Tradutor / Translator


English French German Spain Italian Dutch Russian Portuguese Japanese Korean Arabic Chinese Simplified

A imortalidade como premissa do método filosófico


Olavo de Carvalho

Se somos imortais, temos de sê-lo em essência e não por acidente. A imortalidade é então a nossa verdadeira condição e o plano de realidade no qual efetivamente existimos. Nesse caso, a presente vida corporal não é senão uma fração diminuta da nossa realidade, uma aparência momentânea que encobre a nossa verdadeira substância. Em consequência, todo o conhecimento que podemos adquirir dentro dos limites da existência corporal é apenas uma aparência dentro de uma aparência. Ainda que apreenda porções genuínas da realidade, não pode ter em si seu próprio fundamento, mas tem de buscá-lo na esfera da imortalidade.

Tudo isso é bem claro. O que confunde as coisas é que o termo "imortalidade", na presente cultura, adquiriu a conotação de algo que só se manifesta - se existe - depois da morte física. Esconde-se aí uma sugestão inteiramente absurda: somos mortais em vida, mas "tornamo-nos" imortais após a morte, como se a morte fosse a passagem a um estado de existência radicalmente separado, heterogêneo e incomunicável com a vida presente. É nesse pressuposto que repousa toda a esperança de um conhecimento puramente imanente, sem referências ao "além". Se a imortalidade existe, essa esperança é tão absurda quanto o pressuposto que a sustenta. Se temos uma vida que transcende toda duração, essa vida transcende, e portanto abrange, em vez de excluir, a sua fatia imersa em duração. Se somos imortais, temos de sê-lo agora, desde a vida presente, em vez de sermos, por assim dizer, imortalizados pela morte. A morte não pode imortalizar o mortal: só pode tornar manifesta a imortalidade preexistente e impugnar, no mesmo ato, a ilusão da mortalidade.

Mas, se já somos imortais nesta vida, é claro que não podemos conhecer adequadamente esta última senão à luz da imortalidade: o conhecimento mortal da vida mortal é o conhecimento ilusório de uma ilusão.

O esclarecimento da imortalidade torna-se assim uma exigência primeira do método filosófico: ou demonstramos que a imortalidade não existe ou, caso a aceitemos ao menos como hipótese, temos de fundar nela toda a possibilidade de um conhecimento efetivo da realidade.

Demonstrar que a imortalidade existe pode ser difícil, mas provar que ela não existe é impossível: todas as provas estariam limitadas ao acessível na vida presente, em nada debilitando a possibilidade de que haja algo para além dela. Já as provas da imortalidade nada perdem com essa limitação, de vez que a vida presente está dentro da vida imortal e o que se sabe de uma pode revelar algo da outra.

As provas, no entanto, de nada servem se, uma vez obtidas, não modificam em nada o hábito reflexo de raciocinar a partir da vida presente como se esta fosse um todo fechado e auto-suficiente - hábito que tanto pode fundar-se na negação quanto na afirmação da imortalidade.

A própria busca de provas cientificamente válidas, obrigantes, portanto, para toda a comunidade dos estudiosos, já tende a fazer da existência presente a medida da vida imortal, já que, na escala desta última, a autoridade humana da comunidade científica não conta para absolutamente nada.

De um lado, a prova científica da imortalidade não dá a ninguém, por si, uma consciência de imortalidade pessoal e muito menos a força para operar a passagem de nível desde uma cognição baseada na experiência temporal a outra fundada no senso de imortalidade.

De outro lado, quem quer que tenha operado esta passagem não precisa de provas científicas daquilo que lhe foi dado em experiência pessoal direta. Pode usar essas provas como meios pedagógicos para estimular os outros a buscar experiência idêntica, ou para tapar a boca de adversários da imortalidade, mas esses dois objetivos são menores e secundários em comparação com a experiência em si.

