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Assunção de Nossa Senhora - Cardeal Joseph Ratzinger


Abriu-se o templo de Deus no céu e apareceu, no seu templo, a arca do seu testamento. Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida de sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Estava grávida e gritava de dores, sentindo as angústias de dar à luz. Depois apareceu outro sinal no céu: um grande Dragão vermelho, com sete cabeças e dez chifres, e nas cabeças sete coroas. Varria com a sua cauda uma terça parte das estrelas do céu, e atirou-as à terra. [...] Então a Mulher fugiu para o deserto, onde Deus lhe tinha preparado um retiro. Eu ouvi no céu uma voz forte que dizia: Agora chegou a salvação, o poder e a realiza do nosso Deus, assim como a autoridade do seu Cristo" (Apoc 11,19 - 12, 1-6a.10ab).

A festividade da Assunção de Nossa Senhora põe-nos diante dos olhos, ano após ano, o grande sinal de que nos fala a leitura que acabamos de ouvir: uma mulher revestida de sol, ou seja, impregnada da luz de Deus, que habita em Deus - e na qual Deus habita. Deus e o homem tocam-se e se compenetram. Céu e terra encontram-se. E a lua debaixo dos seus pés significa que a transitoriedade, a condição mortal e a própria morte estão superadas e que o temporal foi elevado à vida eterna. E Ela está sob o sinal da Redenção, pois as doze estrelas indicam a nova família de Deus, representada pelos doze filhos de Jacó e pelos doze Apóstolos de Jesus Cristo.

Esta festa repleta de esperança e alegria mostra-nos que Cristo não quis permanecer só à direita do Pai; de certa forma, é somente agora que se encerra propriamente a comemoração da Páscoa. Cristo, o grão de trigo que morreu, não volta sozinho nem sobe sozinho para o Pai, deixando a terra simplesmente abandonada a si mesma. Ao levar Maria consigo, começa a levar para o alto o mundo, a terra e nós mesmos, de forma que Deus e o mundo se compenetram e começa a aparecer uma nova terra (cfr. Apoc 21,1). Esta é a orientação que o dia de hoje nos dá: o Senhor não permanecerá sozinho, e a nova terra já começou. E ela não é apenas um sonho futuro, mas abre-se no presente e permanece aberta onde quer que o homem se entregue completamente a Deus.

Isto é o que a Bíblia nos diz com a metáfora da Mulher, do sol e das estrelas, e isto é o que a linguagem do tempo litúrgico exprime numa fórmula simples: Maria foi levada em corpo e alma para o céu. Encontramos aqui, portanto, três palavras-chave: Maria - ser humano em quem já se cumpriu todo esse processo, e que por isso representa para nós um sinal de esperança -, céu e corpo. Maria é o ser humano que se adiantou plenamente a nós e que por isso é um foco de esperança para nós. As tentativas feitas ao longo dos últimos duzentos anos para criarmos nós mesmos o homem novo e estabelecermos a nova terra acabaram em catástrofe. Nós somos incapazes de consegui-lo, mas Deus é capaz, e assim o faz, e nos mostra como ir ao seu encontro.

Permanecer fiéis ao céu

tomemos agora as duas palavras-chave que a liturgia nos oferece - céu e corpo, céu e terra -, como conceitos relacionados entre si. À primeira vista, parece ultrapassado falar do céu. Quem o faz hoje? Mais: quem ousa fazê-lo hoje? "Irmãos, permanecei fiéis à terra", dissera Nietzsche, para afastar enfim os nossos olhos do céu e convidar-nos a desfrutar plenamente da terra, sem nada esperar além daquilo que ela nos pode dar. "O céu, deixemo-lo para os pardais", acrescentou Bertold Brecht. E Albert Camus contrapôs deliberadamente o seu programa - "O meu Reino é deste mundo" - às palavras de Cristo: O meu Reino não é deste mundo (Jo 18, 36), e esse foi na verdade o programa de todo um século, pois o nosso século vive de acordo com ele, e em ampla medida nós também vivemos silenciosamente assim.

"O meu reino é deste mundo" significa que devemos exigir do tempo o que, na realidade, só a eternidade pode dar. Precisamos extrair do tempo a eternidade, e isso significa que o tempo sempre nos parece pouco. Corremos o tempo todo atrás do tempo perdido. Se o tempo tem de ser tudo, necessariamente tem de ser insuficiente, e o resultado só pode ser pressa, perda de tempo, falta de tempo. Quando queremos encontrar no tempo a eternidade, o próprio tempo se nos escapa das mãos.

O mesmo acontece com o mundo, com a terra. Quando queremos extrair tudo da terra, ela torna-se necessariamente muito escassa e acaba por ser destruída. As consequências necessárias são o ódio contra os outros, contra nós próprios e contra Deus, a falta de paz e a violência. Portanto, talvez valha a pena voltarmos a pensar o que essa Mulher vestida de sol tem a dizer-nos: que se trata de vivermos para o céu, com a certeza de que assim também se renovará a terra!

