Abaixo transcrevo um texto magistral do Thomas Merton. Embora ele sirva, óbvio, para todos os tipos de pessoa, eu gostaria de recomendá-lo principalmente aos religiosos - sobretudo aos tradicionalistas -, pois, nestes, as ilusões e vaidades costumam ser sacralizadas e reassumidas num outro nível como se fossem a mais fina santidade, ou simplesmente associadas a certos traços que, embora corretos objetivamente, se tornam pontos de defesa na medida em que servem de suporte às nossas ilusões de grandeza. Que a leitura das linhas a seguir sirva-nos de exame de consciência.
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Reflita, algumas vezes, sobre o inquietante fato de que a maior parte das afirmações que você faz sobre suas próprias opiniões e esperanças, bem como sobre seus gostos, atos, desejos e temores, são afirmações sobre alguém que não está presente. Quando você diz "eu acho", frequentemente não é você quem acha, são "eles" - é a autoridade anônima da coletividade falando por meio da máscara "você". Quando você diz "eu quero", algumas vezes está somente realizando um gesto automático de aceitar, ou pagar, o que lhe foi impingido. Quer dizer, só está querendo aquilo que fizeram você querer.
Quem é esse "eu" que imaginamos ser? Um ramo pragmático e simplista do pensamento psicológico dirá que, se você é capaz de conjugar o pronome adequado com seu nome próprio e declarar que é você o portador desse nome, então você sabe quem você é, ou seja, está "consciente de si como pessoa". Talvez haja um começo de verdade nisso: é melhor que um indivíduo se descreva como um nome próprio do que com um substituto aplicável a toda uma espécie, pois assim ele estará evidentemente consciente de si mesmo como um sujeito individual, e não como um simples objeto, como uma unidade para uma multidão. É bem verdade que para o homem moderno, mesmo a capacidade de chamar-se por seu nome próprio é uma façanha que causa espanto nele e nos outros. Isso, contudo, é apenas um começo, e um começo do qual o homem primitivo talvez pudesse rir, pois, ainda que uma pessoa dê mostras de saber seu próprio nome, isso não quer dizer que esteja consciente de que esse nome representa uma pessoa de verdade. Pode ser que o nome, em vez disso, qualifique um personagem fictício, ocupado ativamente em autopersonificar-se no mundo dos negócios, da política, no mundo acadêmico ou no religioso.
Esse, no entanto, não é o "eu" que pode estar diante de Deus, consciente d'Ele como "Tu". Para esse "eu", talvez nem exista claramente nenhum "tu". Talvez mesmo as outras pessoas sejam vistas por ele como extensões do "eu", imagens do "eu", modificações do "eu", aspectos do "eu". Talvez nem haja uma distinção clara entre esse "eu" e os outros objetos: ele pode se encontrar desprovido de sua própria subjetividade, ainda que esteja bastante consciente quando diz, agressivamente decidido, "eu".
Se um "eu" dessa espécie ouvir falar em contemplação, talvez decida "tornar-se um contemplativo", isto é, gostará de ver em si essa coisa chamada contemplação. Para isso, vai ter de introjetar a contemplação em seu eu alienado. Vai fazer cara de contemplativo para si mesmo, como uma criança em frente ao espelho, vai cultivar uma aparência contemplativa que lhe pareça apropriada e que goste de ver em si mesmo. Ademais, o fato de seu diligente narcisismo estar voltado para o interior e alimentar-se de si mesmo em quietude e secreto amor o levará a crer que sua experiência de si mesmo é uma experiência de Deus.
Mas o "eu" exterior, o "eu" dos projetos, das finalidades temporais, o "eu" que modifica os objetos para tomar posse deles, é estranho ao "eu" interior e oculto, que não tem projetos, que não busca realizar nada, nem mesmo a contemplação. O "eu" interior busca simplesmente ser e mover-se (pois é algo dinâmico) segundo as misteriosas leis do Ser enquanto tal e em conformidade com as ordenações de uma liberdade superior (a de Deus), em vez de planejar e realizar de acordo com seus próprios desejos.
Seria realmente uma ironia se o eu exterior se voltasse para algum aspecto de si mesmo e o manipulasse sutilmente, como para tomar posse de um segredo contemplativo, imaginando que essa manipulação possa de algum modo conduzir ao afloramento do eu interior, pois este é justamente o eu que não pode ser enganado nem manipulado por ninguém, nem mesmo pelo diabo. Ele é como um tímido animal silvestre, que nunca se mostra na presença de seres estranhos e que só se manifesta quando tudo está perfeitamente pacífico, em quietude, quando está só e não é perturbado por nada. O eu interior não pode ser seduzido por nada nem ninguém, pois responde somente à atração da liberdade divina.
Triste é o caso do eu exterior que se imagina contemplativo e busca alcançar a contemplação por meio do esforço planejado e da ambição espiritual. Ele adotará as mais diversas atitudes, meditará no significado interior de suas próprias poses e tentará fabricar para si uma identidade contemplativa. No entanto, não há nenhum eu real ali para corresponder a essa identidade forjada. Há apenas um "eu" ilusório, fictício, que busca a si mesmo, que luta para criar-se do nada, somente mantido no ser por sua compulsão, prisioneiro de sua própria ilusão pessoal.
O chamado para a contemplação não é e nunca poderá ser dirigido a um "eu" assim.
MERTON, Thomas. A Experiência Interior. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 7-10.
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