A expressão "experiência da imortalidade" é, decerto, metonímica. Designa o objeto da experiência por uma de suas partes, subentendendo que esta requer incontornavelmente a existência do todo. Deve-se falar de experiências de cognição extracorpórea, ou mais propriamente supracorpórea, estando aí implícito que, se a consciência opera fora e acima do corpo, não tem por que morrer quando ele morre.

Essas experiências não são necessariamente "paranormais". Qualquer um pode ter acesso a elas, contanto que se prepare para isso mediante uma série adequada de meditações. Em geral não se trata de perceber objetos à distância, ou futuros, mas de tomar consciência daquilo que, na percepção comum e corrente, já é supracorpóreo embora não seja percebido habitualmente como tal. Tão logo você assuma consciência dos elementos supracorpóreos que perpassam e fundamentam a percepção corporal, sua noção de "eu" vai modificar-se automaticamente. Quando digo "assumir consciência"quero dizer que há aí algo mais que um simples ato de percepção isolado ou mesmo repetido. "Assumir consciência" é algo mais que "tomar consciência": implica um ato de responsabilidade intelectual e moral pelo qual você se compromete intimamente a não permitir que a porta aberta para a consciência de extracorporeidade se feche e o conteúdo aí assimilado se dilua no fluxo de impressões corporais até ser esquecido ou ao menos perder toda força estruturante sobre a sua vivência de "eu".

Olavo de Carvalho, A Filosofia e o seu inverso.  São Paulo: Vide Editorial, 2012. p.105-108.

Quaresma - Eis o tempo de Conversão


Iniciamos o tempo da Quaresma onde, mais do que relembrar, vivenciamos a experiência que o Cristo fez antes de iniciar a Sua vida pública. No nosso caso, o fazemos como preparação para a Páscoa. Costumamos dizer que ressuscitaremos com o Cristo. Mas, para tal, temos de, desde já, sofrer com Ele. Um dos pontos essenciais da Quaresma é, então, unir-mo-nos a Cristo, fazer-Lhe companhia e, a partir da Sua proximidade, nos tornarmos Ele mesmo. No oriente, se fala de processo de deificação, isto é, de transformar-se em Deus. Esta idéia, além de não ter nada de herética, é acompanhada de perto pelos místicos ocidentais, como São João da Cruz, por exemplo, para o qual o cristão deve tornar-se deus por participação. 

Para que isto possa ser alcançado, o homem precisa primeiramente conscientizar-se de que há, no seu ser atual, uma série de inclinações que o rebelam contra Deus, isto é, que fazem guerra a este ideal da deificação. Decorre disso a necessidade de que ele trave uma luta consigo mesmo. Esta luta é simbolizada pelo ambiente árido do deserto, onde as inclinações sensíveis do homem não encontram fácil satisfação. O deserto, assim, é visto como um lugar essencialmente penitencial.

Além disso, o deserto também é visto, na tradição cristã, como a morada dos demônios. Quando adentramos na sobriedade do deserto interior, os nossos demônios surgem com mais força. E é nesta ocasião que teremos a oportunidade de vencê-los. A partir do que já foi dito, o deserto se converte em ambiente de comunhão com Deus, de Sua imitação, e também de luta contra os demônios e nossas inclinações ruins. Poderíamos, talvez, concluir disto que Deus está na luta contra nós mesmos.

Toda esta realidade é sobretudo interior, e é necessário que seja assim, pois como o próprio Senhor nos diz, é do coração do homem que surge o bem ou o mal. Cumpre, portanto, cuidar da fonte para que os seus veios, que são as ações, estejam de fato limpos da vaidade e saciem os que deles beberem. Sabendo, contudo, que ninguém é bom senão Deus, a bondade humana não tem alternativa a não ser ser participada. A quaresma, então, não teria qualquer sentido se não fosse um tempo em que o homem se aproxima de Deus. Não obstante isso possa parecer óbvio, é muito comum que passemos este tempo distraídos do essencial.

