas representam, pois, um sinal do segredo de Maria, apontam para a harmonia entre céu e terra. Elas nos dizem: a terra florescerá onde e quando deixarmos Deus entrar nela, onde nos reorientarmos para Ele. Com este espírito, levemo-las para casa, para que nos sejam um sinal de esperança dessa nova terra, um sinal do amor desse Deus que cria os novos céus e a nova terra e os faz florescer em toda a parte em que os homens procuram viver em harmonia com o seu amor.

Joseph Ratzinger, Homilias Sobre os Santos.

Nova Ordem Mundial - Pe. Paulo Ricardo


Recomendo a todos este breve vídeo onde o Pe. Paulo Ricardo faz uma sucinta exposição sobre alguns dos princípios promovidos pela Nova Ordem Mundial, da qual os auto-declarados "teólogos" Leonardo Boff e Hans Küng fazem de sacerdotes.

O livro base da exposição se chama "Poder Global e Religião Universal", escrito pelo padre argentino Juan Claudio Sanahuja, e que pode ser adquirido pela Editora Ecclesiae.

Chesterton sobre certas teorias modernas


Há, de fato, uma classe de escritores e pensadores modernos que não pode ser ignorada (...). Refiro-me àqueles que vencem todos os abismos e reconciliam todas as guerras falando sobre "aspectos de verdade" (...). Direi aqui apenas que isso me parece uma evasão que nem sequer teve a preocupação de se disfarçar com palavras engenhosas. Caso falemos de alguma coisa com um aspecto da verdade, é evidente que alegamos conhecer o que é a verdade; da mesma forma que, ao falarmos sobre a pata traseira de um cachorro, alegamos conhecer o que é um cachorro. Infelizmente, o filósofo que fala a respeito de aspectos da verdade geralmente também pergunta, "O que é a verdade?" Muitas vezes até nega a existência da verdade, ou diz ser inconcebível à inteligência humana. Como, então, pode reconhecer seus aspectos? Não gostaria de ser um artista que levasse um esboço arquitetônico a um construtor, dizendo, "Essa é a vista sul do chalé com vista para o mar, contudo, tal chalé não existe". Não gostaria sequer de ter de explicar, sob tais circunstâncias, que um chalé com vista para o maro pode até existir, mas que é impensável à mente humana. Muito menos gostaria de ser o confuso e ridículo metafísico que afirma ser capaz de ver em todos os lugares aspectos de uma verdade que não existe. É perfeitamente óbvio que há verdades em Kipling, que há verdades em Shaw e Wells. Mas, o grau com que as podemos perceber depende estritamente de quão distante estamos de uma concepção interna e definida do que seja a verdade. É ridículo supor que quanto mais céticos, mais veremos o bem em todas as coisas. É claro que quanto mais certos estivermos a respeito do que é o bem, mais o veremos em todas as coisas.

Peço, então, que concordemos ou discordemos desses homens. Rogo que concordemos com eles ao menos em ter uma crença abstrata. Mas sei que no mundo moderno é comum haver várias objeções indeterminadas a se ter uma crença abstrata, e sinto que não devemos seguir adiante até que tenhamos nos ocupado de algumas delas. A primeira objeção é facilmente apresentada.

Uma incerteza comum em nossos dias no tocante ao uso de convicções extremas é a noção de que tais convicções, especialmente em questões muito abrangentes, foram responsáveis por aquilo que chamamos de intolerância. Contudo, um pouco de experiência direta dissipará tal visão. Na vida real, as pessoas mais intolerantes são as que não têm nenhuma convicção. Os economistas da escola de Manchester que discordam do socialismo, levam o socialismo a sério. O jovem da rua Bond não sabe o que o socialismo significa, muito menos sabe se concorda com isso, e tem certeza absoluta que os socialistas fazem tempestade em copo d'água. O homem que compreende a filosofia calvinista o bastante para com ela concordar deve compreender a filosofia católica para discordar. É o dúbio homem moderno, que não está certo sobre nada, que tem certeza de que Dante estava errado. O circunspecto opositor da Igreja Latina ao longo da história, mesmo ao mostrar que ela produziu grandes infâmias, deve saber que produziu grandes santos. É o obstinado comerciante, que não conhece história e não acredita em nenhuma religião, que está, contudo perfeitamente convencido que todos os padres são patifes. (...) A intolerância pode ser definida, grosso modo, como a raiva dos homens que não têm opinião. É a resistência apresentada às idéias definidas por um grupo indefinido de pessoas cujas idéias são excessivamente incertas. Tal intolerância pode ser chamada de aterrador furor [d]os indiferentes. Esse furor [d]os indiferentes é na verdade uma coisa terrível; causou todas as perseguições muito generalizadas. Neste estágio, não foram os diligentes os que perseguiram; não havia número suficiente. Foram os imprudentes que espalharam fogo e opressão pelo mundo. Foram as mãos dos indiferentes que acenderam as tochas; foram as mãos deles que produziram ruína. Da dor de uma certeza passional nasceram algumas perseguições; mas estas produziram não intolerância, mas fanatismo - uma coisa muito diferente e, de certo modo, admirável. A intolerância, em geral, sempre foi a onipotência generalizada dos imprudentes esmagando os precavidos.

