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A intolerância dogmática - Gustavo Corção


Uma coisa lhes digo. Se me viessem oferecer, anos atrás, quando eu procurava a notícia de Deus, uma religião em cujo credo eu pudesse escolher os artigos de minha simpatia, e em cujos livros santos pudesse dar a interpretação que bem entendesse, eu recusaria indignado tal religião e tal Deus sem exigências de verdade. Meus antigos professores de geometria ou de física eram maiores do que esse deus da tolerância dogmática, pois haviam ensinado que a verdade da geometria ou da física não dependem de minha interpretação e sim da natureza dos corpos e das definições das figuras. E se me oferecessem uma religião em cujo culto se pudesse tirar, acrescentar ou modificar, eu a recusaria enfadado, porque esse culto seria inferior a uma partida de futebol onde as regras são regras.

Ninguém me obrigou a aceitar o cristianismo. Eu também não posso obrigar ninguém a correr atrás de Jesus Crucificado e a entrar nesse jogo de amor e justiça cujas regras nos foram dadas por Deus e por sua Igreja. Admito que alguém não queira sequer examinar essa doutrina e experimentar esse jogo, alegando, por exemplo, que tudo isso foi inventado pelos papas. No momento em que encontrei o Fato, a coisa católica eu tive pelo menos uma grande tranquilidade: essa religião tinha uma imensa vantagem: não fora inventada por mim. Mais tarde, vi que também não fora inventada pelos papas, e então a idéia de origem divina se impôs e me forçou a dobrar o joelho endurecido.

Torno a dizer: eu poderia ter recusado em bloco o Símbolo dos Apóstolos; mas nunca me passou pela idéia a estupidez de aceitá-lo em parte. Bem sabia que se fizesse tal discriminação seria eu o fundador dessa variante cristã. Com material cristão eu estaria fabricando uma seita e um deus de minha invenção. Felizmente nunca me ocorreu essa cômica idéia; e continuo a admirar-me que ela possa ocorrer a alguém. O protestantismo consiste precisamente nisto. À Igreja Católica, única, global, maciça, os protestantes opõem mais de mil glosas que apareceram ao sabor da livre interpretação e do relativismo dogmático. E essa multiplicação de seitas, em confronto com a unidade católica, é a prova da decomposição de um corpo sem alma.

(...) Querem transigir? Por que não começam pelo futebol? Por que não praticam a livre interpretação dos sinais de tráfego? Por que não toleram, antes dessa amálgama de religiões, a amálgama das relações conjugais, trocando maridos e esposas? Vamos, vamos transigir? Sendo professor, pouco me importará que o aluno aproveite ou não; pouco me interessará, ao examiná-lo, que ele conheça ou não a matéria. Admitamos que ele é protestante em geometria e espírita em química. Sendo médico, não irei zangar-me com a enfermeira por causa de uma troca de injeções. Sendo engenheiro, transigirei com os fornecedores que roubam nas medidas e nas especificações. Por que deverei ser zeloso nos negócios doshomens se sou tolerante nas coisas de Deus? Vamos transigir em tudo se podemos transigir em religião.

(...) Dirijo-me aos católicos liberais, e digo-lhes que a sua transigência doutrinária prova simplesmente que, para eles, a Religião é a coisa menos importante do mundo. Ora, o catecismo nos ensina, ao contrário, que a Religião é infinitamente mais importante do que o mais alto dos negócios humanos. Nós outros que em tempo e contratempo procuramos ser fiéis à doutrina, e que levamos a sério a nossa religião, seremos necessariamente intolerantes. E seremos lógicos, porque uma religião-sem-importância é um absurdo impensável.

Na verdade, a inconsistência moral do catolicismo complacente se explica por uma espantosa subversão: o que se procura nesse tipo de religião é um deus vantajoso, um deus que nos sirva, que acorra aos nossos caprichos. Ora, mal ou bem, às vezes indignamente, nós outros professamos uma religião e procuramos um Deus como os magos de Belém: para adorá-lo e para servi-lo. Não podemos, por isso, parar nas esquinas mais próximas, para oferecer nosso incenso aos ídolos mais acessíveis, porque o nosso Deus é um Deus de absoluta intransigência que disse: "Eu sou aquele que sou"; e logo acrescentou: "Não terás outros deuses diante de minha face".

Nosso Deus quer ser amado sem erro de pessoa. Quer ser louvado e adorado como Ele próprio, pela santa humanidade de seu Filho, nos ensinou. Quer ser seguido. Quer ser ouvido e obedecido: "O meu discípulo é aquele que ouve e guarda os meus preceitos".

Gustavo Corção, Pode-se transigir em religião?

Fonte: Permanência
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3 comentários:

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