Viver para o céu significa abrir-se para Deus, deixá-lo entrar nesta vida. No começo da Idade Moderna, alguém escreveu: "Deveríamos viver como se Deus não existisse". Conhecemos os resultados dessa atitude. Muito pelo contrário, deveríamos dizer: porque Deus existe, devemos viver dando ouvidos à sua Palavra e à sua vontade. Temos de viver sob o seu olhar.

Quando vivemos assim, por um lado a nossa responsabilidade aumenta, mas por outro a vida torna-se mais leve e mais humana. Mais leve, porque todas as perdas, erros e fracassos deixam de ser algo último e definitivo, uma vez que temos a certeza de que o sentido dessas coisas aparecerá um dia, e nem tudo está perdido para sempre; tudo tem o seu significado , e acabaremos por compreendê-lo. Quando vivo para o céu, todas essas coisas continuam a custar-me, mas já não custam tanto porque são apenas algo de penúltimo, porque já não preciso preocupar-me tanto com o que não consigo fazer nem consigo atingir, uma vez que sei: "Também está bem assim. Ele é bom".

E quando morre uma pessoa, sei que voltaremos a ver-nos que ela não me foi arrebatada de maneira definitiva. Aliás, talvez devêssemos praticar exatamente isto: alegrar-nos com o futuro reencontro com aqueles que se afastaram de nós apenas por um pouco de tempo, e com os quais poderemos conviver num contentamento cem por cento puro, sem contrariedades e perturbações desta vida.

E deveríamos pensar, em tudo o que fazemos, que isso tem peso para a eternidade, que Deus nos vê e nos julga, esse Deus que é justo e fonte da justiça. Daqui nasce a responsabilidade por nós mesmos, pelo próximo, pela terra, e ao mesmo tempo nascem a liberdade e a confiança. A vida torna-se mais ampla e maior. Vivemo-la com mais serenidade e ao mesmo tempo com mais decisão, porque sabemos que avançamos numa direção clara - a da justiça e do amor de Deus.

Corporificar a vida cristã

E agora, o corpo. Hoje pensamos que Deus não pode ter nada a ver com a matéria: ela é como é, ela tem as suas leis. Assim o cristianismo reduz-se a mera idéia, perde a sua realidade. Mas, se refletimos, percebemos que nada disso é coerente. Sabemos que a saúde e a doença não são apenas fenômenos biológicos e psicológicos, que o corpo e a alma estão estreitamente vinculados e se condicionam e conformam mutuamente, pois a alma é uma força que modela a nossa vida corporal. E assim sabemos também que o ódio e o amor modificam a vida e modificam o mundo, e sobretudo que o corpo e a alma, a vida e o mundo, se modificam conforme expulsamos Deus ou o acolhemos.

A Virgem Maria é para nós um paradigma disto, pois ELa não adorou apenas a Deus no seu pensamento, mas pôs-se inteiramente à sua disposição, com todo o seu corpo, para que o próprio Deus pudesse tornar-se corpo. Ser cristão também segundo o corpo significa ser cristão no amor à Criação e ao Criador. E aqui deveríamos voltar a tomar consciência de que não conseguiremos preservar a criação se não quisermos conhecer o Criador, de que continuaremos a destruir a terra se não a usarmos e guardarmos em harmonia com Aquele que no-la deu.

Assim, o respeito pelo corpo, o nosso e o dos outros, e o respeito pela terra toda que Deus nos deu deveriam impregnar a nossa vida de cristãos, corporificá-la. E então perceberemos como precisamente nessa corporificação aparecem o novo e o maior, como a luz eterna de Deus transparece através dela.

Desde a Antiguidade, a festa da Assunção de Nossa Senhora está ligada à bênção das ervas medicinais. Este costume baseia-se na lenda segundo a qual, quando se abriu o sepulcro de Maria, o túmulo vazio cheirava a ervas aromáticas e flores. Isto quer dizer: onde um homem vive com Deus e para Deus, também a terra floresce; ali a própria terra se torna bom odor e canto de louvor, assim como, inversamente, a sujeira das almas ase reflete na poluição da terra e na sua destruição, é o que vemos.

As ervas representam, pois, um sinal do segredo de Maria, apontam para a harmonia entre céu e terra. Elas nos dizem: a terra florescerá onde e quando deixarmos Deus entrar nela, onde nos reorientarmos para Ele. Com este espírito, levemo-las para casa, para que nos sejam um sinal de esperança dessa nova terra, um sinal do amor desse Deus que cria os novos céus e a nova terra e os faz florescer em toda a parte em que os homens procuram viver em harmonia com o seu amor.

Joseph Ratzinger, Homilias Sobre os Santos.
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