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Conhece-te a ti mesmo em Deus


A expressão conhece-te a ti mesmo do Oráculo de Delphos, comumente atribuída a Sócrates, recebe uma grande importância e significação dentro do campo cristão. Os mestres do espírito sempre recomendaram largamente a prática deste mandamento. É a maiêutica cristã, presente em Santa Catarina de Sena, onde o “conhece-te a ti mesmo” vem sempre acompanhado do “em Deus”, sem o qual, o projeto se tornaria, enfim, impossível. Vejamos...

O Papa Bento XVI, num de seus discursos, afirmou que o que norteia a verdadeira compreensão do mundo e de todas as coisas é Deus. Sem Ele, o mundo e a realidade seriam um enigma indecifrável, exposto a toda e qualquer interpretação subjetiva e tendenciosa. Mas, se cremos que há uma verdade sobre as coisas, cremos também que há um caminho para se chegar até ela. Não podemos supor que para chegar numa determinada cidade, podemos trilhar por qualquer via que se nos apresente. Para um dado fim, um meio correspondente. Para se matar a fome, não se espera que alguém faça jejum ou vá correr numa pista. O meio correspondente para este fim seria o de se alimentar. Para alcançarmos a verdade, importa retirarmos todo o erro, e reconhecermos o que é real. Como nos diz S. Gregório de Nissa, o conhecimento da Verdade exige de nós, não somente reconhecer o certo, mas também, identificar o erro, mesmo que este venha mesclado de verdade. Pois bem, para fugirmos do subjetivismo, temos que afirmar uma realidade objetiva, que existe independentemente se alguém a encontra ou não. Eu não posso negar que exista uma plantinha no fundo de um rio só porque eu nunca a encontrei ou vi. Crendo ou não crendo, a plantinha está lá. Deus é o que sustenta o mundo e nEle se encerra o segredo de todas as coisas. Isto nos diz o Apóstolo S. João ao escrever: “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Por Ele tudo foi feito, e sem Ele, nada do que foi feito se fez”. E, se tudo recebe sua real significação à luz da divindade, diferentes não somos nós, pois João também diz: “E o Verbo era a luz dos homens”, sem falar que o “tudo” logicamente nos inclui.

Pois bem. Em toda a história do espírito, homens e mulheres reconheceram a necessidade (e não capricho) do conhecimento de si mesmo, mas tal conhecimento se torna impossível e viciado sem Deus. Deus nos formou, nos modelou, nos chamou à existência e nos sustenta nela. Desprezar este aspecto do papel fundamental da divindade na existência humana é uma mutilação formidável, sem falar que, sem Deus, não nos resta nada. Triste e ridícula a pretensão de quem se lança a interpretar as coisas, a partir de uma negligência do aspecto espiritual do ser humano. Estes são os “idiotas” que, uma vez que consideram somente aquilo que experimentam sensivelmente aqui, e não buscam suas bases ou seu termo, isto é, estão sempre no mesmo (idios – daí o “idiota”) superficial e aparente, caem no engano de si próprios e se distanciam de qualquer possibilidade de reto julgamento das coisas.

Deus diz a Santa Catarina de Sena para que nunca abandone a “Cela do auto-conhecimento”. São Francisco de Assis, durante uma de suas experiência, foi espionado por um irmão que o via repetir: “quem és Tu? Quem sou eu?”. Ao ser interrogado sobre o significado de tais palavras, afirmou que, naquele momento, estava recebendo dois lumes de contemplação: uma relacionada a Deus e sua Bondade Infinita, outra sobre ele mesmo e sua grande miséria. Todos os demais místicos (não preciso nem falar de S. João da Cruz, acredito, pra que não me achem tendencioso) afirmam a importância do auto-conhecimento. Durante a escada de ascensão até a união com Deus, a alma deverá passar pela experiência de se reconhecer como de fato é e perceber a própria pecaminosidade. Diante desta consideração real das coisas, aprenderá a ser humilde e não confiar em si mesma. E é justamente isto que ensina Sta Teresa D’Ávila, dizendo que a humildade é a verdade, porque ela nos permite ver quem somos realmente. Do perfeito conhecimento de si mesmo, provém uma virtude admirável: o perfeito desprezo de si mesmo. O verdadeiro e profundo amor a Deus não se dá sem este componente. É importante ressaltar que, juntamente com o conhecimento de si mesmo, Deus vai dando também o conhecimento dEle. Do primeiro provém o desprezo de si, e do segundo, o perfeito amor a Deus. Ainda, pelo desprezo de si mesmo, a alma, fazendo-se guerra, domar-se-á, tornando-se senhora de si. Este é o modelo de uma alma madura, que não cede às inclinações sensíveis das paixões, fazendo delas pouco caso. E, enfim, dona de si mesmo, poderá dar-se totalmente a quem ama.

Para que o conhecimento de si possa acontecer, convém dedicar-se a este fim, a partir da proximidade com Aquele que conhece-nos mais do que nós mesmos. Isto quer dizer que, para saber quem realmente somos, devemos nos procurar em Deus. Se assim não fazemos, corremos o risco de nos tornarmos pessoas diferentes do que somos, pessoas que nunca foram criadas por Deus e que, tornando-se inexistentes e estranhas a Deus, terão de ouvir, no último dia, um doloroso “não vos conheço”. Neste sentido, não tenho medo de duvidar da eficácia de certas espiritualidades puramente exteriores, seja no caráter social, seja no das “experiências sensíveis”. Embora de campos opostos, seguem a mesma orientação, a saber, a falta total de orientação. A grande diferença de espiritualidades é válida e querida por Deus, mas exige, se for autêntica, a plena identificação nos traços essenciais, e o conhecimento de si mesmo, acompanhado do desprezo de si mesmo, está em todas elas. O amor próprio sempre foi inimigo dos santos e dos cristãos. De onde, pois, surge esta história contemporânea de que uma pessoa tem que se amar? Será que veio realmente de Deus? Quais os frutos disso? Teria Deus mudado? Mas S. Paulo nos diz que Deus nunca muda, verdade reafirmada por Sta Teresa. O Apóstolo também nos adverte: “se alguém, mesmo que seja um anjo, vos anunciar um Evangelho diferente do que vos temos anunciado, que seja anátema”. Prefiro ficar com os Apóstolos, com os doutores e místicos e com os ensinamentos reais da Santa Igreja, do que com uma “espiritualidade da moda”, tão comum hoje em dia. Que, enfim, Deus nos ensine a amá-lo com verdade, sem fingimentos... Mas, como saber se realmente amamos a Deus, sem interesses? Conhece-te a ti mesmo, e só então, poderás ser sincero. Esta é a via. Mas, se queres enveredar por aí, prepara-te para não te apreciares e, portanto, prepara-te para ser livre.
Fábio Luciano
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