Sem dúvida, muito do que se debate hoje é de sumo valor. Sobretudo, quando o assunto é a defesa da Fé, as questões doutrinais, uma reta catequese. Porém, certas discussões a respeito de qual o tipo de vida ideal poderiam ser evitadas se as pessoas atentassem a um simples fato: nem todos têm a mesma vocação. Cada um recebe um chamado e isto é natural. Revela-se inútil, portanto, que um contemplativo force um vocacionado à vida ativa a abandonar seus afazeres para dedicar-se integralmente à contemplação, assim como é também desinteressante que um ativo reclame de um contemplativo porque, aparentemente, nada faz. Este último tipo de crítica é mais comum, porque, num tempo onde a superficialidade impera, o fenomenalismo é uma tentação, embora seja típico de pessoas míopes.
Transcrevo, aqui, parte de livro onde o autor explica bem esta diferença. Muito esclarecedor...
A transcrição é um pouco longa e podem ter pontos obscuros.
As linhas que seguem se inserem dentro da tradição da teologia apofática ou negativa.
Qualquer coisa, é só perguntar.
Boa leitura.
"No Evangelho de São Lucas está escrito que, quando Nosso Senhor se encontrava em casa de Marta, irmão de Maria, Marta ocupava-se de lhe preparar a refeição, enquanto Maria se quedava sentada aos pés do Mestre. E ouvindo a sua palavra, ela não prestava a atenção às ocupações da irmã, conquanto fossem muito boas e santas, já que pertenciam à primeira parte da vida activa. E também não reparava na preciosidade daquele corpo bendito, nem naquela doce voz, nem nas palavras da humanidade do Senhor, ainda que tudo isso fosse melhor e mais santo, pois pertencia à segunda parte da vida activ e à primeira da vida contemplativa. Maria voltava-se, pois, para a sabedoria suprema da divindade do Senhor, velada nas palavras obscuras da sua humanidade, e nisto se fixava com todo o amor do seu coração. Com efeito, dali não se queria afastar, por nada do que pudesse ver ou ouvir ao seu redor; antes permanecia sentada, muito quieta em seu corpo...
(...) quando Marta se queixou a nosso Senhor, exigindo que a irmã se erguesse e prestasse auxílio, para não ter de arcar sozinha com os trabalhos e fadigas, Maria permaneceu sentada, muito quieta, e não disse palavra de resposta, nem teve nenhum gesto de ressentimento contra a irmã, por causa de qualquer um dos seus queixumes. E nada disto admira, pois ela tinha outro trabalho para fazer, que Marta desconhecia. Portanto, não tinha vagar para a ouvir, nem para responder à sua queixa.
Sim, amigo, todas as obras, palavras e gestos que ocorreram entre Nosso Senhor e estas duas irmãs servem de exemplo a todos os activos e contemplativos da Santa Igreja, até ao dia do juízo final. Maria representa os contemplativos, porque eles devem conformar a sua vida com a dela; Marta representa os activos, do mesmo modo e por análoga razão.
Assim como Marta outrora se queixava de Maria, assim também, ainda hoje, os activos se queixam dos contemplativos. De facto, suponhamos que alguém de um meio secular ou de uma ordem religiosa se sente chamado a abandonar toda a ocupação exterior, para se entregar plenamente à vida contemplativa. Que acontece a quem é tocado deste modo pela graça, dando ouvidos a conselhos espirituais? Que sucede a quem adopta um tal gênero de vida, segundo a luz dos seus conhecimentos e os ditames da sua consciência, com a aprovação do director espiritual? No mesmo instante, os seus irmãos e irmãs, todos os seus amigos íntimos, e muitos outros que não conhecem as suas moções interiores nem o seu estilo de vida, se voltam contra ele com duras críticas e asperamente lhe dizem que a sua conduta não faz sentido. E logo se põem a desfiar um rosário de falsas histórias, com histórias verdadeiras à mistira, falando sobre a queda de homens e mulheres que se votaram ao mesmo gênero de vida no passado. Mas nunca hão-de citar o bom exemplo de alguém que se aguentou de pé!
(...) Alguns poderiam pensar que eu não presto a devida honra a Marta, essa santa especial, pois comparo as suas palavras de protesto contra a irmã às palavras da gente do mundo. A verdade, porém, é que não pretendo faltar com respeito nem a Marta nem às pessoas do mundo. E o Senhor me livre de, nesta obra, eu fazer a mais pequena crítica aos seus servos de qualquer grau, dizendo alguma coisa em desabono da sua santa especial. De facto, penso que se eve relevar totalmente a queixa de Marta, tendo em conta a ocasião e o modo como a fez. A causa do que ela disse foi a ignorância; mas não nos deve admirar que, na altura, ela não soubesse qual era a ocupação de Maria, pois estou em crer que, até ali, ainda mal tinha ouvido falar de semelhante perfeição. Por outro lado, a santa também se exprimiu com toda a cortesia e em breves palavras, pelo que sempre a devemos considerar plenamente desculpada.