Há pessoas, contudo, que tentam achar algo mais profundo do que isso nos possíveis males do dogma. Muitos sentem que uma forte convicção filosófica, embora não produza (do modo como percebem) aquela condição morosa e essencialmente leviana que chamamos intolerância, produz certa atenção, exageros, e alguma impaciência moral, que podemos concordar em chamar de fanatismo. Dizem, de modo geral, que idéias são coisas perigosas. Na política, por exemplo, é comum exortarem contra um homem como o Sr Balfour, ou contra alguém como o Se John Morley, cuja profusão de idéias é perigosa. A verdadeira doutrina neste ponto certamente não é, mais uma vez, difícil de expressar. Idéias são perigosas, mas o tipo de homem para quem são menos perigosas é o homem de ideais. Está familiarizado com as idéias e caminha por elas como um domador de leões. Idéias são perigosas, mas o tipo de homem para quem são mais perigosas é o homem sem idéias. O homem sem idéias verá a primeira delas subir à cabeça como o vinho num abstêmio. Creio que é um erro comum entre os idealistas radicais de meu partido e período sugerir que financistas e comerciantes sejam perigosos para o império porque são demasiado sórdidos e materialistas. A verdade é que financistas e comerciantes são perigosos para o império porque podem ser sensíveis a qualquer sentimento e idealistas a respeito de qualquer ideal, de qualquer um que encontram a esmo. Assim como um garoto que não sabe nada a respeito de mulheres, e facilmente toma uma mulher qualquer por aquele tipo de mulher, assim também tais homens práticos, desacostumados com causas, sempre tendem a pensar que caso uma coisa tenha provado ser um ideal, seguramente provou ser o ideal.

Muitos seguiram Cecil Rhodes abertamente, por exemplo, porque tinha uma visão. Poderiam tê-lo seguido por ter um nariz. Um homem sem qualquer tipo de sonho de perfeição é uma monstruosidade equivalente a um homem sem nariz. As pessoas dizem sobre tal indivíduo, em sussurros quase febris, "Ele sabe o que quer", o que equivale exatamente a dizer, em idênticos sussurros, "Ele assoa o próprio nariz". A natureza humana simplesmente não pode subsistir sem algum tipo de esperança e propósito; como o juízo do Antigo Testamento diz, com razão: "quando não há ideal o povo perece". Mas é justamente porque o ideal é necessário ao homen, que o homem sem ideal está em permanente risco de cair no fanatismo. Não há nada [que] tenha mais probabilidade de deixar o homem aberto às incursões repentinas e irresistíveis de visões desequilibradas do que o cultivo de hábitos comerciais. Todos conhecem homens de negócio inflexíveis, que acreditam que a Terra é chata ou sabem que o Sr Kruger estava à frente de um grande despotismo militar, ou creem que os homens são herbívoros ou que Bacon escreveu as peças de Shakespeare. Crenças religiosas e filosóficas são, realmente, tão perigosas quanto fogo, e nada pode tirar-lhes a beleza do perigo. Mas há apenas uma forma de nos protegermos do perigo excessivo que oferecem; devemos imergir na filosofia e nos encharcar de religião.

Então, em poucas palavras, descartamos os perigos antagônicos da intolerância e do fanatismo; a intolerância que seria uma grande indefinição e o fanatismo que seria uma grande atenção. Declaramos que a cura para a intolerância é a crença; afirmamos que a solução para os idealistas são idéias. Conhecer as melhores teorias sobre a existência e escolher dentre elas a melhor (ou seja, escolher o melhor das próprias convicções) nos parece o modo apropriado para não nos tornarmos intolerantes ou fanáticos, mas para sermos algo mais firme que um intolerante e mais terrível que um fanático: uma pessoa de opinião definida. Mas a opinião definida deve, neste sentido, começar com as questões básicas do pensamento humano, e estas não devem ser descartadas como coisas irrelevantes, tal como acontece com a religião em nossos dias. Mesmo se pensarmos na religião como um problema insolúvel, não deveremos considerá-la irrelevante. Mesmo se não tivermos nenhuma opinião a respeito das verdades definitivas, deveremos sentir que onde quer que tal questão exista no homem, deve ser para esta pessoa algo mais importante que todas as demais coisas. No momento em que uma coisa deixa de ser incognoscível, passa a ser indispensável.

Não há dúvida de existir atualidade na idéia de algo limitado, irrelevante ou mesmo mesquinho no ataque à religião de outra pessoa, ou ao discutir política ou ética tomando por base outra pessoa, ou ao discutir política ou ética tomando por base a religião. Pode haver menos dúvida ainda de que a acusação dessa limitação é, em si, quase ridícula e limitada. Tomemos um exemplo de acontecimentos relativamente atuais: sabemos que não raro um homem era considerado um monstro de intolerância e obscurantismo caso suspeitasse dos japoneses serem pagãos. Ninguém pensaria existir nada de obsoleto ou fanático em desconfiar de um povo por conta das diferenças práticas ou nos mecanismos políticos. Ninguém pensaria ser intolerante dizer de um povo: "Receamos a influência deles, pois são protecionistas". Ninguém pensaria ser tacanho dizer: "Lamento que tenham progredido porque são socialistas, ou individualistas manchesterianos, ou ferrenhos defensores do militarismo e do serviço militar obrigatório". Importa a diferença de opinião sobre a natureza dos Parlamentos; mas a respeito da natureza do pecado não significa absolutamente nada. A diferença de opinião acerca do objeto dos impostos tem muita importância; mas diferir de opinião a respeito da finalidade da existência humana não tem nenhuma importância. Temos o direito de desconfiar de alguém que vive num tipo diferente de municipalidade; mas não temos o direito de suspeitar de um homem que vive num tipo diferente de cosmo. Este tipo de esclarecimento certamente tem relação com o tipo menos esclarecido que se possa imaginar. Para recorrer a uma frase que empreguei anteriormente, isso equivale a dizer que tudo tem importância, exceto tudo. A religião é exatamente o tipo de coisa que não pode ser deixada de fora - porque inclui tudo. A mais desatenta das pessoas não pode colocar tudo dentro de uma mala de mão e simplesmente esquecer a mala. Gostemos ou não, sempre temos uma idéia geral sobre a existência. E tal visão, gostemos ou não, altera, ou mais precisamente, cria e envolve tudo que dizemos ou fazemos. Caso consideremos o cosmo como um sonho, consideraremos a questão fiscal como um sonho. Caso consideremos o cosmo como uma piada, consideraremos a catedral de São Paulo como uma piada. Caso tudo seja ruim, então devemos acreditar (se isto for possível) que a cerveja é ruim; caso tudo seja bom, seremos forçados à conclusão um tanto fantástica de que a filantropia científica é boa. Todo homem comum deve defender um sistema metafísico, e crê-lo firmemente. A grande possibilidade é a de que possa ter acreditado nele tão tenazmente e por tanto tempo que o tenha esquecido por completo.

