Não haveria solenidades ou celebrações se não houvesse um tempo "ordinário". O próprio conceito de uma celebração, e isto também se dá na ordem profana e em todas as culturas, é o de ser algo que nos faz sair provisoriamente do comum, do ordinário.
Assim, no início do Evangelho, vemos Jesus participar com seus discípulos das núpcias às quais se achava presente também sua mãe, Maria. Parece que se divertiram bastante com a festa, ao ponto de ter acabado o vinho. (O uso de vinho de outra forma de álcool, em quase todas as culturas, fazia parte da festa. Tomados com moderação, as bebidas alcoólicas liberam as pessoas de defesas que, na vida de todos os dias, constituem barreiras entre elas e as impedem com freqüência de viver bem as relações humanas).
Portanto, não se pode - nem se deve- estar em festa todos os dias. Isto foi o erro de uma determinada época - ou ao menos foi uma ingenuidade - de certos grupos carismáticos de considerar que quanto mais uma oração transborda de entusiasmo e de barulho, mais ela é verdadeira. Há uma forma de entusiasmo litúrgico que se pode viver numa reunião de oração de fim de semana ou num grande congresso, mas que não se pode viver todos os dias sem se expor rapidamente ao esgotamento emocional total. É preciso sempre voltar ao tempo ordinário.
Assim, mesmo se vivemos todos os dias com pessoas que estimamos e que amamos, não fazemos festas todos os dias. Celebramos estas festas quando há um aniversário mais importante, como por exemplo, bodas de prata, um jubileu, 80 anos, etc. Estas celebrações nos ajudam mais a tomar consciência do que estas pessoas são para nós na vida comum de todos os dias.
É deste tempo ordinário que desejo sublinhar tanto a importância quanto a beleza. Há uns 15 anos, Raimondo Panikkar publicou um livro em inglês chamado "Blessed Simplicity", que foi traduzido nestes últimos anos com o título em francês "Elogio do simples". Gostaria portanto de denominar minha conversa desta manhã de "Elogio do ordinário ou do comum". Há algo de comum entre os dois títulos.
A vida monástica é caracterizada pela simplicidade - a simplicidade de coração, à qual a Escritura opõe a "duplicidade do coração". O coração simples é aquele que vai direto a Deus, que só tem um amor, uma preocupação, um objetivo. O monge, o lhidaya na tradição siríaca em particular, é o "simples" por definição. Ele se deixa cada vez menos distrair em seu caminho para o alvo pelas distrações ao longo da rota, a "fascinação das bagatelas" (fascinatio nugacitatis) de que falavam os autores cistercienses da Idade Média, usando uma expressão de Sabedoria 4,12.
Há uma dimensão contemplativa tão grande, e talvez mesmo ainda maior, como eu penso, na liturgia do Tempo Comum que nos grandes ciclos de festas, quer do Natal, quer de Páscoa. Durante estes grandes ciclos, que são muito belos, lembramos dos acontecimentos mais importantes da vida do Cristo e do Mistério da Nossa Salvação. Cantamos estes mistérios e exultamos com eles. Concentramo-nos em tal ou qual aspecto. Mas no Tempo Comum, não nos deixamos fascinar por um determinado aspecto. Refletimos não sobre tal dimensão do mistério da salvação. Está-se simplesmente presente, dia após dia ao Mistério tomado em todo seu conjunto (Um dos princípios básicos da reforma do calendário litúrgico do Concílio foi reduzir consideravelmente o número de festas e de solenidades, que tinham se multiplicado ao longo dos séculos, para dar toda sua importância ao "tempo comum").
Numa leitura que fizemos recentemente em comunidade, o Cardeal Martini descrevia Maria em Caná como uma contemplativa, explicando que a pessoa contemplativa é aquela que não se deixa tomar totalmente por alguma tarefa particular, mas que tem uma visão de conjunto, que vê ao mesmo tempo todos os elementos de uma situação, sabendo relativizá-los.
