A Teologia da Libertação procurou dar ao cristianismo, cansado dos dogmas, uma nova práxis por meio do qual a redenção seria finalmente alcançada. Porém, essa práxis deixou atrás dela a destruição em vez de trazer a liberdade. Assim, restou-nos o relativismo e a possibilidade de arranjar-se com este. Mas o que o relativismo oferece é, por sua vez, tão vazio que as teorias relativistas procuram ajuda na Teologia da Libertação, a fim de se tornarem exequíveis. A New Age diz, finalmente, que devemos deixar a experiência fracassada do cristianismo e voltar para os deuses, pois assim viveremos melhor.
(...) Gostaria de mencionar dois pontos que se impõem, desde Hick e Knitter. Os dois se apóiam na exegese para a sua recusa da fé cristã. Afirmam que a exegese teria provado que Jesus Cristo não se considerava, em absoluto, Filho de Deus, o Deus encarnado, mas que teriam sido seus discípulos que, mais tarde, impuseram-nos aos poucos essa crença. Ambos recorrem, além disso, à evidência filosófica. Hick asseguram-nos que Kant teria irrefutavelmente provado que nem a realidade absoluta nem o próprio Absoluto podem aparecer na História e, portanto, também não podem ser nela reconhecidos como tais. Partindo da estrutura do nosso conhecimento, não se pode dar - segundo Kant - o que á fé cristã afirma: os milagres, os mistérios e os canais da graça seriam ilusões da fé, assim nos esclarece Kant na sua obra A religião nos limites da mera razão. A questão da exegese e a dos limites e possibilidades da nossa razão, ou seja, das premissas filosóficas da fé, parecem-me mostrar o verdadeiro núcleo da crise da teologia atual, a partir do qual a fé - e cada vez mais a fé das pessoas simples - entra em crise.
Queria, aqui, apenas esboçar a tarefa que temos à nossa frente. Antes de mais nada, no que se refere à exegese, seria necessário dizer que Hick e Knitter certamente não se podem referir à exegese em geral, como se o que dizem fosse um resultado claro e reconhecido por todos. Isso é impossível. A pesquisa histórica não conhece essas certezas. Mais impossível ainda se torna quando a questão não é puramente histórica ou literária, mas envolve decisões sobre valores que vão além de uma simples constatação do passado ou da mera interpretação dos textos. É certo, no entanto, que em uma visão global da exegese moderna pode ficar uma impressão que corresponde àquela de Hick e Knitter.
Que certeza podemos atribuir a isso? Se pressupormos que a maioria dos exegetas pense assim (o que é duvidoso), permanece por´me a pergunta: em que se fundamenta essa opinião da maioria? A minha tese se baseia em que, se muitos exegetas pensam com Hick e Knitter e reconstroem a história de Jesus de acordo com essas idéias, é porque compartilham a sua filosofia. Não é a exegese que verifica a filosofia, mas a filosofia que faz surgir esse tipo de exegese. Se eu, a priori (falando com Kant) sei que Jesus não pode ser Deus, que milagres, mistérios e meios da graça são espécies de superstição, então também não posso deduzir dos livros sagrados fatos impossíveis. Só posso entender por que e como se chegou a tais afirmações, como se foram paulatinamente formando.
Examinemos as coisas mais detalhadamente. O método histórico-crítico é um instrumento excelente para ler as fontes históricas e interpretar textos. Mas esse método implica uma filosofia, uma filosofia própria de que, em geral, quase não se dá conta. Porque então apenas pretendo conhecer o passado, e nada mais. Mas, mesmo então, meu estudo não se dá com isenção de valores, e é nesse ponto que o método apresenta seus limites. Quando o método histórico-crítico se aplica à Bíblia, aparecem muito claramente dois fatores que antes mal se observavam. Deseja-se conhecer o passado como passado; quer-se captar o mais exatamente possível o que aconteceu no passado, na sua condição do então sucedido, e no contexto, também passado, em que os fatos se situavam. O método pressupõe que a história é, em princípio, uniforme; o homem, em toda sua diferenciação, e o mundo, em toda a sua multiplicidade, estão ambos determinados pelas mesmas leis e pelos mesmos limites, de tal maneira que posso saber o que é impossível que aconteça. O que hoje não pode acontecer, também ontem não podia acontecer e também não irá acontecer amanhã.