A referida situação, com certeza, é possível. De fato, é a situação de todo o mundo moderno. O mundo moderno está repleto de homens que creem em dogmas de modo tão inflexível que nem mesmo sabem que são dogmas. Pode ser dito até que o mundo moderno, como um corpo coletivo, crê em certos dogmas com tanto vigor que nem sabe que são dogmas. Pode ser considerado "dogmático", por exemplo, em certos círculos tidos como progressistas, supor a perfeição ou aprimoramento do homem num outro mundo. Mas não é considerado "dogmático" supor a perfeição ou aprimoramento do homem neste mundo; ainda que a idéia de progresso não esteja demonstrada tanto quanto não está a idéia de imortalidade e seja, do ponto de vista racionalista, muito improvável. O progresso é um de nossos dogmas, e um dogma é algo que não é tido como dogmático. Ou, novamente, não vemos nada de "dogmático" na inspiradora, embora demasiado assustadora, ciência física, que afirma devermos coletar os fatos pelos fatos, mesmo que pareçam tão inúteis como gravetos e fios de palha. Esta é uma grande e sugestiva idéia cuja utilidade pode ser provada, mas que, considerada em abstrato, é tão questionável quanto recorrer a oráculos ou a templos sagrados, que dizem ser capazes de se comprovar. Assim, por não estarmos numa civilização que acredita firmemente em oráculos ou locais sagrados, vemos o total furor daqueles que se mataram para descobrir o Santo Sepulcro. No entanto, por estarmos numa civilização que acredita no dogma dos fatos pelos fatos, não vemos o total frenesi daqueles que se matam para descobrir o polo Norte. Não me refiro a uma defensável utilidade suprema que é verdadeira tanto em relação às cruzadas quanto em relação às explorações polares. Digo apenas que vemos a singularidade estética e superficial, a qualidade assustadora da idéia de homens cruzando um continente com exércitos para conquistar um lugar onde um homem morreu. Contudo, não vemos a singularidade estética e assustadora de homens morrendo em agonia para descobrir um lugar onde ninguém vive - um lugar que é interessante apenas porque supõem ser o lugar de encontro de algumas linhas que não existem.

Empreendamos uma longa jornada e comecemos uma busca incômoda. Escavemos e procuremos até encontrarmos nossas próprias opiniões. Os dogmas que realmente defendemos são muito mais fantásticos e, talvez, muito mais belos do que pensamos. No curso destes ensaios, temo ter falado, de tempos em tempos, de racionalistas e de racionalismo de uma forma depreciativa. Por estar cheio daquela brandura que deve vir ao fim das coisas, até mesmo ao fim de um livro, peço desculpas aos racionalistas, exatamente por chamá-los de racionalistas. Não há racionalistas. Todos nós acreditamos em contos de fada e neles vivemos. Alguns, com um suntuoso viés literário, acreditam na existência de uma mulher vestida de sol. Outros, com um instinto mais rústico, mais élfico, (...) acreditam apenas no impossível sol propriamente dito. Alguns acreditam no indemonstrável dogma da existência de Deus; outros, no igualmente indemonstrável dogma da existência do homem da casa ao lado.

As verdades se transformam em dogmas no instante em que são contestadas. Assim, todo homem que expressa uma dúvida, descreve uma religião. E o ceticismo de nosso tempo realmente não destrói as crenças, ao contrário, as cria; definiu-lhes os limites e a forma simples e desafiante. Nós, que somos liberais, outrora acreditávamos no patriotismo, antes o considerávamos razoável, e pensávamos pouco a esse respeito. Agora que sabemos que é incompreensível, o consideramos correto. Nós, que somos cristãos, nunca nos daremos conta do grande senso comum filosófico inerente àquele mistério, até que os escritores anticristãos nos chamaram a atenção. A grande marcha da destruição mental continuará. Tudo será negado. Tudo se tornará um credo. É razoável negar a existência das pedras da rua; será um dogma religioso declará-lo. É uma tese racional dizer que vivemos num sonho; será sanidade mística dizer que estamos acordados. Velas serão acesas para atestar que dois mais dois são quatro. Espadas serão empunhadas para provar que as folhas são verdes no verão. Ficaremos a defender, não somente as virtudes e sanidades inacreditáveis da vida humana, mas algo mais inacreditável ainda, este imenso universo impossível que salta aos olhos. Seremos aqueles que olharão a grama e os céus impossíveis com estranha coragem. Seremos aqueles que viram e creram.

