I - O homem como imagem e semelhança de Deus
1. A Imagem de Deus
Diz a Escritura que o homem foi criado conforme a imagem de Deus. Por conseguinte, ele não é a imagem de Deus em sentido estrito, visto haver apenas uma imagem de Deus, a saber, o Verbo. O homem é a imagem desta imagem de Deus.
Que significa "ser imagem de Deus"? Em primeiro lugar, a expressão denota a extraordinária dignidade da condição humana, e sua aptidão para participar na glória de Deus. Na verdade, o homem possui uma "anima magna", uma grande alma. Essa dignidade, recebida no ato da criação, é inseparável da alma humana; todavia, ela apenas informa a alma, sem identificar-se com esta. Não obstante isso, a alma não pode perder esta forma sem cessar de ser o que é.
2. A semelhança de Deus
Além desta aptidão para participar da glória de Deus, a alma traz em si uma aspiração concriada para os bens superiores: ela é "appetens supernorum". Sob este ponto de vista ela é uma semelhança ("similitudo") de Deus.
Esta aspiração fundamenta a retidão sobrenatural da alma. Assim como sua grandeza deriva da aptidão de participar da vida divina, sua retidão provém do desejo de participar desta vida de Deus. Como a grandeza, assim a retidão é algo distinto da alma; além disso, a grandeza difere da retidão, visto que esta é separável da alma, e aquela não. Priva-se da retidão todo aquele que perde o amor e o desejo dos bens superiores.
Desta dupla semelhança depende, pois, a integridade e a perfeição do ser humano: sem a imagem o homem cessa de ser homem, e sem a semelhança ele se desfigura ou deforma. Por isso o homem se humaniza na mesma medida em que cresce na semelhança com Deus. Nisto está toda a sua grandeza.
II- Perda e recuperação da semelhança divina.
1. A dessemelhança
Desgraçadamente, o homem distanciou-se livre e conscientemente das coisas do céu, preferindo-lhes os bens da terra. Antepondo seus próprios interesses aos de Deus, e recurvando-se sobre si mesma, sua alma transformou-se de "anima recta" em "anima curva".
É verdade que mesmo neste estado a alma retém sua semelhança com Deus, graças à sua grandeza; mas desassemelha-se de Deus em consequência daquela "curvatura". Pela mesma razão ela se desassemelha de si mesma. Pois uma vez perdida a semelhança com o modelo original, a imagem deixa, pelo mesmo fato, de assemelhar-se a si mesma. Todavia, a alma conserva a consciência de sua grandeza: sabe-se ao menos parcialmente semelhante a Deus, e por conseguinte à sua própria natureza, pois sua capacidade para o divino permanece. Ao mesmo tempo, porém, ela se dá conta de haver sido infiel à sua própria natureza. Este estado anormal dá origem a um penoso sentimento de desequilíbrio interior em que a alma, com saber-se de certo modo semelhante a si, sente-se contudo dessemelhante de si mesma. Donde o horror que tem de si própria.
2. A possibilidade do retorno
A possibilidade do retorno é assegurada pela indestrutibilidade da imagem de Deus no homem, ou, em outros termos, por sua receptividade incoercível para o divino.
Como vimos, "ser imagem de Deus" equivale a "ser capaz de Deus". Por isso a imagem de Deus impressa no homem forma o ponto de partida da mística cisterciense, que outra coisa não é do que a teoria e a prática daquilo que se exige do homem que aspira a restaurar do modo mais perfeito possível a semelhança divina em sua alma, até atingir ao "amplexus Verbi", que é o grau mais elevado deste processo de assimilação à Divindade.
Em vista desse ideal, é mister que o homem arrepie caminho, extirpando de sua alma, pela graça e pela prática da humildade e da caridade, as causas da dessemelhança com Deus. Pela renúncia ao pecado, pelo restabelecimento de sua condição original e pela reorientação espontânea e amorosa para as coisas de Deus, a alma se dispõe para a união extática ao divino esposo. A alma torna a ver-se tal qual fora na aurora da criação: como semelhança pura de Deus; e nesta visão interior de si mesma ela vê a Deus assim como é vista por Ele, e O ama assim como é amada por Ele. Neste conhecimento e amor recíprocos entre esposo e esposa consiste o êxtase místico. Este, por sua vez, não é senão um antegosto da visão beatífica, onde a semelhança perfeita com Deus permitirá uma união definitiva, embora sem confusão de substâncias.
Não cabe aqui uma análise pormenorizada desta sublime mística cisterciense. suas idéias principais podem resumir-se no seguinte: a alma é criada segundo a imagem de Deus; ela é grande por ser capaz de Deus e é reta enquanto aspira às coisas de Deus. A alma que perde este desejo e tende às coisas da terra se "recurva"; mas, graças à sua grandeza nativa, ela retém a possibilidade de retornar a Deus.
BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
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