Nada se iguala à paixão dos historiadores do Renascimento pelo individualismo, pela independência do espírito e pela rebelião contra o princípio de autoridade, se não fosse a docilidade com a qual se copiam uns aos outros e dogmatizam sobre essa Idade Média, sobre a qual, na realidade, sabem apenas pouca coisa. O fato de essa atitude ser comum seria sem importância; mas que aqueles que assim falam de coisas que ignoram se posicionem como defensores da razão e da observação pessoal, e que acusem de ceder ao preconceito aqueles que se permitem discutir os seus, seria triste, se não fosse cômico. A indiferença aos fatos, o desprezo pela observação direta e pela informação pessoal, o hábito de responder a tudo em nome de hipóteses que se tomam por evidências, o dogmatismo ingênuo com o qual acusam de falta de espírito crítico aqueles que, em nome de fatos observáveis, se permitem pôr em dúvida o valor de suas posições, enfim, todas essas falhas com as quais eles compõem sua Idade Média, e que sem dúvida aí prosperaram como em todas as épocas da história, dariam um quadro bastante fiel de sua própria atitude. Todas as falhas de que acusam a Idade Média, eles as têm.1
Diante de tal desacordo dos fatos e da teoria, poder-se-ia acreditar que a teoria consentirá enfim em ceder. Que nos desenganemos, e é aqui, na verdade, que atingimos o nós do problema. A interpretação do Renascimento e da Idade Média que temos sob os olhos não é de forma alguma, como poderíamos acreditar, uma hipótese histórica sujeita aos fatos. É um mito. Um mito como tal não é discutível. Não são os fatos que o justificam, é ele quem dita os fatos.2
1. Étienne Gilson, Heloísa e Abelardo, Cap. VIII, pp. 153-154
2. ibidem, pp. 156-157
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