II. A Liberdade
Dentro dos moldes de sua antropologia S. Bernardo elaborou uma psicologia da vontade, que merece uma exposição à parte. Não é possível isolar esta doutrina do seu contexto místico sem lhe fazer certa violência. Contudo, enquanto não perdermos de vista esta circunstância, poderemos não só expô-la sem receio de desfigurá-la, como também auferir grande proveito das novas perspectivas que nela se abrem para o campo filosófico.
1. O livre arbítrio
O homem foi criado para participar da felicidade de Deus. Para ser feliz é mister que se possa gozar o bem desejado; e para atingi-lo requer-se um ato de assentimento ou afirmação. Ora, o poder de assentir implica a liberdade. Por isso o homem foi dotado de uma vontade livre, a que cabe decidir de sua salvação ou perdição eterna. Como vimos acima, o que o capacita a participar de Deus é precisamente esta sua vontade livre; pelo que a liberdade constitui a essência mesma da imagem de Deus no homem.
Ao passo que Agostinho repõe a imagem de Deus preferentemente no espírito do homem, com suas potências e relações mútuas, S. Bernardo propende mais para a opinião dos Padres gregos, vinculando a idéia da imagem com a da liberdade.
O livre arbítrio é uma estrutura complexa que, além dos fatores "livre" e "arbítrio", contém dois outros aspectos, relacionados a outras potências da alma.
a) O fator "livre"
A vontade consiste essencialmente no poder de consentir ou dissentir. Onde há vontade, ali há liberdade: liberdade da necessidade ("libertas a necessitate") ou, em vista da incompatibilidade entre liberdade e constrangimento, liberdade da coação ("libertas a coactione").
A liberdade da necessidade e da coação é um privilégio inseparável da vontade; encontra-se da mesma maneira em todos os seres dotados de vontade: nos homens, nos anjos, em Deus; possuem-na, igualmente, os santos e os pecadores. Nem mesmo o pecado, pois, é capaz de anulá-la. Por este motivo, o próprio pecador continua a ser uma imagem de Deus.
b) O fator "arbítrio"
O segundo fator constitutivo do livre arbítrio é uma energia espiritual. O "arbítrio" envolve conhecimento e julgamento. A vontade é apta a julgar seus próprios atos, isto é, a decidir de sua bondade ou malícia.
Por isso o livro arbítrio não é apenas autodeterminação livre, mas também autojulgamento, dado que o ato volitivo, enquanto ato de um ser racional, vem sempre acompanhado de um ato cognoscitivo. Este poder de autojulgamento inere ao próprio livre arbítrio, e por isso é inamissível.
c) A "libertas consilii et complaciti"
O livre arbítrio, e portanto, a liberdade da necessidade e da coação estão sempre presentes onde quer que haja uma vontade que se julgue a si mesma; entretanto, há duas outras liberdades que, embora devessem acompanhar o livre arbítrio, são contudo facilmente amissíveis. Pois nem sempre tomamos a reta decisão, e nem sempre nos regozijamos no que é objetivamente reto.
Como se vê, a estrutura do ato volitivo é bem mais complexa do que poderia parecer à primeira vista. A decisão da vontade é precedida de uma espécie de reflexão sobre se algo deve ser feito ou não, bem como de um ato de agrado ou desagrado. Aquela consiste na ponderação dos motivos, e este é o efeito da atração ou da repulsa que os motivos exercem sobre o sujeito; a decisão final, por sua vez, procede de um ato livre da vontade. A ponderação dos motivos chama-se "consilium", e "complacitum" o ser-solicitado pelos mesmos motivos. Em poucas palavras: o "consilium" tem a função de oferecer ao livre arbítrio os objetos; estes são aceitos ou rejeitados pelo "complacitum", que lhes avalia o valor subjetivo; ao livre arbítrio, enfim, compete tomar a decisão definitiva.
O livre arbítrio é simplesmente inamissível; a "libertas complaciti", ao contrário, pode perder-se, o que infelizmente acontece com frequência. Enquanto o livre arbítrio é um poder de decisão e auto-determinação, a "libertas consilii" é a aptidão de bem avaliar os valores em vista da ação, e portanto, de os libertar do pecado; a "libertas complaciti" é o poder da complacência imperturbada nos referidos valores, pela qual nos libertamos da miséria.