Assim, a meu ver, as pessoas de vida activa, inseridas no mundo, também devem obter o perdão para as suas palavras de protesto acima referidas, muito embora falem de maneira rude, pois é necessário atender à ignorância de que são vítimas. Com efeito, assim como Marta estava muito pouco ciente do que fazia a sua irmã, quando se queixava dela a Nosso Senhor, assim tambem os nossos contemporâneos sabem muito pouco ou nada do que pretendem os jovens discípulos de Deus, quando se retiram dos negócios do mundo, para se tornarem servos especiais do mesmo Deus, na santidade e rectidão de espírito. E, se alguma coisa em verdade soubesse, eu atrever-me-ia a dizer que os nosso coevos teriam outra linguagem e comportamento.
(...) Por conseguinte, na minha opinião, os consagrados à vida contemplativa não se deviam limitar a ser indulgentes para com as práticas dos activos; mas seria também conveniente que se aplicassem de tal modo à sua ocupação espiritual que nem sequer prestasse atenção ao que as pessoas fazem ou dizem à sua volta. Foi esta a conduta de Maria, nosso modelo, quando Marta se queixou a Nosso Senhor. E se nós a quisermos imitar, Nosso Senhor fará por nós, ainda hoje, o mesmo que outrora fez por ela.
Que sucedeu, então? Vejamos como agiu o nosso amado Senhor Jesus Cristo, para quem nada existe de secreto nem oculto: Marta pediu-lhe que assumisse o papel de juiz e dissesse a Maria que tratasse de colaborar em O servir; Ele percebeu, no entanto, que o espírito de Maria se encontrava fervorosamente ocupado em amar a sua divindade; assim, pelo modo mais cortês e conveniente, segundo os ditames da razão, Ele próprio, o Senhor, respondeu por aquela contemplativa, a qual nem sequer se defendia a si mesma, para não interromper o amor que Lhe devotava. E como respondeu Ele? Certamente que não assumiu o papell de mero juiz, a pedido de Marta, mas antes, como advogado, tomou a defesa legal de quem O amava. Disse: "Marta, Marta!" Para ser mais eficaz, duas vezes a chamou pelo nome, pois queria que ela O ouvisse e prestasse atenção às suas palavras. "Andas inquieta - prosseguiu o Senhor - e estás perturbada com muitas coisas". De facto, os activos andam sempre atarefados, e têm sempre de se preocupar com variadíssimas coisas, primeiro, para proverem às suas próprias necessidades e, depois, para realizarem obras de misericórdia em favor do próximo, como exige a caridade. E o intuito do Senhor, ao falar a Marta daquele modo, era fazê-la saber que a ocupação dela era boa e proveitosa para a saúde da alma. Contudo, para que ela não pensasse que o seu trabalho era o melhor que se poderia empreender, o Senhor acrescentou: "Mas uma só coisa é necessária".
E que é esta coisa única necessária? É, sem dúvida, amar e render louvor só a Deus exclusivamente, pondo tal ocupação acima de qualquer outra, material ou espiritual, que se possa levar a efeito. E para que Marta não pensasse que poderia chegar tão alto, enquanto se ocupava das necessidades desta vida, Nosso Senhor quis afiançar-lhe que ela não poderia servir a Deus senão imperfeitamente, dedicando-se a ocupações materiais e espirituais em simultâneo. Assim, o Senhor acrescentou que Maria escolhera a melhor parte, que nunca lhe seria tirada.
Verdadeira explicação do seguinte passo do Evangelho: "Maria escolheu a melhor parte".
Que significa a afirmação de que Maria escolheu o óptimo? Sempre que se propõe ou nomeia o óptimo, postulam-se duas coisas - o bom e o melhor -, pois só assim temos o óptimo, que vem em terceiro lugar. Dito isto, quais são as três coisas boas, dentre as quais Maria escolheu a melhor de todas? Não são três espécies de vida, pois a Santa Igreja apenas reconhece duas: a vida activa e a vida contemplativa, e estas encontram-se figuradas, no relato evangélico, pelas duas irmãs, Marta e Maria. Sem adoptar uma ou outra destas vidas, ninguém se pode salvar; mas também, não sendo elas mais que duas, não se pode escolher uma que seja óptima, em sentido estrito.
