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"De amor está se abrasando o que nasceu tiritando"


Nos dias que correm, temos o péssimo hábito de reduzir o existente ao percebido. Isso decorre de certas filosofias modernas que não convém trazer, aqui, à tona. Contudo, embora o homem comum, não versado nesses assuntos, tenda a concordar com a idéia, ela não resiste a um exame mais detido. Quando uma pessoa diz, por exemplo, que não acredita em Ets porque nunca os viu, ela está usando um argumento que, se levado a sério, a faria descrer de Deus. E, no mais comum das vezes, a pessoa que faz esses juízos é teísta.

Essas teorias, ainda quando não venham à margem da consciência, costumam influenciar o nosso modo de ver as coisas. Quem de nós nunca supôs adivinhar a disposição divina para conosco a partir do estado atual da nossa consciência e daquilo que percebemos em nós? Às vezes, uma pessoa angustiada porque errou tende a projetar essa auto-imagem que ela tem em Deus, e, então, supõe, a partir da sua autoconsciência, que Deus está tendo o mesmo tipo de atitude que ela tem consigo mesma. O contrário também ocorre: se fazemos atos bons, segundo os nossos critérios, a nossa tendência é supor que Deus também os considera tais. Contudo, isso tudo é muitíssimo frágil. Por que razão Deus adotaria a mesma reação que nós? Que tipos de garantia disso nós temos? Nenhuma... Se duas consciências humanas tendem a discordar na avaliação de fatos simples, imagine o que não acontece com duas consciências totalmente distintas como o são a nossa e a de Deus? Ele mesmo disse: "os meus pensamentos estão tão acima dos vosso pensamentos como o céu dista da terra."

A nossa percepção do mundo e até de nós mesmos é geralmente muito limitada. Há coisas que se passam no íntimo da nossa alma e que nos escapam mais ou menos completamente. É possível ir tomando consciência desses conteúdos, mas isso não se faz senão a partir de esforços, angústias e disciplina. Quando tratamos de Deus, então, ficamos sem muito apoio além daquilo que Ele mesmo revelou de Si. Como Deus é onisciente, é natural que as reações divinas sejam absolutamente não previsíveis por seres como nós que não conhecem quase nada. São João da Cruz, neste sentido, afirmava que não temos a mais mínima condição de saber se Deus está contente com a nossa ação. É claro que, se vivemos em pecados, podemos supor que Deus esteja desagradado de nós. No entanto, não saberemos a intensidade disso. Se, pelo contrário, julgamos estar vivendo bem, nem por isso podemos supor que Deus esteja feliz, pois vaidades, orgulho, auto-suficiência e outras realidades similares costumam esconder-se por trás das nossas ações e auto-imagem. Uma pessoa, por exemplo, que diz que não costuma pecar demonstra não possuir um grau mínimo de autoconsciência. Alguém que julgue que o Céu já lhe está devido, também não se entende sequer superficialmente. Esta inconsciência de si deve ser retirada aos poucos a partir da introspecção, orações e exercícios espirituais. Do contrário, quando ela for retirada bruscamente, por ocasião da morte, o estado mais provável do sujeito será o desespero, que é a causa de condenação de muitos, segundo o que Deus revelou a Santa Catarina de Sena.

As consequências do que foi dito até aqui são as de que nós podemos julgar Deus distante e acontecer de, na verdade, ele estar mais perto do que nunca. O contrário também pode ocorrer: afirmamos até sentir o toque divino e, na realidade, pode ser que não estejamos fazendo mais do que uma autoludibriação, enquanto Deus mantém-se "distante". Lembremos daqueles sujeitos que se surpreendem ao verem-se condenados: "Mas, Senhor, nós pregamos em teu nome e até expulsamos demônios!", isto é, "julgamos que estivesses felizes conosco e que nos fosses favorável". Contudo, a realidade foi bem outra: "afastai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade".

As realidades divinas, assim, não devem ser julgadas segundo critérios subjetivos. Não é o bem estar psicológico que será o sinal da que estamos concordes com Deus. 

Dito isto, podemos entrar no assunto específico deste texto. A frase que o encabeça procede de Sta Teresa D'Avila, e tentarei aqui fornecer alguma luz para compreendê-la. Comecemos pelo final:

Tiritar é um verbo que significa "tremer de frio". Naturalmente, este é um estado anormal para uma pessoa e que pede remediação. Teresa nos diz, no entanto, que esse sujeito de que ela fala nasceu tiritando, isto é, veio ao mundo já desprovido do seu estado de normalidade. O "nascer" aqui significa "vir à existência". O "tiritar" indica a ausência de um calor espiritual, que é a Graça santificante. Todos nós nascemos no estado de Pecado Mortal que, desde Adão, é-nos transmitido por herança. Assim como os primeiros pais viram-se nus depois da desobediência, todos nós nascemos neste estado de nudez, pelo que trememos de frio.

