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A Mística de S. Bernardo de Claraval III


O amor

O amor é uma tendência muito natural da alma humana. Visto que tudo quanto compõe a nossa natureza depende imediatamente de Deus, é dever da alma voltar-se amorosamente para Ele como seu objeto e fim primeiro e natural. Justifica-se esta assertiva pela enumeração sumária dos motivos que impõem a todo homem, inclusive ao gentio, a obrigação de amar a Deus: todos os homens devem-Lhe a existência, os bens corporais, tais como o ar, o alimento, a luz, etc., os bens espirituais, tais como a razão que nos distancia do animal e, mormente, a "dignitas" humana por excelência: o livre arbítrio.

I Aberrações do amor

A despeito de tudo isso, o homem falhou ao seu dever de amar a Deus. Foi preciso que se lhe impusesse em forma de mandamento aquilo que de per si é reto e natural, a fim de forçá-lo a esse amor natural, que é o amor a Deus sem limites nem medida. Nessas condições o amor tem de, forçosamente, evoluir, passando por várias fases sucessivas de aperfeiçoamento.

1. O amor próprio ou carnal como imposição da natureza

O primeiro grau do amor, no estado presente, é o amor a nós mesmos. Este amor, como se insinua em S. Paulo, precede todas as demais modalidades de amor: "mas não é o espiritual que vem primeiro, e si o animal; o espiritual vem depois" (I Cor 15,46).

Essa prioridade do amor próprio ou "amor carnal" deve entender-se como uma necessidade decorrente da própria natureza humana. Pois o homem não é puro espírito, mas um ser composto de corpo e alma. O termo "carnal" significa precisamente a parte animal ou corpórea da natureza do homem, pela qual este é obrigado a satisfazer em primeira linha as necessidades do corpo. E estas necessidades, como sabemos por experiência, manifestam-se de maneiras mui diversas: "Quem ignora que a necessidade do homem é realmente tão diversa? Quem será capaz de explicar esta diversidade? O sabemos pela própria experiência que no-lo dá a conhecer seu próprio tormento."

2. O amor de concupiscência

Embora o amor próprio, enquanto exigência necessária da natureza, não seja pecaminoso, ele não deixa, contudo, de constituir um mal, em vista de sua depravação pelo pecado original. Longe de ser uma necessidade importuna, o amor carnal degenera em concupiscência, e como tal nos atrai e solicita. A concupiscência é o amor próprio a extravagar dos limites da necessidade.

Ao passo que a necessidade concerne principalmente ao corpo, a concupiscência nasce do coração; donde a violência e a multiplicidade das suas manifestações. O coração humano ama as coisas terrenas por crer encontrar nelas a sua felicidade. Entretanto, tais coisas externas não só não conseguem satisfazê-lo, senão que, ao contrário, o tornam infeliz: "A necessidade nasce na debilidade do corpo; o desejo provém do vazio e olvido do coração. Por isso mesmo mendiga a alma o estranho, porque se esqueceu de comer seu pão; por isso anela as realidades terrenas, porque não pensa nas celestiais". Destarte a primeira forma do amor se perverte pela concupiscência. O elemento animal sobrepuja o elemento espiritual, não só por causa da corporeidade característica do ser humano, mas por causa da corrupção de sua natureza pelo pecado; e esta corrupção é o que transforma a "anima recta" em "anima curva".

3. Vontade própria e vontade comum.

Para facilitar a compreensão desta "curvatura", Bernardo distingue um duplo movimento na vontade ou no amor: um movimento egoístico ("vontade própria") e um movimento desinteressado ("vontade comum"). Entre estas duas vontades existe uma oposição diametral. A vontade desinteressada ou comum constitui a caridade.

