Deus Pai a Sta Catarina de Sena
Para ajudar-vos a deixar o mundo e chegar à vida eterna, foi preciso que eu reconstruísse a estrada interrompida. Com material puramente humano, era impossível fazer uma ponte de envergadura tal, que atravessasse o rio do pecado e atingisse a vida eterna. Vossa natureza humana era incapaz de satisfazer pela culpa e de cancelar a mancha do pecado de Adão, mancha que estragara a humanidade e lhe dera o mau cheiro da culpa. Ocorreu que o humano se unisse à Deidade eterna; somente assim foi possível dar satisfação por todos os homens. A natureza humana iria padecer e a divina aceitaria o sacrifício em meu Filho, sacrifício oferecido na intenção de retirar-vos da morte e restituir-vos a vida. Desse modo, o Altíssimo humilhou-se ao plano do humano e das duas naturezas construiu a ponte, desobstruindo a estrada. Para quê? A fim de que vós pudésseis ser felizes com os anjos. Todavia, de nada adiantaria terdes meu Filho como ponte, se não a atravessásseis.
Descrição da Ponte
(...) Quero descrever-te a ponte. Já disse que ela se estende do céu à terra, graças à união (hipostática) que realizei com o homem formado do limo da terra. Essa ponte é meu Filho e possui três degraus; dois deles foram construídos no madeiro da cruz e o terceiro, quando ele na amargura bebeu fel e vinagre. Em tais degraus reconhecerás três estados da alma, como abaixo explicarei. O primeiro degrau é formado pelos pés; significam o amor, pois como os pés transportam o corpo, assim o (duplo) amor faz caminhar a alma. Os pés cravados na cruz servem-te de degrau para atingir a chaga do peito, que te revela o segredo do coração. Após subir até aos pés pelo amor, o homem fixa o pensamento no coração aberto de Cristo e saboreia sua caridade inefável e consumada. Disse caridade "consumada", porque Cristo vos ama sem interesse pessoal; em nada sois de utilidade para ele, que forma uma só coisa comigo. Vendo-se amada, a pessoa se enche de caridade. Enfim, após atingir o segundo degrau, chega-se ao terceiro, que é a boca de Cristo. Nela o homem encontra a paz, depois (de vencer) a grande guerra contra as próprias culpas. No primeiro degrau o cristão se afasta da afeição terrena, despoja-se dos vícios; no segundo, adquire as virtudes; no terceiro, goza a paz. São três, portanto, os degraus da ponte: passa-se do primeiro ao segundo, para atingir o último. A ponte é alta; quando se passa por ela, a água do pecado não atinge a alma. Em Jesus não houve pecado.
Cristo atrai a si todas as coisas
Essa ponte acha-se no alto, mas não separada dos homens. Sabes quando se ergueu? No momento em que Cristo foi elevado no lenho da cruz. Então, a natureza divina continuava unida à vossa pequenez; meu Filho amalgamara-se com a natureza humana. Antes de ser erguida, ninguém passava por tal ponte. Jesus mesmo disse: "Quando eu for elevado, atrairei a mim todas as coisas" (Jo 12,32). Julguei que não havia outra maneira de vos atrair; enviei, pois, meu Filho para ser cravado na cruz, bigorna em que seria fabricado o filho do homem, livrando-o da morte e restituindo-o à vida. Ao manifestar sua imensa caridade, meu Filho atraiu a si todas as coisas. É sempre o amor que atrai o coração humano. Dando sua vida por vós, ele revelou o amor maior (Jo 15,13). Quando não existe no homem a oposição maldosa, a força do amor atrai sempre.
Portanto, segundo quanto afirmou, meu Filho atrairia a si todas as coisas ao ser elevado na cruz. Essa verdade pode ser entendida de duas maneiras. Primeiro, no sentido explicado. Porque o coração humano, ao ser atraído pelo amor, leva consigo todas as faculdades da alma: a memória, a inteligência, a vontade. Quando são harmonizadas e reunidas tais faculdades, todas as ações humanas - corporais ou espirituais - ficam-me agradáveis, pois unem-se a mim na caridade. Foi exatamente para isso que meu Filho se elevou na cruz, trilhando os caminhos do amor cruciante. Ao dizer, "quando eu for elevado, atrairei a mim todas as coisas", ele queria significar: quando o coração humano e as faculdades forem atraídas, todas as demais faculdades e suas ações também o serão. Em segundo lugar, há um outro significado: que todos os seres foram criados para o homem. Os demais seres devem servir ao homem, não ao contrário. Só a mim ele há de servir, com todo o afeto do seu coração. Compreendes, então? Se a humanidade for atraída, todos os demais seres a seguirão, pois para o homem foram criados.
Tal é a finalidade por que a ponte, Cristo, foi colocada no alto, e por que possui três degraus: para ser mais facilmente percorrida.
