São João Batista existe para chamar os homens para junto de Cristo. O seu ministério tem um caráter distinto do dos Apóstolos e dos seus seguidores. Ao contrário destes, João não representa diretamente o Senhor, mas abre a porta para Ele. Prepara-Lhe um ambiente em que a sua voz possa ser ouvida. Reúne, purifica e prepara o povo, a fim de que passe a existir a possibilidade de encontrar-se com Jesus. Põe os homens no caminho que conduz a Ele.
Num mundo que se tinha tornado cristão, como o dos séculos precedentes, esse tipo de ministério naturalmente passou para um segundo plano. Mas numa época como a nossa, que vive cada vez mais longe do Senhor, em que os nossos "órgãos de acesso" a Deus e a Cristo correm o risco de atrofiar-se, volta a ser urgente esse esforço de preparação para o catecumenato, que abre espaço para que o próprio Senhor possa fazer-se ouvir novamente.
Manifestar o Senhor
Comecemos pelo final do Evangelho de hoje. Nele se diz que João viveu no deserto até o dia em que se apresentou diante de Israel (Lc 1,80). A tradução não reflete, aliás, um elemento essencial do texto bíblico, que dizia originalmente: "permaneceu no deserto até o dia da sua anadeixis. Esta palavra deriva do antigo direito administrativo e significava o que hoje chamamos "investidura" ou "tomada de posse" de um cargo público. Lucas voltará a empregá-la no começo do capítulo décimo, para indicar o envio dos setenta e dois discípulos por Jesus. Com relação a João, ela significa: o Batista não faz a sua aparição no momento que lhe parece conveniente a ele, mas a sua atuação pública insere-se na ordem pública do Povo de Deus, na chamada "economia" da História da Salvação, na transição da Antiga para a Nova Aliança.
Não há dúvida de que existe uma forma de testemunho cristão que todo o fiel pode e deve exercer sem necessidade de qualquer mandato específico, e o Evangelho também nos fala dela ao contar-nos que os que presenciaram o nascimento do Batista difundiram o que tinham visto. É disso que vive a fé: desse transbordamento simples daquilo que compreendemos e experimentamos, da transmissão e comunicação cotidianas daquilo que vive em nós. Outra coisa, porém, é o serviço público prestado ao Povo de Deus, serviço que recebe a sua responsabilidade da ordem pública e que se torna, precisamente por estar inserido nessa ordem, um testemunho da fé coletiva, um episódio da História da Salvação. Porque a palavra anadeixis, "investidura", é uma expressão da ordem pública da Igreja, mas também pode significar "Revelação". É por meio da inserção na ordem coletiva da Igreja que a Revelação se torna presente, que a História da Salvação se cumpre e o Senhor se manifesta.
Deixar que Deus nos vença
Perceberemos qual o pano de fundo espiritual do que acabamos de dizer se examinarmos a narrativa da imposição do nome ao menino recém-nascido. Zacarias recebe de volta a voz no momento em que obedece expressamente à mensagem do anjo: ao dizer "sim" ao nome que Gabriel lhe tinha indicado, reconhece a veracidade da promessa divina. A mudez em que caíra até aquele momento era expressão metafórica do temor e da desconfiança com que reagira ao anjo, mensageiro de Deus (cfr. Lc 1,13-20). O velho sacerdote estivera preso àquilo que os homens costumam considerar "normal", isto é, àquilo que conseguem pensar e entender por si mesmos. Nessa disposição, que mede o mundo pela sua própria capacidade de compreensão e por aquilo que uma determinada época considera aceitável, a promessa de Deus só podia parecer-lhe um mito vazio. Diante de Deus - cuja novidade, alteridade e superioridade sempre rompe as nossas possibilidades e os nossos cálculos -, Zacarias estava surdo e mudo, por mais que soubesse recitar as solenes orações da liturgia do Templo de Israel.
Mas não é ele, precisamente por causa disso, o nosso representante? Não somos todos, de uma maneira muito parecida à de Zacarias, mero surdos-mudos diante de Deus, enredados na nossa prudência míope, no espírito do nosso século, e por isso muito encerrados naquilo que consideramos certo e compreensível? Não será que até o nosso trabalho de teólogos, que lida com tantos conceitos, muitas vezes se torna um diálogo de surdos-mudos, em que perdemos de vista a realidade das idéias e lidamos apenas com umas palavras reduzidas a cascas vazias? E não acontece que até na interpretação da Sagrada Escritura, por mais que esmiucemos os textos, por maior que seja a nossa erudição histórica e filológica, frequentemente somos ouvintes surdos, que não captam nada, mas absolutamente nada, das verdades que ela nos traz, e permanecem na superfície de um conhecimento que não alcança nem de longe o mistério de Deus?
A língua de Zacarias solta-se no momento em que ele faz suas as palavras prescritas pela promessa do anjo. Também nós só poderemos falar retamente do Senhor se nos deixarmos vencer por Ele, se deixarmos que nos arranque dos nossos modos limitados e excessivamente pessoais de pensar e de compreender. Só se ousarmos lançar-nos no oceano da fé comum da Igreja, se tivermos a coragem de aceitar em plenitude as palavras que ela nos propõe, só então é que poderemos pouco a pouco falar juntamente com ela, ouvir com ela e assim também abrir os ouvidos dos outros aos mistérios de Deus. A mera razão, por mais importante que seja - mesmo a razão de uma década ou de um século - é muito pouco para Deus. A Palavra de Deus exige mais. Exige que superemos os estreitos limites do nosso mundo, exige que nos confiemos de coração, corajosamente, à grande fé de todos os séculos.