Numa situação como a atual tragédia de Kosovo, cada um dos especialistas implicados é obnubilado pelo aspecto de que é responsável. Os militares estão preocupados pelos problemas estratégicos e as questões técnicas, por exemplo, o desafio que constitui a missão de destruir locais considerados militares no seio da população civil tentando limitar as perdas de vida humanas entre os civis, qualificados pudicamente (ou cinicamente) de "efeitos colaterais". Os políticos são cativados pela missão que se lhes dá de impedir a limpeza étnica dos Kosovars. Também existem aqueles que planificam os novos equilíbrios geopolíticos do pós-guerra. Só as pessoas comuns, que precisamente não estão diretamente implicadas, podem lançar uma visão de conjunto sobre a situação toda, e não podem impedir serem massacrados pela evidência que toda esta violência de uma parte e de outra, é demencial. Diante do desencadeamento das forças do mal, o contemplativo só pode dizer a Jesus, como Maria, "eles não têm vinho", falta a todos o vinho da amizade, o desejo da fraternidade, do perdão e da reconciliação. Escutemos o que Jesus fará.
Depois do ciclo festivo, voltamos então ao Tempo Comum, cuja monotonia nos permite tomar consciência de nossos limites, de nossas obrigações, de nossas provações. No adjetivo "comum", há também uma noção de ordem, de disciplina - como a disciplina do atleta que refaz sem cessar os mesmos exercícios ou o artista que tem de desenvolver e dominar técnicas que lhe tornem possível ser criativo. Assim, a monotonia dos dias comuns, ordinários, onde refazemos sem cessar a mesma coisa, nos faz comungar com o Ser num nível mais profundo talvez que todas nossas celebrações mais brilhantes.
Há heroísmo na fidelidade ao ordinarío, o herói não é aquele que faz coisas extraordinárias, mas aquele que continua a fazer fielmente as coisas ordinárias mesmo quando as circunstâncias mudaram radicalmente. No final de "La Peste" de Camus, há uma nota interessante (que cito de memória, pois li o livro há muito tempo). A cena se situa no momento em que a epidemia é vencida e se abrem as portas da cidade. O doutor Roux, que serviu os doentes generosamente durante todo este longo período recusa-se a ser considerado como um herói. Para ele, não fez mais do que o ordinário, o comum. É também comum para o médico curar, diz ele, assim como para o professor ensinar, quaisquer que sejam as circunstâncias onde se ache.
Um belo exemplo disto são nossos Sete Irmãos de Atlas (celebramos seu terceiro aniversário de morte no dia 21 de maio). O que lhes permitiu fazer um caminho comunitário tão admirável durante os três últimos anos de suas vidas em Tibhirine, foi que eles continuaram a levar sua vida comum. A despeito de uma situação que se tornava cada vez mais trágica em torno deles, continuaram a seguir o ritmo ordinário, comum da vida cisterciense, feito da oração comum, do trabalho e da lectio. Também mantiveram relações ordinárias e comuns com seus vizinhos. Dois acontecimentos me parecem ilustrações muito claras desta atitude, que é verdadeiramente o que podemos denominar "a simplicidade do coração". Depois da primeira visita dos "Irmãos da Montanha" na noite de Natal de 1993, uma visita em que estavam bem conscientes que tinham escapado de uma morte violenta, todos eles foram simplesmente à igreja, na hora prevista, para celebrar as Vigílias de Natal. O segundo acontecimento é o da noite em que foram levados. Quando o Pe. Amadée e o Pe. Jean-Pierre, os dois que não foram levados, se deram conta que os outros irmãos tinham sido presos, e que a linha telefônica tinha sido cortada e que eles não podiam sequer prevenir a polícia antes que o dia amanhecesse , foram simplesmente à Igreja celebrar o ofício.
Nesta fidelidade ao comum, ao ordinário, há tanto heroísmo quanto aceitação da morte. É esta fidelidade que nos é pedida todos os dias.
© Abadia de Scourmont, 1999.Traduziu: Cecilia Fridman, Rio Negro, PR, Brasil para o Mosteiro Trapista Nossa Senhora do Novo Mundo, 1999.
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