2. Liberdade e Servidão
O homem é imagem de Deus pelo "liberum arbitrium", e semelhança de Deus pelo "liberum consilium" e o "liberum complacitum"; esta pode ser perdida, aquela não. Só a posse de todas estas liberdades, porém, o torna verdadeira e perfeitamente livre. A perda do "liberum consilium" e do "liberum complacitum", ocasionada pelo pecado original, reduziu o homem à condição de escravo.
Mas como pôde ele perder aquelas liberdades? A princípio, o homem era naturalmente livre de toda coação, e sobrenaturalmente isento do pecado e da miséria. Mas, infelizmente, ele abusou de sua liberdade. Tal abuso foi possível porque as duas formas superiores da liberdade - em oposição à liberdade fundamental do livre arbítrio - são passíveis de certa gradação. Com efeito, cada espécie de liberdade admite pelo menos dois graus. Assim, a "libertas consilii", que consiste na reta avaliação das coisas, e portanto, na liberdade do pecado, pode significar: a) a impecabilidade ("non posse peccare"), que é própria de Deus, dos anjos e dos bem-aventurados, e b) o poder de não pecar ("posse non peccare"), e este é o grau inferior da "libertas consilii". Semelhantemente, a "libertas complaciti" comporta um grau superior: o não-poder-sofrer ("non posse turbari"), e um grau inferior: o poder-não-sofrer ("posse non turbari"). Ainda que o homem só possua o grau menos perfeito dessas liberdades, a sua posse lhe assegura uma posição privilegiada entre a totalidade dos seres vivos. Graças à sua vontade livre, ele é o único ser capaz de alcançar uma genuína vitória, pois a liberdade não lhe foi dada para pecar, mas para triunfar do pecado.
Todavia, em consequência do abuso da liberdade, o homem perdeu a liberdade do pecado e da miséria; o poder de não pecar e não sofrer transformou-se na impossibilidade de não pecar e não sofrer. Só lhe fica o poder de livre decisão. Donde a sua condição de escravo do pecado e devedor da morte.
Pela queda, o livre arbítrio se vê na presença de uma razão em desacordo com a vontade, e de uma vontade em desacordo com a razão. Despojado da semelhança com Deus, fonte da sua dignidade sobrenatural, e descaído de sua antiga nobreza, o homem terminou por condenar-se ao exílio e à solidão da "regio dissimilitudinis".
a) O descaimento do estado original
Essa deformação é um efeito da perda do poder de reta avaliação e da reta complacência nas coisas. A perda da reta complacência conduz à deformação do amor e da vontade, que de "vontade comum" se desfigura em "vontade própria"; o poder da justa avaliação, por sua vez, é suplantado pelo "proprium consilium".
A vontade própria ou egoísta é um dos piores flagelos da alma. Mais pernicioso, por mais espiritual, é o "proprium consilium", isto é, a teimosia e obstinação na avaliação das coisas. Por causa de sua natureza oculta, ele deve ser considerado como o mais nocivo de todos os males da alma. Corrompe-a na mesma medida em que a domina. O "proprium consilium" reina nos corações daqueles que, embora zelosos pela causa de Deus, carecem de conhecimento (como diz S. Paulo), e se obstinam em seguir seus próprios erros, rejeitando toda instrução. Têm-se em conta de grandes e, desconhecendo a justiça de Deus, preferem confiar na própria justiça. Na verdade, é grande a presunção daquele que prefere seu próprio julgamento ao da comunidade inteira! Em suma, o "proprium consilium" não passa de uma espécie de idolatria mal disfarçada.
b) A cura da vontade
A cura da vontade pressupõe, necessariamente, a restauração daquelas duas liberdades. Embora fundamentalmente possível, graças ao livre arbítrio, tal restauração é inexequível pelo só esforço humano.
O primeiro passo para o restabelecimento das referidas liberdades é a erradicação da vontade própria; tal renúncia, por sua vez, pressupõe que a intenção ("intentio") volte a orientar-se pelo amor. Esta reorientação, enfim, pressupõe a cura da perversão capital que é o "proprium consilium". A emenda da intenção requer que se submeta o próprio julgamento à verdade, pois ao saneamento da vontade deve preceder a cura da cegueira do entendimento. É mister que a vista interior volte a ser lúcida, simples e verdadeira; o que só é possível pela fé.
BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
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