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Quaresma - tempo de mortificação


Os católicos observamos a Quaresma como um tempo de preparação para a Páscoa. A princípio, viu-se a necessidade de uma preparação de três dias, que se tornou o que hoje chamamos de "tríduo pascal". Mas, pela enormidade do significado, os cristãos acharam por bem aumentar o tempo de preparação, e estabeleceram o sugestivo número de quarenta dias. 40 é um número que aparece recorrentemente na Bíblia, e indica sempre um período delimitado que é como que uma tensão preparatória para algo. O símbolo maior desta preparação se dá no jejum que Jesus, inspirado pelo Espírito, faz no deserto e que antecede o começo da sua vida pública.

Toda preparação busca desenvolver os meios necessários para aquilo que se vai executar. Assim, Jesus jejua e é tentado pelo demônio. Na quaresma, nós somos convidados a jejuar, fazer mortificações, e enfrentar os nossos demônios. O deserto é, já, um lugar difícil, áspero, escasso em objetos de satisfação. Portanto, é o lugar propício para o combate. Não à toa, é o lugar para onde Deus leva Israel a fim de falar-lhe ao coração. No deserto da quaresma, Deus deseja também falar-nos e nos preparar para o esponsal que Ele mesmo realizará, não mais no deserto, mas num jardim, sobre uma árvore frondosa cujos frutos anularão os efeitos do pecado: a árvore da Cruz.

Quero neste texto meditar um pouco sobre o significado das mortificações. Quase ninguém insiste nisso, hoje, e a pregação dos padres se resume, no mais das vezes, à dimensão política. A Campanha da Fraternidade, posta durante a quaresma, também não ajuda. Esta desatenção às mortificações é profundamente prejudicial. A Igreja sempre declarou, nos seus santos e doutores, que estas são não somente uma recomendação, mas uma necessidade para a vida espiritual, de modo que quem não se mortifica não avança. Os santos, que são os verdadeiros representantes do cristianismo, foram dela muito amigos e não dispensavam oportunidades de praticá-la. Dada, então, a sua importância essencial na vida cristã, falemos dela.

Mortificar significa fazer morrer alguma coisa. Há em todos nós forças internas que nos impelem para a direção contrária à que deveríamos seguir. Todos nós sabemos disso por experiência: nós somos gulosos, luxuriosos, egoístas, violentos, orgulhosos, vaidosos, preguiçosos, covardes, dissolutos. A mera tomada de consciência dessas coisas não é, contudo, suficiente para nos fazer mudar. Uma coisa é conhecer o que eu deveria ser e não sou, e outra muito diferente é ter a força de me tornar isso que eu deveria ser. São Paulo apóstolo descreve, de modo formidável, o drama pelo qual passa todo filho de Adão que intenta conformar-se ao Cristo: 

"Porque bem sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido sob o pecado. Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero isso não faço, mas o que aborreço isso faço. E, se faço o que não quero, consinto com a lei, que é boa. De maneira que agora já não sou eu que faço isto, mas o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço. Ora, se eu faço o que não quero, já não o faço eu, mas o pecado que habita em mim. Acho então esta lei em mim, que, quando quero fazer o bem, o mal está comigo. Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei, que batalha contra a lei do meu entendimento, e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros." (Rm 7,14-23)

Vemos aqui que o pecado é como uma lei interna nossa, e, além disso, Paulo lhe atribui autoria pelo pecado, como se ele fosse um falso eu em nós. Qualquer perspectiva espiritual que não perceba isso tudo é mera ilusão. Daí se vê a puerilidade de certos discursos que atribuem o não ser santo a apenas uma questão de falta de vontade, de "safadeza" pessoal, como se o "participar da natureza divina" estivesse ao alcance do homem. Ledo engano. Nós não somos auto-suficientes, e, além do fato de a santidade estar infinitamente acima dos nossos esforços naturais, nós sequer sabemos o que seja um santo antes de nos tornarmos um. Assim, mesmo que tivéssemos a força necessária - o que não é mesmo o caso -, não poderíamos nos dar aquilo que não conhecemos. É uma contradição trivial.

A santidade, junto com as virtudes teologais, nos é dada por Deus. Não há outra fonte. E devemos mesmo desesperançar de querer produzi-la por nossos meros esforços. O que fazer, então? Dissemos que a santidade nos é dada por Deus, e, sendo esta a nossa vocação e a razão mesma da nossa existência, é claro que Deus deseja dá-la a todos os homens. E por que não o faz? Porque não encontra a devida abertura na nossa alma. Não há espaço em nós para que Deus aja, e isto porque estamos vivendo ainda sob a lei do pecado e estamos inchados de egoísmo. O que fazer, então? Felizmente a nossa natureza não está de todo estragada. A luz da inteligência ainda dá conta de perceber verdades fundamentais, e a vontade, devidamente informada, pode ainda dispender certos esforços necessários para que a ação de Deus se dê. Contudo, nada é fácil.