G.K. Chesterton, Hereges.

Dia de Sta Clara: Elogio da Pobreza


Ó bem-aventurada pobreza, que proporciona eternas riquezas a quem a ama e pratica! Ó santa pobreza! A quem a tem, o Senhor Deus oferece e promete formalmente o Reino celeste e a vida na bem-aventurança! Ó pobreza querida, que o Senhor se dignou preferir a tudo, Ele que por toda a eternidade reina sobre o céu e a terra, Ele que "disse e tudo foi feito"!

Que troca maravilhosa e admirável: deixar os bens terrenos pelos eternos, merecer estes abandonando aqueles, colher cem por um e possuir para sempre a felicidade!

Sta Clara de Assis, Primeira Carta a Inês de Praga

Agosto: Mês das Vocações


Como se sabe, Agosto é o mês das Vocações, e cá estou eu para tratar, novamente, deste assunto... eu que sequer resolvi a minha, rsrs... No problem.. Posso falar disso mesmo assim, pois definitivamente eu não passei ao largo da questão. Além disto, sei que há alguns que apreciam as minhas reflexões sobre alguns temas, pelo que me mantenho a escrever, muito embora este espaço tenha se tornado, já há algum tempo, mais um sítio de transcrições. Pois bem. O que ponho abaixo são somente alguns pensamentos sobre o assunto, já imensamente conhecido de muitos. Mas vamos lá...

É comum, ao tratarmos deste tema, começarmos pela etimologia do termo "vocação". Vem do latim "vocatio" ou "vocare", que significam "chamado" ou "chamar". Quer isto dizer que todos nós que viemos ao mundo temos um chamado em nós. Deus, ao nos criar, nos pôs uma aptidão para algo em específico. Este algo específico coincide com a nossa felicidade e a nossa plena abertura para Deus, de modo que, se não seguimos a vocação ou o chamado que recebemos, a nossa felicidade não será completa nem a nossa abertura a Deus se dará em toda a sua potência. Ora, quem não quer ser feliz? Quando, por exemplo, resistimos ao chamado que Deus nos faz e optamos pela nossa própria vontade, por que o fazemos? O fazemos por desconfiar do projeto divino e por crer, tolamente, que a nossa vontade imediata satisfeita é que nos proporcionará o gozo e alegria que esperamos. Ledo engano... Somente seremos felizes em Deus.. e enquanto não internalizarmos esta verdade, submetendo a ela todos os nossos caprichos, a nossa vida será um contínuo suceder de pontos de prazer egoísta e de rasgos de frustração.

O primeiro chamado, pois, que Deus nos faz é à felicidade, à realização do nosso ser. A vida humana tende a ser um constante cálculo sobre o que nos permitirá levar a termo este intento de alegria. Se viajamos, se optamos por um emprego, se casamos, se escrevemos poesia ou fazemos música, etc., geralmente o fazemos na esperança da felicidade. Claro que há os que trabalham por necessidade, mas estes estão coagidos; não têm a liberdade da opção. Se pudessem, obviamente escolheriam o que, dentro das suas expectativas, os fizesse feliz.

Pois bem. A felicidade plena se identifica com a plena posse de Deus. A felicidade é, pois, o fim. Convém, então, saber quais sejam os meios de a alcançar.

Se a felicidade está vinculada necessariamente a Deus, podemos concluir obviamente que não há felicidade sem Deus. Isso não chega sequer a ser uma conclusão; é a mesma idéia vista sob um aspecto diverso. Devemos entender, também, que a felicidade não se identifica com certas alegrias passageiras e momentâneas. Ela é, antes, um estado contínuo e uma resposta da alma. Não é algo, pois, que se deva agarrar de exterior, mas algo que surge na alma mesma, desde que esta esteja em pleno acordo com a verdade de seu próprio ser. Daí, logo se vê o quanto ela diverge dos pequenos prazeres egoístas que podemos obter no dia a dia, provocados por nós mesmos a partir da apropriação de qualquer coisa de exterior, e evanescentes tão logo surgem. Aliás, quando a alma lança mão de seu egoísmo a fim de obter prazer, não só ela não encontra a felicidade, como dela se afasta. Uma pessoa, então, cuja vida seja pautada por desejos interesseiros segue em contradição consigo mesma. Tanto sua liberdade quanto sua inteligência andam enevoadas e nada percebe além do apertado campo de soberba no qual opera.

A vocação, pois, sendo chamado de um Outro, tende primeiramente a nos libertar de nós mesmos. Tirando-nos da prisão do nosso egoísmo, nos põe em contato com a vastidão dos horizontes divinos. Sendo obediência à vontade deste Outro, mortifica a nossa soberba, nos abre a inteligência e nos cura a vontade. E, por ser este Outro o próprio Deus, a vocação nos é um farol divino que nos aponta a direção da verdadeira vida. Resistir, pois, à vocação é hesitar no caminho da verdadeira alegria.

Sendo a vocação um chamado, trata-se muito mais de descobrir qual seja do que de meramente escolher, como pensam alguns. Não se deve optar somente movido pela simpatia - embora a simpatia possa sim ser um sinal, mas não suficiente para uma decisão - nem muito menos fazer da vocação um mero meio de escape ou de refúgio dos próprios medos. A vocação é um ato de abandono e, portanto, deve ser assumida com coragem.