Uma pessoa em pecado mortal, por exemplo, o que pode fazer de mais importante senão preparar-se para a confissão e pedir a Deus a graça de uma contrição perfeita? De que adianta mortificar-se se tudo isto apenas serve de ocasião para provarmos aos outros a nossa devoção ou, mais comum, provar para nós mesmos o quanto somos bons? Do que adianta realizar trabalhos sociais se não optamos por uma conversão sincera e profunda da nossa vida? Do que adianta não comer carne nas sextas, ou até fazer jejuns, se não nos decidimos por uma mudança real de vida?

Uma vez que o nosso íntimo adquire as devidas disposições, que são um conhecimento correto sobre nós mesmos e a nossa pequenez, a consciência nossa estrita necessidade de Deus para qualquer bem, a pureza de intenção, o estado de graça, o desapego de nós mesmos e do apreço dos demais, e o desejo de agradar a Deus sobre todas as coisas, então se difundirão de nós, como algo natural, as obras de caridade, assim como do fogo procede naturalmente o calor. Do Cristo é dito que passou pela terra a fazer o bem. Isto ocorre porque o bem é naturalmente difusivo, isto é, espalhar-se e comunicar-se é-lhe uma operação intrínseca. Como não temos, no entanto, a perfeição do Cristo, as obras de caridade convertem-se não somente em expressão da bondade que nos vai n'alma, mas tornam-se, também e principalmente, meios para a obtenção desta bondade. São exercícios para a perfeição, mais do que produtos dela.

Estas obras, porém, pressupõem a fonte da qual procedem: a alma. A fim de que aquelas sejam puras e possam produzir efeitos benéficos na própria pessoa que as faz, é preciso que esta esteja em graça, isto é, esteja num estado de amizade com Deus. Esta amizade deverá ser cultivada na própria alma. Daí a necessidade de uma atividade de convívio entre a alma e Deus, que é a oração. Esta se divide, como se sabe, em oração litúrgica - que é a que fazemos com os outros cristãos reunidos na igreja - e oração pessoal - que é recomendada por Jesus a fim de que só o Pai a conheça. A primeira nos faz lembrar que somos todos irmãos e membros do corpo de Cristo, e tende a nos livrar do egoísmo, individualismo e auto-suficiência; a segunda, impede-nos de cair no erro do coletivismo e faz-nos atentar que, embora o individualismo seja um erro, somos seres absolutamente únicos e individuais, e tal é também o nosso chamado e a nossa vocação. Deus nos chama pelo nome, e o nome é uma indicação da nossa individualidade.

Outros erros que devem ser evitados são o rubricismo, que é o ato de fazer exercícios religiosos como se fossem um fim em si mesmos; e o pelagianismo, que é o esvaziamento da religião de todo o seu caráter sobrenatural e a sua redução ao fator puramente social e moral. Estes erros são muitíssimo comuns.

A quaresma deverá ser sobretudo espiritual. E para isso, é essencial a vivência dos Sacramentos da Eucaristia e a da Confissão. Muito útil são, também, as leituras devotas. Depois, as mortificações, os jejuns, a meditação da Paixão, a prática da Presença de Deus, a intimidade com a Virgem Maria, etc. Aproveitemos que este tempo é de particular proximidade de Deus. É o tempo em que, nos conduzindo ao deserto, Ele nos falará ao coração e nos desposará consigo.

Peçamos, então, a Deus que nos permita viver uma Quaresma em verdadeira intimidade com Ele. Que tenhamos a coragem de lutar contra nós mesmos e os nossos demônios. Que procuremos vencer o nosso orgulho e nosso egoísmo e lembrar dos nossos irmãos que de algum modo precisam de nós. Que Ele nos conceda sempre um maior conhecimento de nós mesmos e a guarda da Graça em nossa alma. Dê-nos Ele um coração contrito e com retas intenções. E nos livre dos erros que se disfarçam de virtude. Que, enfim, vivendo uma santa e sóbria quaresma, possamos, no final, participar da Sua páscoa e felicidade.

Que a Virgem nos conduza.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...