Ao mesmo tempo, Teresa indica a natureza deste frio: oposto ao abrasamento do amor, o frio é, naturalmente, a falta do amor. Sabemos que os seres humanos nascem com a capacidade de amar. Ainda que reduzida por este frio, que nos limita a expansão, esta faculdade nos está preservada. O amor, então, de que se fala não pode ser o mero amor natural. Na verdade, este fogo é o amor sobrenatural de Deus através do qual nos tornamos um só com Ele. A este amor sobrenatural a Igreja chama "virtude teologal da caridade", que nos vem junto com a Graça santificante. É este amor que nos une a Deus. Sem Ele, portanto, estamos afastados do Cristo - O frio também indica o estado de solidão, de não estarmos numa relação amorosa com Deus -. Este afastamento não será objeto claro da consciência; dito de outro modo, o frio ou o calor de que aqui se fala não são precisamente perceptíveis, pelo menos não no seu estado inicial, ainda que, a depender da intensidade dessas realidades, algo delas irrompa no nível da consciência.

Este amor, nós recebemos depois do nascimento, pelo batismo. É então que somos abrasados e rompemos as distâncias entre nós e Deus. Este abrasamento perseverará enquanto não houver pecado mortal, que só se torna possível já na idade da razão. Desse modo, uma criança batizada e que seja educada nos sacramentos terá tempo e ocasião de permitir crescer nela, de modo bastante considerável, a realidade da Graça. Gosto de comparar esta realidade a um Sol que é posto na alma. Não é uma mera disposição psicológica, mas uma realidade concreta. Este fogo celeste, assim como o fogo natural, possui duas propriedades: iluminar e aquecer. A primeira delas diz respeito à inteligência, e facilita a compreensão da verdade como um todo e, de modo particular, das verdades da Fé; a segunda propriedade se dirige à vontade, e torna-a capaz de amar com mais largueza, força e constância, pois é participação no amor de Deus.

Reiteramos: estas realidades escapam às distinções da percepção humana. Ninguém vai, a princípio, flagrar a Graça dentro de si. Mesmo nas confissões sacramentais, onde a mudança que ocorre, de tão brusca, excede a criação do universo material, em geral há pouca ou nenhuma consciência da mudança na alma, e, quando há, isto pode ser meramente o alívio psicológico natural de ter partilhado a notícia de "crimes" pessoais com o sacerdote. A Graça pode intensificar este alívio psicológico; no entanto, não é possível, em geral, ter uma precisão muito clara dos efeitos naturais e sobrenaturais, aí. E isto deve ser assim, pois usar critérios sensíveis para a mensuração daquilo que, em essência, não é sensível já é, por si só, algo carecente de sentido.

"Os sentidos humanos são tão experientes das coisas espirituais como um jumento o é das coisas racionais." São João da Cruz

Quando a Graça se estabelece na alma, ela começa a irradiar e comunicar uma qualidade divina a todos os atos de intelecção e de vontade, de modo que o ser humano, sobrenaturalizado, operando de certo modo a nível divino, pois participa da natureza de Deus, vai sendo, mais e mais, transformado em Deus, ou deificado. Vai abrasando-se naquele fogo infinito do amor de Deus e tornando-se mais e mais incandescente. Conforme a força do amor cresça, então o caráter sobrenatural deste ímpeto vai dando-se a perceber. E, como Deus é amor infinito, o ser humano que progrida no estado de santidade não terá limites na sua capacidade de amar, de modo que é possível que o amor, quando muito crescido, se torne uma aflição para o estado humano atual. Nestes casos, costumam acontecer as estigmatizações ou transverberações. No entanto, ninguém se engane em pensar que chegará aí do dia para a noite. Para abrasar-se a este nível, é necessário muita coragem e doação de si; os sofrimentos interiores são imensíssimos e o autoconhecimento deverá ser, permitam-me, "profundamente aprofundado". No entanto, desde o batismo e, aos já crescidos, desde a última confissão e enquanto não houver pecado mortal, estaremos abrasados neste amor. Não há frio na alma, pois arde nela, com divinas chispas, o Sol do amor absoluto.
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2 comentários:

  1. E quando parece que a gente esfriou de vez? Parece que nada faz mais sentido. Embora você deseje estar perto, parece estar longe.

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  2. Há que se distinguir entre frieza e aridez espirituais.

    A frieza resulta do distanciamente voluntário de Deus. Você começa relaxando nas suas obrigações espirituais e consequentemente cedendo a certos pecados veniais.. Se isso ocorre, a tua vida se ordena ao pecado mortal. Basta dizer que o processo de afastamento de Deus identifica-se com o processo de afastamento do fogo divino, pelo que há esfriamento.

    Outra coisa é a aridez. Ela ocorre quando, tendo manifestado constância com Deus, Ele mesmo te tira as satisfações sensíveis a fim de que você O ame não por causa dessas sensações, mas por causa d'Ele mesmo. Ele quer observar se você continuará constante mesmo se te faltar o desejo sensível das coisas espirituais. Neste caso, a aridez tem um propósito de purificação do amor.

    Em termos de experiência subjetiva, frieza e aridez são parecidos. No entanto, a aridez costuma ser mais suave porque não é acompanhada da angústia do senso do pecado. A pessoa simplesmente "desanima", mas não lhe ocorre necessariamente satisfazer-se no pecado. Se o fizer, ela decai espiritualmente. Já a frieza traz um desinteresse junto com uma fuga de Deus em direção aos atrativos sensíveis, como o são os pecados.

    No caso da frieza espiritual, o que a pessoa deve fazer é reaproximar-se do fogo: reze, peça a Deus a graça da contrição, proponha emendar-se e se confesse. Se é caso de aridez, desapegue-se da necessidade de experimentar coisas ou de ter desejos, e siga a Deus independentemente disso. Você alcançará em breve maior liberdade e maior grau de vida espiritual.

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