Devendo sua razão de ser ao amor de um Deus que "nos amou primeiro", a vocação deve respondida igualmente com um ato de amor. O amor tem algumas propriedades bem específicas: 1- ele submete amante a amado; 2- ele move o amante em direção ao amado; 3- ele transforma o amante no amado. No primeiro ponto, o amor nos pede abrir mão da nossa soberba, da nossa altivez, pelo que nos faz humildes. No segundo ponto, ele nos tira do nosso fechamento, da nossa afetada isenção e do nosso conforto e nos pede sair de nós mesmos, esquecendo-nos dos nossos próprios caprichos, pelo que nos faz maduros e corajosos e nos ensina que é por uma espécie de morte de nós próprios que poderemos encontrar a vida. No terceiro ponto, encontramos o Amado e  nos transformamos n'Ele.. Acontece que nesta transformação, o que se dá é a assunção do nosso verdadeiro eu, aquele que Deus criou e conhece; da nossa verdadeira identidade, o que equivale a dizer que só pelo amor a Deus teremos despertado das ilusões.

Porém, como se sabe, o ato do amor é sempre precedido pelo conhecimento, de modo que se quisermos amar a nossa vocação e corresponder ao projeto divino, precisamos ter uma certa intimidade com Deus, a fim de distinguir-Lhe a voz e compreender-Lhe a vontade. Se pretendemos, então, levar a sério a nossa vocação, não podemos nos distrair da religião. Muitos há que, em face das dificuldades que a vida coloca, resignam-se numa atitude passiva e simplesmente "esquecem". Atordoam-se com mil e um compromissos e com sucessivas paixões,  e o ruído do mundo abafa aquela voz suave. É preciso, ao contrário, estar junto d'Ele. Só então, é possível conhecer a Sua intimidade e algo do mistério que somos nós.

Se prosseguimos neste caminho, Deus irá nos amadurecendo gradativamente e estendendo a nossa visão sobre muitas coisas. Teremos dilatada a nossa capacidade de amar e de nos abandonar. Chegará, pois, um momento em que, mesmo sem esgotar este mistério, poderemos dar uma resposta consciente ao que, até agora, pareceu-nos ser a Sua voz. E damos! Este arriscar é próprio do amor... E é disto que surge a liberdade e o desprendimento de nós mesmos. Sem este desprendimento, não há vida espiritual. Isto equivale a dizer que os que fazem da vida espiritual uma contínua afirmação do próprio ego só vão se enganando e ainda não começaram nada.

Há vários tipos de vocação, e meu intuito não é tratar de cada uma em separado. Quero apenas frisar este aspecto: a multiplicidade de caminhos existe segundo uma unidade: a da abertura a Deus. Esta abertura se dá enquanto conscientização de uma fome visceral que temos de transcendência. Ter um senso agudo desta fome e atiçá-la é o propósito da vocação, pois é a partir disto que nós poderemos ter uma total abertura, docilidade e correspondência a Deus.

Alguns de nós teremos uma capacidade particular para esta abertura, e o conseguiremos a partir de uma consagração total da nossa afetividade a Deus. Seremos realizados nesta via mais verticalizada, e Nosso Senhor assumirá como que um papel de Esposo. Estas pessoas tenderão à vida religiosa ou sacerdotal. Se privarão da companhia de um cônjuge porque deverão viver de uma intimidade toda particular de Deus, abrasadas de amor por Ele. 

Outros, no entanto, alcançarão esta plena abertura a partir da relação afetiva íntima com outras pessoas. Quantos exemplos nós não vemos de sujeitos que aprendem a ser alguém quando assumiram a responsabilidade de ser um pai de família? O que acontece é que o amor pelo cônjuge e os filhos geralmente tende a forçar a pessoa para fora de si mesma, o que a amadurece sobremaneira. Neste caso, não se anula e nem se pretende anular aquela fome de que falamos, a fome de transcendência. O que se dá aí é que a companhia de outra pessoa torna-se necessária também para que, rompendo a camada egoísta, a pessoa se dê conta, enfim, deste seu vazio. A outra pessoa não servirá para satisfazer este desejo, pois ele é infinito. Se tal for a pretensão, o que se terá é somente frustração, pois ninguém pode concorrer com Deus. E a pessoa que tem esta sede imensa tampouco pode disfarçá-la, pois sendo a sede humana 'capaz' de Deus, é uma sede maior que a própria alma.

O modo de saciar esta sede: eis o que é a vocação. Caminho para o abraço divino. Enquanto, porém, não tomamos consciência de que é Deus que nós queremos, sairemos tentando freneticamente satisfazer esta sede com mil e uma distrações. Enquanto isso, Nosso Senhor estará a nos espreitar e esperar, sedento também ele de nós e de nosso amor, e nos dirá suavemente: "se soubesses quem é que te pede de beber, certamente tu Lhe pedirias e Ele te daria uma água viva e tu já não tornarias a ter sede".

Grandeza do Sacerdote: Respeito que lhe é devido


Hoje, sendo dia de S. João Maria Vianney, o Cura D'Ars, e também dia do Padre, nada melhor do que um texto deste Santo falando do Sacerdócio. Segue abaixo.

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Que coisa é o sacerdote? Um homem que ocupa o lugar de Deus, um homem que está revestido de todos os poderes de Deus. "Ide, diz Nosso Senhor ao sacerdote. Como meu Pai me enviou, eu vos envio... Todo poder me foi dado no céu e na terra. Ide, pois, instruí todas as nações... Quem vos escuta a mim escuta; quem vos despreza, a mim despreza."