O problema fundamental é o seguinte: desde que nascemos, estamos viciados no prazer, o que nos torna egoístas. Abraçamos o que nos agrada, rejeitamos o que nos desagrada, e assim atribuímos às coisas e pessoas como que uma segunda natureza, que ofusca a sua identidade verdadeira, e, assim, falseia a nossa visão de todas elas, inclusive de nós mesmos. Este vício começa bem antes de tomarmos consciência do problema. Logo, temos dele anos e anos de prática. Como o prazer é manipulável, aprendemos a provocá-lo, a intensificá-lo e a mediar as nossas relações sempre com vistas nele. O nosso eu se torna, assim, o eixo da nossa existência; se torna um ídolo que se fortalece na medida em que sacrificamos valores, coisas e pessoas no seu altar. Esta centralidade do ego é o que se chama egoísmo. E é importante frisar: quando nos percebermos egoístas, já o teremos sido por muito tempo. Assim, não é a simples tomada de consciência e o desejo de deixar de sê-lo que serão suficientes para resolver o caso. Pelo contrário, se não cuidarmos, será bem capaz que o próprio desejo de sermos bons e santos tenha por motivação última o próprio egoísmo. No lusco-fusco da nossa alma, tateando entre sutilezas e obscuridades, vamos errando no caminho qual estrelas perdidas, e se confiarmos em nossa própria cegueira, cairemos, infalivelmente, no buraco; teremos fracassado.

O que fazer, então? Duas coisas: a primeira é pedir ajuda a Quem pode nos ajudar, que é Deus, e a segunda é fazer o pequeno papel que nos cabe. Falemos um pouco da primeira.

Pedir ajuda a Deus não se resume a rezar. Nosso Senhor estabeleceu meios objetivos para que participássemos daquilo que Ele nos conseguiu na Cruz. Aquilo que Ele conseguiu foi a Graça divina, e os meios objetivos são os Sacramentos. Sem a força da Graça propiciada pelos sacramentos todo o projeto de santidade é apenas um projeto mal orientado.

O que nos cabe fazer é rezar e nos mortificar. Como nós temos essa busca natural pelo prazer, que sempre nos limita e nos condiciona, a mortificação, com vistas a nos devolver a liberdade de uma ação mais correta, buscará atacar o eu a partir de desconfortos voluntários ou da aceitação de desconfortos involuntários, o que nos dará as mortificações ativa e passiva.

O princípio do prazer espraia-se em tudo quanto fazemos: amizades, trabalho, ocupações diversas, oração, etc,: tudo está como que abrangido por ele. Costumamos chegar atrasados no trabalho ou ficamos felizes se saímos antes da hora porque o nosso ego não se agrada de que lhe sejam impostas obrigações. Se rezamos, gostamos de sentir Deus e procuramos ativamente por ficarmos em paz, às vezes reduzindo as nossas orações - ou as intensificando - precisamente quando estamos necessitados. Sempre é o nosso eu quem dita. Sempre é a nossa vontade a nossa verdadeira senhora. Quando nos mortificamos, nos impomos desprazeres, e nos acostumamos ao desconforto, começa a acontecer uma coisa estranha em nós. A princípio, será só tédio, impaciência, desconfiança, desatenção, cansaço, angústia. Mas, se perseveramos, a melhora se segue ao amargor do remédio. Vamos percebendo que estávamos como que bêbados e sonolentos - nem isto sabíamos! -, e agora a consciência meio que acorda e passa a luzir num outro nível. Contornos sutis da realidade, antes despercebidos, se revelam qual um degradê de montanhas sequenciadas que estavam encobertas pela névoa da concupiscência. A cor postiça que impúnhamos aos entes empalidece e a cor real, subjacente à nossa ilusão, desponta. Não apenas as coisas se revelam, mas as relações entre elas também se tornam visíveis, e o próprio gosto nelas presente, uma vez que tenhamos aprendido o desapego e a fruição desinteressada, se dá a nós sem esquivas. Estes são efeitos que estão ao alcance mesmo de uma ascese natural, não necessitando ainda da Graça santificante para serem experimentados. Mas é claro que tais efeitos não serão imediatos.

Além do efeito anticoncupiscência e seu ulterior despertar - que se dá como iluminação da inteligência -, a mortificação revigora a vontade que andava enfraquecida sob os ditames da sensibilidade e do desejo. Aquele "outro" que nos habita, e que era testemunhado por São Paulo como autor do mal, perde terreno e o nosso verdadeiro eu, antes desmaiado nalguma sarjeta interior, recupera os sentidos e lhe passa a exercer maior resistência, podendo, aos poucos, tomar-lhe as rédeas. Isto libera certas energias da alma, o que dá à existência um grande senso de vitalidade e inclusive melhora a saúde e aprimora o caráter. Ao contrário do que dizem por aí, que pessoas mortificadas são sujeitos cabisbaixos e sem gana, é uma vida permissiva e dissoluta que mina a disposição e gera timidez, tristeza, angústia e fraqueza.

Por fim, a mortificação faz a pessoa perceber o seguinte: se eu desejo algo e, não obstante, eu o renuncio, como que se cria entre o desejo e o eu um espaço, e este espaço torna evidente que o eu não é o desejo. Quando deixo de me identificar aos meus desejos, aos meus apegos, aos meus caprichos, poderei encontrar, sob os escombros desses movimentos automáticos, a sede da minha liberdade e a minha verdadeira identidade subjacente. Perceberei que não é uma relação óbvia que um desejo engendre uma ação, pois o desejo pode me surgir como um estranho, uma espécie de rebelião interna a que é preciso pacificar. Não é outra coisa a "noite dos sentidos", de São João da Cruz. Uma vez que a "casa está sossegada", o verdadeiro eu assume liberdade e seus movimentos ficam desimpedidos. Isto permite uma satisfação de um nível totalmente superior, e é esta satisfação, resultante da saúde da alma e da sua operação em correspondência à sua natureza espiritual, que pode ser corretamente chamada de alegria. Não é que o prazer cessa de existir; reencaixado na santidade, ele até será mais intenso, enquanto que desprovido de seus apelos desordenados. Ele será também não um fim das ações, mas um acompanhante, um efeito de uma vida reta, ordenada, e reconciliada com a realidade.
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