O material da ponte
O pavimento desta ponte é feito de pedras, a fim de que a chuva (da justiça divina) não retenha o caminhante. "Pedras" são as virtudes verdadeiras e reais. Antes da paixão de meu Filho, elas ainda não tinham sido assentadas, motivo pelo qual os antigos não atingiam o céu, mesmo que vivessem piedosamente. O Paraíso ainda não fora aberto com a chave do Sangue, e a chuva da justiça divina impedia a caminhada. Quando aquelas pedras foram assentadas no corpo do meu Filho - por mim comparado a uma ponte - foram embebidas, amalgamadas e assentadas com sangue. Em outras palavras: o sangue (humano) foi misturado com a cal da divindade e fortemente queimado no calor da caridade. Tais pedras foram postas em Cristo por mim, mas é nele que toda virtude é comprovada e vivificada. Fora de Jesus ninguém possui a vida da graça. Ocorre estar nele, trilhar suas estradas, viver sua mensagem. Somente ele faz crescer as virtudes, somente ele as constrói como pedras vivas, cimentando-as com o próprio sangue. Nele, todos os fiéis caminham na liberdade, sem o medo da justiça divina, pois vão cobertos pela misericórdia, descida do céu no dia da encarnação. Foi a chave do sangue de Cristo que abriu o céu.
Portanto, esta ponte é ladrilhada, seu telhado é a misericórdia. Possui também uma despensa, constituída pela hierarquia da santa Igreja, que conserva e distribui o Pão da vida e o Sangue. Assim, minhas criaturas, viandantes e peregrinas, não fraquejam de cansaço na viagem. Para isto ordenei que vos fosse dado o Corpo e o Sangue do meu Filho, Homem-Deus.
Os dois caminhos
Para atravessar a ponte, chega-se a uma porta, que é o próprio Cristo; por ela todos os homens devem passar. Disse Jesus: "Eu sou o caminho, a verdade, e a vida; quem vai por mim não caminha nas trevas, mas na luz" (Jo 8,12); e em outra passagem afirma que ninguém oide chegar a mim a não ser por meio dele (Jo 14,6). Se ainda bem recordas, foi o que te disse uma vez e fiz ver. Se Jesus diz que ele é o caminho, profere uma verdade. Eu o mostrei a ti na figura de uma ponte; sua afirmação é verdadeira; ele está unido a mim, suma Verdade. Quem o segue caminha na Verdade. Ele é também a Vida; seus seguidores possuem a vida da graça, não padecem fome; ele é o alimento. Nem vivem na escuridão; Jesus é a Luz. Em Cristo não existe mentira. Pela verdade ele confundiu e destruiu a mentira do demônio, enganador de Eva. Aquela mentira destruíra a estrada (do céu); Jesus a reconstruiu no seu sangue. Quem vai por tal caminho é filho da Verdade, atravessa a ponte e chega até mim, Verdade eterna, oceano de paz.
Quem não trilha esse caminho, vai pela estrada inferior, no rio do pecado. É uma estrada sem pedras, feita somente de água, inconsistente; por sobre ela ninguém vai sem se afundar. É o caminho dos prazeres e das altas posições, daqueles cujo amor não repousa em mim e nas virtudes, mas no apego desordenado ao que é humano e passageiro. Tais pessoas são como a água, sempre a escorrer. À semelhança daquelas realidades, vão passando. Eles acham que são as coisas criadas, objeto de seu amor, que se vão; na realidade, também eles caminham continuamente em direção à morte. Bem que gostariam de deter-se, reter na vida, segurar as coisas que amam. Seriam felizes se as coisas não passassem. Perdem-nas todavia, seja por causa da morte, seja pelos acontecimentos com que faço escapar-lhes das mãos os bens deste mundo. Tais pessoas vão pela mentira, por suas estradas; são filhos do demônio, pai da mentira. Entram por essa porta e vão para a condenação eterna.
Mostrei-te, assim, o meu caminho, o da Verdade, e o caminho do demônio, que é o da mentira. São duas estradas. Ambas exigem fadiga. Vê como é enorme a maldade, a cegueira humana. Sendo-lhe preparada a ponte, o homem prefere ir pela correnteza.
A estrada da ponte é muito agradável aos caminhantes. Toda amargura se torna doce; todo peso, leve. Embora na obscuridade dos sentidos, vão na luz; embora mortais, já possuem a vida sem fim. Pelo amor e pela fé, saboreiam meu Filho, Verdade eterna, que prometeu o prêmio para os que por mim se afadigam. Sou grato, reconhecido e justo; pagarei com eqüidade, segundo o merecimento. Toda ação boa será remunerada, assim como toda culpa será punida. Tua linguagem é insuficiente a descrever o gozo concedido a quem segue este caminho; nem teus ouvidos seriam aptos a escutar e os olhos a ver. Experimentam-se neste caminho coisas reservadas para a outra vida!
Como é louco aquele que despreza tão grandes bens, indo pelo rio, embaixo; prefere alimentar-se, já nesta vida, com aperitivos do inferno. Segue por entre muitos sofrimentos, sem satisfações, na carência de todo bem. Tudo isso, porque se privou de mim, sumo e eterno Bem, pelo pecado. Tens razão em lamentar-te! Quero que outros servidores sintam contínua tristeza porque sou ofendido; que sintam compaixão diante da maldade e ruína dos pecadores.
Tens desse modo a descrição da ponte. Disse todas essas coisas, para revelar-te que meu Filho unigênito é uma ponte, conforme afirmara antes. Agora sabes como de fato ele une as alturas com a pequenez!
Diálogos de Sta Catarina de Sena, Doutora da Igreja
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