Quando o sacerdote perdoa os pecados, não diz: "Deus vos perdoe". Diz: "Eu vos absolvo".

S. Bernardo assegura-nos que tudo nos veio por Maria; pode-se dizer também que tudo nos veio pelo sacerdote: sim, todas as venturas, todas as graças, todos os dons celestes.

Se nós não tivéssemos o sacramento da ordem, não teríamos Nosso Senhor. Quem foi que O pôs naquele tabernáculo? Foi o sacerdote. Quem foi que recebeu a vossa alma à entrada da vida? O sacerdote. Quem é que a alimenta para lhe dar a força de fazer a sua peregrinação? O sacerdote. Quem a preparará para comparecer perante Deus, lavando essa alma pela última vez no sangue de Jesus Cristo? O sacerdote, sempre o sacerdote. E se essa alma vier a morrer, quem a ressuscitará? Quem lhe restituirá a calma e a paz? Ainda o sacerdote. Não podeis recordar um só benefício de Deus, sem encontrardes, ao lado dessa recordação, a imagem do sacerdote.

Ide confessar-vos à SS. Virgem ou a um anjo: eles porventura vos absolverão? Não. Dar-vos-ão o corpo e o sangue de Nosso Senhor? Não. A SS. Virgem não pode fazer descer seu divino Filho à hóstia. Tivésseis duzentos anjos lá, que eles vos não poderiam absolver. Um sacerdote, por mais simples que seja, pode-o; pode dizer-vos: "Ide em paz; eu vos perdôo".

Oh! como o sacerdote é alguma coisa de grande!

Os outros benefícios de Deus de nada nos serviriam se não fosse o sacerdote. De que vos serviria uma casa cheia de ouro, se não tivésseis ninguém para vos abrir a porta? Sem o sacerdote, a morte e a paixão de Nosso Senhor de nada serviriam.

Depois de Deus, o sacerdote é tudo!... Deixai uma paróquia vinte anos sem padre, acabarão ali por adorar os animais.

Quando se quer destruir a religião, começa-se por atacar o padre, porque onde quer que não haja mais padre, não há mais sacrifício, não há mais religião.

S. João Maria Vianney, Pensamentos Escolhidos de Cura D'Ars

Amemos o bom Deus - S. Cura D'Ars



O homem criado por amor não pode viver sem amor: ou ama a Deus ou ama o mundo. Aquele que não ama a Deus apega o seu coração a coisas que passam como a fumaça.

Quanto mais conhecemos os homens, tanto menos os amamos. É o contrário relativamente a Deus: quanto mais o conhecemos, tanto mais o amamos. Esse conhecimento abrasa a alma de tão grande amor, que ela não pode mais amar nem desejar senão a Deus...

O amor de Deus é um antegozo do céu: se soubéssemos frui-lo, oh! como seríamos felizes! O que faz que sejamos infelizes é não amarmos a Deus.

Há pessoas que não amam o bom Deus, que não lhe rezam e que prosperam; é mau sinal! Têm feito um pouco de bem através de muito mal. O bom Deus recompensa-os nesta vida.

Cumpre fazer com os pastores nos campos durante o inverno: acendem fogo: mas de quando em quando correm a apanhar lenha de todos os lados para alimentá-lo. Se soubéssemos, como os pastores, alimentar sempre o fogo do amor de Deus no nosso coração mediante orações e boas obras, ele não se apagaria.

S. João Maria Vianney, Pensamentos Escolhidos do Cura D'Ars

Sta Teresinha fala sobre sua Primeira Comunhão


Raiou, enfim, o "mais belo de todos os dias". Quão inefáveis não são as recordações que na alma me deixaram as mínimas circunstâncias dessa data do Céu!... A alegre alvorada, os respeitosos e afetuosos ósculos das mestras e das colegas maiores... O salão nobre, repleto de tufos cor de neve, com os quais cada criança se via adornada por sua vez... Acima de tudo, a entrada na Capela e a entoação matinal do lindo cântico: "O Santo Altar, que de Anjos sois rodeado!"

Não quero, contudo, descer a pormenores. Coisas há que perdem a fragrância, quando expostas ao ar. Existem pensamentos da alma que não se podem traduzir em linguagem terrena, sem perderem o sentido autêntico e celestial. São como a "pedrinha branca que se dará ao vencedor, sobre a qual está escrito um nome, que ninguém CONHECE, senão QUEM a recebe. (Ap 2,17). Ah! como foi afetuoso o primeiro ósculo de Jesus à minha alma!...

Foi um ósculo de amor. Sentia-me amada, e de minha parte dizia: "Amo-vos, entrego-me a Vós para sempre". Não houve pedidos, nem porfias, nem sacrifícios. Desde muito, Jesus e a pobre Teresinha se tinham olhado e compreendido. Naquele dia, porém, já não era um olhar, era uma fusão. Já não eram dois, Teresa desvanecera, como a gota de água que se dilui no bojo do oceano. Ficava só Jesus, era Ele o Senhor, o Rei. Teresa pedira-lhe tirasse sua liberdade, pois sua liberdade lhe fazia medo. Sentia-se tão fraca, tão frágil, que desejava permanecer para sempre unida à Força Divina!... Sua alegria era grande demais, era profunda demais, para que a pudesse represar. Não tardou em debulhar-se em deliciosas lágrimas, com grande espanto das colegas que, mais tarde, diziam entre si: "Por que será que chorou? Sentiria algo que a acabrunhasse?... Não será, antes, por não ver junto a si a própria mãe ou a irmã, que é carmelita, a quem tanto ama?" - Não compreendiam que, ao descer a um coração toda a alegria do Céu, não a pode suportar um coração banido, sem derramar lágrimas... Oh! não! A ausência de Mamãe não me contristava no dia de minha Primeira Comunhão. Não estava o Céu dentro de mim, e nele não tinha Mamãe desde muito tomado lugar? Desta forma, quando recebi a visita de Jesus, recebi também a de minha querida Mãe, que me abençoava e se regozijava com minha felicidade...