Só existem, pois, duas vidas, mas ambas ligadas perfazem três partes, cada uma das quais melhor do que a precedente. (...) Efectivamente, segundo referi, a primeira parte, vemo-la de pé, ocupada em praticar obras corporais de misericórdia e caridade, boas e honestas; equivale ao primeiro grau da vida activa, conforme também já afirmei. Por seu turno, a segunda parte das duas vidas a que me reporto está deitada, absorvida em meditações espirituais salutares, durante as quais o ser humano considera a sua própria miséria, a Paixão de Cristo e as alegrias do Céu. A primeira parte é boa, mas a segunda é melhor, pois equivale ao segundo grau da vida activa e ao primeiro da vida contemplativa. Nesta segunda parte é que a vida contemplativa e a vida activa se unem em parentesco espiritual e se convertem em autênticas irmãs, à semelhança de Marta e Maria.
A terceira parte das duas vidas mencionadas está suspensa na escura nuvem do não-saber e abunda em impulsos de amor secreto, cujo alvo exclusivo é Deus somente. A primeira parte é boa, a segunda é melhor, mas a terceira é a melhor de todas. É esta a melhor parte de Maria. Por isso, é necessário compreender bem que nosso Senhor não disse: - "Maria escolheu a vida melhor de todas" - , pois não existem senão duas vidas, e onde só há duas realidades, não se pode escolher uma que seja a melhor de todas. Mas destas duas vidas "Maria escolheu" - disse o Senhor - "a parte melhor de todas, que nunca lhe será tirada".
A primeira parte e a segunda, embora sejam boas e santas, terminam com a vida presente. Com efeito, na outra vida, já não haverá necessidade, como agora, de praticar obras de misericórdia, nem de chorar por causa da nossa miséria ou da Paixão de Cristo. Então, ninguém terá fome nem sede, nem morrerá de frio, nem andará doente, nem se encontrará sem abrigo ou na prisão; tão-pouco será necessário enterrar seja quem for, porque ninguém morrerá. Contudo, a terceira parte, que Maria escolheu, seja escolhida igualmente por quem ouvir o apelo da graça. Ou melhor: quem Deuys tiver escolhido para essa parte, deixe-se inclinar para ela com gosto. Tal parte nunca lhe será tirada, pois começa aqui, mas durará para todo o sempre.
Por conseguinte, que a voz de Nosso Senhor brade aos activos, como se no presente lhes estivesse falando em nosso favor, do mesmo modo que outrora falou a Marta em favor de Maria: "Marta, Marta!" - "Activos, activos!, ocupai-vos quanto puderdes na primeira e na segunda parte, ora numa ora noutra, e se quiserdes e vos aprouver, em ambos os casos utilizai os vossos sentidos. Mas deixai em paz os contemplativos. Vós não sabeis o que se passa com eles. Deixai-os permanecer sentados, em seu descanso e recreio, com a terceira e melhor parte de Maria.
Doce era o amor recíproco entre Nosso Senhor e Maria. Ela, que muito O amava, era amada por Ele mais ainda. Na verdade, quem observasse com atenção o comportamento de um para com o outro (...) verificaria que ela se dava a amá-Lo tão intensamente que nenhum ser inferior a Ele a podia confortar, nem tão-pouco reter-lhe o coração. Aliás, era precisamente Maria que, ao procurar o Senhor no sepulcro, com lágrimas escorrendo-lhe pela face, não permitia que os anjos a consolassem. Eles dirigiam-lhe palavras doces e afectuosas, dizendo: "Não choreis, Maria, porque Nosso Senhor, a quem procuras, ressuscitou, e tu O hás-de possuir e contemplar, vivo e cheio de beleza, entre os seus discípulos, na Galiléia, como Ele mesmo prometeu". Ela, porém, não sustinha o pranto, pois, a seu ver, quem buscava o Rei dos anjos não devia fazer caso de simples mensageiros.
E que mais? Certamente, quem examinar com cuidado o relato evangélico, deparará com muitos actos maravilhosos de amor perfeito que Maria realizou. Todos eles foram registrados para nos servir de exemplo (...) E se alguém quiser ver com os próprios olhos, nas páginas do Evangelho, o amor maravilhoso e especial de Nosso Senhor para com Maria, que personifica todos os pecadores inveterados sinceramente convertidos e chamados à graça da contemplação, verificará que o mesmo Nosso Senhor não permitia a ninguém - nem sequer a Marta, que era irmã! - pronunciar uma única palavra contra Maria, por quem Ele mesmo tratava de responder. (...) Ora, isto era a prova de um grande amor, um amor inexcedível!"
A Nuvem do Não Saber, Anônimo do Século XIV
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