Aplicado à Bíblia, isto significa que um texto, um acontecimento, uma pessoa se encontram estritamente fixados no seu passado. Pretende-se saber o que disse o autor da época acerca daquele tempo, ou o que podia ter dito ou pensado. O que importa é o "histórico", o "de então". Por isso a exegese crítico-histórica não introduz a Bíblia no tempo de "hoje", na minha vida atual. Isso está excluído. Ao contrário, afasta-a de mim e revela-a como fortemente assentada no passado. Esse pondo da exegese histórico-crítica, essa pretensão de ser ela única, suficiente, foi com razão criticado por Drewermann. Dada essa especificidade, essa exegese não fala do hoje, não fala de mim, mas do ontem e dos outros. Por isso, também nunca pode mostrar-nos o Cristo de hoje, de amanhã e da eternidade. Se quiser permanecer fiel a si mesma, mostrará apenas o Cristo de ontem.
Há ainda um segundo pressuposto, a similaridade do mundo e da história; aquilo a que Bultmann denomina "a idéia moderna do mundo". M. Waldstein mostrou, em cuidadosa análise, que a teoria do conhecimento de Bultmann foi totalmente determinada pelo neokantismo de Marburgo. Por este sabia Bultmann o que pode existir e o que não pode. Em outros exegetas, a consciência filosófica acha-se menos marcada, mas o fundamento na teoria do conhecimento de Kant está sempre implicitamente presente como acesso hermenêutico evidente, que orienta sempre o caminho da crítica. Assim sendo, a autoridade eclesiástica implicitamente presente como acesso hermenêutico evidente, que orienta sempre o caminho da crítica. Assim sendo, a autoridade eclesiástica (...) deve exortar que a filosofia revise criticamente o próprio método. Afinal, trata-se da revelação divina; de se Ele, o Deus vivo e verdadeiro, entrou ou não em nosso mundo. Trata-se de ver se Ele penetrou em nosso mundo rompendo o cárcere das nossas teorias, com cujas grades queremos, precisamente, proteger-nos contra essa vinda de Deus a nossas vidas.
Graças a Deus, hoje, na crise da filosofia e da teologia que vivemos, acha-se em curso, na exegese, uma nova reflexão sobre os fundamentos, que chegou a outros esclarecimentos importantes por meio de uma interpretação histórica mais cuidadosa dos textos. Esses novos conhecimentos ajudam, sem dúvida, a romper a prisão das decisões filosóficas prévias que paralisam a autêntica interpretação. A amplidão da Palavra abre-se de novo.
O problema da exegese coincide, em grande parte, como vimos, com o problema da filosofia. A carência sentida pela filosofia, o estado lastimável a que foi conduzida por uma razão reduzida no sentido positivista, produziu uma situação difícil para a nossa fé. A fé não poderá ser livre, se a própria razão não se abrir de novo. Se a porta do conhecimento metafísico permanece fechada, se os limites estabelecidos por Kant para o conhecimento humano são intransponíveis, então a fé se atrofia: falta-lhe simplesmente ar para respirar. Sem dúvida alguma, a tentativa de servir-se de uma razão fortemente autônoma, que não quer saber de fé, e que, por assim dizer, para sair do pântano das incertezas em que caiu, puxa a si mesma pelos próprios cabelos, dificilmente terá êxito. Porque a razão humana não é autônoma. Vive sempre em contexto históricos. As dependências históricas turvam-lhe o olhar (é o que constatamos). Por isso, precisa também da ajuda que lhe vem da história, para passar por cima de suas barreiras históricas.
(...) Não é função menor da fé oferecer curas para a razão como tal; a fé não a violenta, não se lhe mantém alheia, porém a reconduz de novo a si mesma. O instrumento histórico da fé pode libertar a razão como tal, de maneira que - levada ao próprio caminho pela fé - possa ver por si mesma. Temos de esforçar-nos por encontrar um caminho de diálogo entre fé e razão, pois ambas se necessitam mutuamente. A razão sem a fé não é saudável, mas a fé sem a razão não será humana.
Se considerarmos a presente constelação da história das idéias, da qual procurei dar algumas indicações, parece um milagre que, apesar de tudo, ainda se creia como cristão, com a fé plena e serena do Novo Testamento, da Igreja de todos os tempos, e não simplesmente nas formas sucedâneas de Hick, Knitter e outros mais. Por que a fé continua sendo ainda uma oportunidade? Eu diria: porque ela corresponde à natureza do homem. Pois o homem tem dimensões mais amplas do que as que quiseram ver e admitir Kant e as diversas filosofias pós-kantianas. O próprio Kant teve de aceitá-lo, de alguma maneira, nos seus postulados. No homem vive indelével o anseio do infinito. Nenhuma das respostas dadas foi suficiente: apenas o Deus que se fez a si mesmo finito, para romper a nossa finitude e nos conduzir à imensidade da sua infinitude, responde ao questionamento do nosso ser. Por isso, hoje, a fé cristã recuperará o homem. A nossa missão é servir a Deus com ânimo humilde, com toda a força do nosso coração e do nosso entendimento.
Joseph Ratzinger, Fé, Verdade e Tolerância, Parte II, Cap I. pp. 122-128.
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