Não chorava, outrossim, a ausência de Paulina. Sem dúvida alguma, ficaria contente, se a visse ao meu lado, mas desde muito meu sacrifício estava aceito. Nessa data, meu coração se encheu só de alegria. Uni-me a ela, que irrevogavelmente se dava Àquele que tão amorosamente se dava a mim!...

Sta Teresinha de Lisieux, História de Uma Alma

02 de Agosto - Dia de Indulgência Plenária


Pessoal, hoje, dia 02 de Agosto, todos nós podemos obter a grande graça da Indulgência Plenária, desde que observemos alguns requisitos.

Esta indulgência foi, primeiramente, conseguida por S. Francisco de Assis após um encontro místico com Jesus, no ano de 1216. Estando recolhido em oração na igreja de Santa Maria dos Anjos, S. Francisco obteve de Nosso Senhor uma celestial visita e a graça de lhe ser concedido o que desejasse. Ele pediu, então, que todos aqueles que entrassem naquela igrejinha da Porciúncula, em Assis, recebessem o perdão total de seus pecados, tanto das culpas quanto das penas. Jesus, após lhe dizer que aceitava seu pedido, mandou-o solicitar tal graça com o Santo Padre, na época o Papa Honório III.

Não obstante fosse um pedido incomum, o Santo Padre, adivinhando a sua natureza verdadeiramente sobrenatural, lho concedeu tal graça, e a estendeu para sempre. Esta graça foi, depois, concedida a todas as igrejas católicas do mundo, de modo que nós podemos obter o produto do pedido de Francisco na nossa própria paróquia.

Vamos, então, aos requisitos:

1- É preciso estar em Estado de Graça, isto é, estar sem NENHUM pecado mortal.
2- Visitar uma igreja católica.
3- Rezar o Credo, Um Pai Nosso e um Glória, suplicando a Indulgência.
4- Rezar um Pai Nosso, Uma Ave Maria e um Glória pelas intenções do Santo Padre.
5- Comungar
6- Ter uma total aversão ao pecado.

Lembramos que esta Indulgência pode ser aplicada também em favor de alguma alma do Purgatório ou pela conversão de terceiros.

Aproveitemos, pois.

A Mística de S. Bernardo de Claraval III


O amor

O amor é uma tendência muito natural da alma humana. Visto que tudo quanto compõe a nossa natureza depende imediatamente de Deus, é dever da alma voltar-se amorosamente para Ele como seu objeto e fim primeiro e natural. Justifica-se esta assertiva pela enumeração sumária dos motivos que impõem a todo homem, inclusive ao gentio, a obrigação de amar a Deus: todos os homens devem-Lhe a existência, os bens corporais, tais como o ar, o alimento, a luz, etc., os bens espirituais, tais como a razão que nos distancia do animal e, mormente, a "dignitas" humana por excelência: o livre arbítrio.

I Aberrações do amor

A despeito de tudo isso, o homem falhou ao seu dever de amar a Deus. Foi preciso que se lhe impusesse em forma de mandamento aquilo que de per si é reto e natural, a fim de forçá-lo a esse amor natural, que é o amor a Deus sem limites nem medida. Nessas condições o amor tem de, forçosamente, evoluir, passando por várias fases sucessivas de aperfeiçoamento.

1. O amor próprio ou carnal como imposição da natureza

O primeiro grau do amor, no estado presente, é o amor a nós mesmos. Este amor, como se insinua em S. Paulo, precede todas as demais modalidades de amor: "mas não é o espiritual que vem primeiro, e si o animal; o espiritual vem depois" (I Cor 15,46).

Essa prioridade do amor próprio ou "amor carnal" deve entender-se como uma necessidade decorrente da própria natureza humana. Pois o homem não é puro espírito, mas um ser composto de corpo e alma. O termo "carnal" significa precisamente a parte animal ou corpórea da natureza do homem, pela qual este é obrigado a satisfazer em primeira linha as necessidades do corpo. E estas necessidades, como sabemos por experiência, manifestam-se de maneiras mui diversas: "Quem ignora que a necessidade do homem é realmente tão diversa? Quem será capaz de explicar esta diversidade? O sabemos pela própria experiência que no-lo dá a conhecer seu próprio tormento."

2. O amor de concupiscência

Embora o amor próprio, enquanto exigência necessária da natureza, não seja pecaminoso, ele não deixa, contudo, de constituir um mal, em vista de sua depravação pelo pecado original. Longe de ser uma necessidade importuna, o amor carnal degenera em concupiscência, e como tal nos atrai e solicita. A concupiscência é o amor próprio a extravagar dos limites da necessidade.

