Há duas maneiras, aqui na terra de alguém pertencer a outrem e de depender de sua autoridade. São a simples servidão e a escravidão, donde a diferença que estabelecemos entre servo e escravo. Pela servidão, comum entre os cristãos, o homem se põe a serviço de outro por um certo tempo, recebendo determinada quantia ou recompensa. Pela escravidão, um homem depende inteiramente de outro durante toda a vida, é dever servir a seu senhor sem esperar salário nem recompensa alguma, como um dos animais sobre que o dono tem direito de vida e morte.
Há três espécies de escravidão: por natureza, por constrangimento e por livre vontade. Por natureza, todas as criaturas são escravas de Deus: "Domini est terra et plenitudo eius" (Sl 23,1). Os demônios e os réprobos são escravos por constrangimento; e os justos e os santos o são por livre e espontânea vontade. A escravidão voluntária é a mais perfeita, a mais gloriosa aos olhos de Deus, que olha o coração (IRs 16, 7) que pede o coração (Pr 23,26) e que é chamado o Deus do coração (Sl 72,26) ou da vontade amorosa, porque, por esta escravidão, escolhe-se, sobre todas as coisas, a Deus e Seu serviço, ainda quando não o obriga a natureza.
A diferença entre um servo e um escravo é total: 1- Um servo não dá a seu patrão tudo o que é, tudo o que possui ou pode adquirir por outrem ou por si mesmo; mas, um escravo se dá integralmente a seu senhor, com tudo o que possui ou possa adquirir, sem nenhuma exceção. 2- O servo exige salário pelos serviços que presta a seu patrão; o escravo, porém, nada pode exigir, seja qual for a assiduidade, a habilidade, a força que empregue no trabalho. 3- O servo pode deixar o patrão quando quiser, ou ao menos quando expirar o tempo de serviço, mas o escravo não tem esse direito. 4- O patrão não tem sobre o servo direito algum de vida e morte, de modo que, se o matasse como mata um de seus animais de carga, cometeria um himicídio; mas, pelas leis, o senhor tem sobre o escravo o poder de vida e morte; de modo que pode vendê-lo a quem o quiser, ou matá-lo, como, sem comparação, o faria a seu cavalo. 5- O servo, enfim, só por algum tempo fica a serviço de um patrão, enquanto o escravo o é para sempre.
Só a escravidão, entre os homens, põe uma pessoa na posse e dependência completa de outra. Nada há, do mesmo modo, que mais absolutamente nos faça pertencer a Jesus Cristo e à Sua Mãe Santíssima do que a escravidão voluntária, conforme o exemplo do próprio Jesus Cristo, que, por nosso amor, tomou a forma de escravo: "formam servi accipiens" (Fl 2,7), e da Santíssima Virgem, que se declarou a escrava do Senhor (Lc 1,38). O Apóstolo honra-se várias vezes em suas epístolas com o título de "servus Christi". A Sagrada Escritura chama muitas vezes os cristãos de "servi Christi", e esta palavra "servus", conforme a observação aceitada de um grande homem, significava, outrora, apenas escravo, pois não existiam servos como os de hoje, e os ricos só eram servidos por escravos ou libertos. E para que não haja a menor dúvida de que somos escravos de Jesus Cristo, o Concílio de Trento usa a expressão unequívoca "mancipia Christi", e no-la aplica: escravos de Jesus Cristo. Isto posto:
Digo que devemos pertencer a Jesus Cristo e servi-lo, não só como servos mercenários, mas como escravos amorosos, que, por efeito de um grande amor, se dedicam a servi-Lo como escravos, pela honra exclusiva de Lhe pertencer. Antes do batismo, éramos escravo do demônio; o batismo nos fez escravos de Jesus Cristo. Importa, pois, que os cristãos sejam escravos ou do demônio ou de Jesus Cristo.
Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem
Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Fique à vontade para comentar. Mas, se for criticar, atenha-se aos argumentos. Pax.