Desvencilhar-se da vontade própria
Mas há outro aspecto em jogo neste relato. Os parentes especulavam qual seria o nome escolhido para o menino, e surpreenderam-se ao saber que devia ser um nome não usado até então por nenhum membro da família. Para Zacarias e Isabel, porém, estava claro que o que conta não é a origem, que nem as idéias próprias nem a vontade própria são decisivas, mas apenas a vontade de Deus. Na sua fé, e na verdade em toda a fé, transparece a atitude de Abraão. A fé tem que desvencilhar-se uma e outra vez da vontade própria; exige que deixemos a nossa parentela, como se diz aqui e como aconteceu com Abraão, e nos encaminhemos para a vontade nova de Deus.
O Novo Testamento permanece sempre novo. Sempre é diferente daquilo que nos parece habitual, normal e evidente. Sempre nos exige a coragem de Abraão, que renuncia aos cálculos humanos, deixa que o Senhor tome a sua mão para conduzi-lo, e põe a vontade de Deus acima dos planos pessoais.
Um susto sagrado
E assim chegamos ao que o serviço à Palavra de Deus exige de nós. O Evangelho diz-nos desta cena: todos os que o ouviram [o relato do nascimento] conservaram-no no coração (Lc 1,66) Infelizmente, também aqui a tradução banalizou um pouco o original: o texto grego diz: Ethento en te kardia, "levaram-no ao coração", "puseram-no dentro do seu coração".
A palavra de Deus - já o dissemos - precisa da nossa razão. Usa-a e desafia-a. Mas a razão sozinha não basta. Precisamos levar essa palavra para dentro do nosso coração, até às profundezas mais íntimas do nosso ser, para que "nos vire do avesso" - nos converta - por dentro. Devemos assimilá-la e deixar que produza em nós essa fermentação que, como diz a Sagrada Escritura, "faz estremecer as nossas entranhas" (cfr. Cânt 5,4; Is 63,15; os 11,8; Hab 3,16; etc.) Só se recebermos assim a Palavra de Deus é que ela nos ferirá, e então também os homens "ficarão pasmados", como se diz no Evangelho. Ou ainda, "o temor apoderar-se-á deles", como também se diz no texto grego (Lc 1,65).
Tudo isto vem a dizer que não podemos ler a palavra de Deus e permanecer tranquilamente sentados como quem lê o jornal. Se realmente tivermos tocado aquilo que é diferente de nós, o totalmente Outro, deveremos sentir-nos atingidos como por um raio, feridos até o mais fundo do nosso ser. E então nos assustaremos em primeiro lugar ao ver como a nossa existência é banal e superficial, como é insuficiente diante da glória e do poder eternos de Deus. Mas só se nos expusermos a esse susto sagrado - ou seja, se não lermos a palavra de Deus como um simples jornal -, só então a alegria do Evangelho poderá realizar-se em nós. Pois quem permanece na superfície das coisas também será superficial na sua alegria; só quem se deixa abrir até o fundo consegue compreender o que significa que Deus é graça - o que é, precisamente, a tradução do nome "João". Esse é, no fim das contas, o resultado de todo o cristianismo: "Evangelho", alegria verdadeira.
Para que essa grande alegria de Deus possa atingir-nos, temos de estar plenamente abertos, temos de deixar que o poder da sua Palavra nos atinja. Não poderemos cumprir o ministério do Batista - levar ao íntimo dos homens o sagrado susto diante da palavra divina, que conduz à sagrada alegria - se antes não tivermos sido atingidos no mais íntimo do nosso ser por esse susto e assim nos tivermos encontrado com a sua alegria.
Por fim, a leitura de hoje abre-nos ainda para uma outra idéia: o fracasso do Profeta (cfr. Mc 14,1-12), que no entanto se sabe abrigado no Senhor. Nunca poderemos julgar a nossa missão pelo critério do êxito. Se alguém por assim dizer quisesse encontrar a sua identidade no sucesso, em breve acabaria por falsear a identidade da Palavra que lhe foi confiada. Os nossos pontos de apoio devem ser mais profundos. São a união com a vontade de Deus, a fidelidade à Igreja como um todo e o abandono confiado nas mãos de Deus que nos tornam livres, nos enchem de coragem, nos ajudam a atravessar tempos obscuros com a luz da Palavra, e nos fazem audazes por sabermos que Deus está ao nosso lado.
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Santo Agostinho tem um comentário muito profundo acerca da relação entre o Batista e Cristo ao apontar que João se apresentava como a voz do que clama (Jo 1,23), ao passo que Jesus era a Palavra de Deus (cfr. Jo 1,14). "Voz" e "palavra". A voz passa, a palavra permanece. Mas apenas a palavra entra e permanece. A voz não é, por assim dizer, senão o veículo da palavra e, cumprido o seu papel, extingue-se: É preciso que Ele cresça e que eu diminua (Jo 3,30), diz o Batista.
A voz está a serviço da palavra. No entanto, sem o instrumento da voz, a palavra não poderia propagar-se neste mundo nem chegar àqueles a quem queria chegar. E esta é a nossa missão: sermos voz a Palavra! Peçamos ao Senhor que cada vez mais nos seja dado, a nós, ministros da Palavra, ser essa voz de Deus, esse seu veículo, para assim podermos participar da sua eternidade e da sua plenitude.
Cardeal Joseph Ratzinger, Homilia Sobre os Santos
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