Ao passo que a necessidade concerne principalmente ao corpo, a concupiscência nasce do coração; donde a violência e a multiplicidade das suas manifestações. O coração humano ama as coisas terrenas por crer encontrar nelas a sua felicidade. Entretanto, tais coisas externas não só não conseguem satisfazê-lo, senão que, ao contrário, o tornam infeliz: "A necessidade nasce na debilidade do corpo; o desejo provém do vazio e olvido do coração. Por isso mesmo mendiga a alma o estranho, porque se esqueceu de comer seu pão; por isso anela as realidades terrenas, porque não pensa nas celestiais". Destarte a primeira forma do amor se perverte pela concupiscência. O elemento animal sobrepuja o elemento espiritual, não só por causa da corporeidade característica do ser humano, mas por causa da corrupção de sua natureza pelo pecado; e esta corrupção é o que transforma a "anima recta" em "anima curva".

3. Vontade própria e vontade comum.

Para facilitar a compreensão desta "curvatura", Bernardo distingue um duplo movimento na vontade ou no amor: um movimento egoístico ("vontade própria") e um movimento desinteressado ("vontade comum"). Entre estas duas vontades existe uma oposição diametral. A vontade desinteressada ou comum constitui a caridade.

E assim chegamos ao termo da nossa descrição da deturpação do estado original do homem. Ao passo que a caridade ou vontade desinteressada inclina o homem a partilhar seus bens com outros, a vontade própria ou concupiscência nada quer compartilhar, quer com Deus, quer com o próximo, mas deseja reter tudo para si. É uma enfermidade fatal da alma. Por causa de sua oposição direta coma caridade, e por tanto com Deus, que é a caridade em pessoa, a vontade própria se vê em estado de guerra contra Deus: "Escutem e tremam os escravos da vontade própria com que fúria atacam ao Senhor da Majestade. Em primeiro lugar se fazem independentes e ao declararem-se autônomas se subtraem daquele a quem devem servir como Criador seu. Mas não se contentam com isso. Em quanto delas depende, se apropriam e saqueiam tudo o que é de Deus. A ambição humana não aceita fronteiras... (segue-se uma comparação com a cobiça). Digamo-lo abertamente: ao que se deixa levar pela vontade própria, não lhe basta o mundo inteiro. Se ao menos ficasse satisfeito com todas estas coisas, e não se enfurecesse - causa horror dizê-lo - contra o mesmo Criador! Desejaria que Deus fosse incapaz de castigar seus pecados, ou melhor que não quisesse fazê-lo ou que os desconhecesse. Quer dizer, que em vez de ser Deus, fosse impotente, injusto e ignorante. A maldade mais cruel e detestável lhes é intentar destruir o poder, a justiça e a sabedoria de Deus. É uma besta cruel, uma fera sem entranhas, uma loba sanguinária, uma leoa implacável. É a lepra horrorosa da alma."

II. A Cura do Amor

O desamparo em que se encontra o homem na "regio dissimilitudinis" não é motivo para desespero, dada a indestrutibilidade da imagem de Deus na alma. A graça, a fé e o arrependimento sincero tornam possível a reconquista do amor e a restauração da divina semelhança. E uma vez restabelecida a caridade, a vontade própria cede lugar ao amor desinteressado. Com o amor de Deus, a alma recupera sua verdadeira vida, a vida divina, pois Deus é amor. E este amor atinge o seu ponto culminante nas núpcias espirituais da alma com o Verbo.

O passo inicial no caminho do retorno a este amor perfeito é a humildade. Esta pode definir-se como a virtude pela qual o homem adquire um conhecimento verdadeiro de si mesmo e de sua própria miséria. A humildade é, ao mesmo tempo, o primeiro grau da verdade, e esta nos reconduz à caridade em três graus sucessivos:

* O primeiro grau da verdade é, como vimos, o reconhecimento da nossa própria miséria.

* O segundo grau é a caridade; pois o conhecimento próprio desperta um sentimento de compaixão sincera para com a miséria dos nossos semelhantes; de sorte que o amor social e as obras de caridade têm sua raiz na humildade.

* O terceiro grau é atingido quando o homem, plenamente purificado, volve a sua atenção para a contemplação das coisas invisíveis.

De modo semelhante, e ainda a partir da consideração da própria miséria, podemos distinguir quatro graus de amor:

* Primeiro grau: o homem ama-se a si mesmo sob o império da necessidade; este é o "amor carnal".

* Segundo grau: o homem reconhece sua miséria e se dá conta da precisão que tem de Deus; e assim dá o primeiro passo no amor de Deus, embora ainda não O ame por Ele mesmo, mas em atenção ao seu próprio interesse.

* Terceiro grau: graças a um conhecimento sempre mais perfeito de Deus e a uma crescente intimidade com Ele, o homem começa a amá-Lo por Ele mesmo, mas também em vista de seu próprio bem, por haver experimentado em si próprio a doçura do seu Deus. Este estágio sói ser o mais longo de todos, e é provável que o homem jamais consiga ultrapassá-lo na vida presente.

Quarto grau: o homem ama-se a si mesmo única e exclusivamente por causa de Deus. Nesse grau supremo do amor o homem atinge a sua perfeição. A necessidade e a concupiscência se desvanecem. Contudo, nem mesmo esse amor supremo exclui o amor próprio, pelo menos em sua forma totalmente purificada pelo amor a Deus. Numa palavra: o homem torna a ser uma perfeita semelhança de Deus, e essa assemelhação ou deificação faz com que ele se ame a si mesmo enquanto semelhança de Deus. O amor a Deus e o amor à sua semelhança, que é o homem, vêm a ser uma só e mesma coisa.

BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
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