E assim chegamos ao termo da nossa descrição da deturpação do estado original do homem. Ao passo que a caridade ou vontade desinteressada inclina o homem a partilhar seus bens com outros, a vontade própria ou concupiscência nada quer compartilhar, quer com Deus, quer com o próximo, mas deseja reter tudo para si. É uma enfermidade fatal da alma. Por causa de sua oposição direta coma caridade, e por tanto com Deus, que é a caridade em pessoa, a vontade própria se vê em estado de guerra contra Deus: "Escutem e tremam os escravos da vontade própria com que fúria atacam ao Senhor da Majestade. Em primeiro lugar se fazem independentes e ao declararem-se autônomas se subtraem daquele a quem devem servir como Criador seu. Mas não se contentam com isso. Em quanto delas depende, se apropriam e saqueiam tudo o que é de Deus. A ambição humana não aceita fronteiras... (segue-se uma comparação com a cobiça). Digamo-lo abertamente: ao que se deixa levar pela vontade própria, não lhe basta o mundo inteiro. Se ao menos ficasse satisfeito com todas estas coisas, e não se enfurecesse - causa horror dizê-lo - contra o mesmo Criador! Desejaria que Deus fosse incapaz de castigar seus pecados, ou melhor que não quisesse fazê-lo ou que os desconhecesse. Quer dizer, que em vez de ser Deus, fosse impotente, injusto e ignorante. A maldade mais cruel e detestável lhes é intentar destruir o poder, a justiça e a sabedoria de Deus. É uma besta cruel, uma fera sem entranhas, uma loba sanguinária, uma leoa implacável. É a lepra horrorosa da alma."

II. A Cura do Amor

O desamparo em que se encontra o homem na "regio dissimilitudinis" não é motivo para desespero, dada a indestrutibilidade da imagem de Deus na alma. A graça, a fé e o arrependimento sincero tornam possível a reconquista do amor e a restauração da divina semelhança. E uma vez restabelecida a caridade, a vontade própria cede lugar ao amor desinteressado. Com o amor de Deus, a alma recupera sua verdadeira vida, a vida divina, pois Deus é amor. E este amor atinge o seu ponto culminante nas núpcias espirituais da alma com o Verbo.

O passo inicial no caminho do retorno a este amor perfeito é a humildade. Esta pode definir-se como a virtude pela qual o homem adquire um conhecimento verdadeiro de si mesmo e de sua própria miséria. A humildade é, ao mesmo tempo, o primeiro grau da verdade, e esta nos reconduz à caridade em três graus sucessivos:

* O primeiro grau da verdade é, como vimos, o reconhecimento da nossa própria miséria.

* O segundo grau é a caridade; pois o conhecimento próprio desperta um sentimento de compaixão sincera para com a miséria dos nossos semelhantes; de sorte que o amor social e as obras de caridade têm sua raiz na humildade.

* O terceiro grau é atingido quando o homem, plenamente purificado, volve a sua atenção para a contemplação das coisas invisíveis.

De modo semelhante, e ainda a partir da consideração da própria miséria, podemos distinguir quatro graus de amor:

* Primeiro grau: o homem ama-se a si mesmo sob o império da necessidade; este é o "amor carnal".

* Segundo grau: o homem reconhece sua miséria e se dá conta da precisão que tem de Deus; e assim dá o primeiro passo no amor de Deus, embora ainda não O ame por Ele mesmo, mas em atenção ao seu próprio interesse.

* Terceiro grau: graças a um conhecimento sempre mais perfeito de Deus e a uma crescente intimidade com Ele, o homem começa a amá-Lo por Ele mesmo, mas também em vista de seu próprio bem, por haver experimentado em si próprio a doçura do seu Deus. Este estágio sói ser o mais longo de todos, e é provável que o homem jamais consiga ultrapassá-lo na vida presente.

Quarto grau: o homem ama-se a si mesmo única e exclusivamente por causa de Deus. Nesse grau supremo do amor o homem atinge a sua perfeição. A necessidade e a concupiscência se desvanecem. Contudo, nem mesmo esse amor supremo exclui o amor próprio, pelo menos em sua forma totalmente purificada pelo amor a Deus. Numa palavra: o homem torna a ser uma perfeita semelhança de Deus, e essa assemelhação ou deificação faz com que ele se ame a si mesmo enquanto semelhança de Deus. O amor a Deus e o amor à sua semelhança, que é o homem, vêm a ser uma só e mesma coisa.

BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
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