Se alguém quer vir após mim, diz o Senhor, negue-se a si mesmo. Porventura, que é esta a mais notável sentença que Cristo disse. Que quer dizer que nos neguemos a nós mesmos? Quer dizer que nos hajamos conosco como se não fôssems nós. Eu que me haja comigo coo se não fosse eu: vós, que vis hajais convosco, como se não fôsseis vós. Oh, que documento tão divino para o bem e para o mal! Se as nossas prosperidades nos viessem como se fossem de outrem, que pouco nos haviam e desvanecer! E se as nossas adversidades as tomássemos como se não fossem nossas, que pouco nos haviam de molestar!
O verdadeiro amigo dizem que é outro eu: o verdadeiro cristão, diz Cristo que há de ser um não eu (...). O verdadeiro amigo é outro eu; porque se há de haver nas coisas do amigo como se fossem próprias: o verdadeiro cristão é um não eu; porque se há de haer nas coisas próprias como se fossem alheias. Ao próximo diz Cristo que tratemos como a nós mesmos; e a nós, que nos tratemos como se não fôssemos nós. Nestes dois pontos se encerra toda a perfeição evangélica. Aos outros, como se fosse eu; a mim, como se eu fosse outro.
E que vida tão descansada seria a nossa, se assim vivêssemos! Que fácil seria a paciência nas injúrias! Que igual a conformidade nos trabalhos! Que moderado o apetite nas pretensões! Que comedido o desejo nos afetos! Enfim, que senhores seríamos de nós mesmos e da fortuna! Mas porque não nos despegamos de nós, andamos pegados a tudo e por isso tudo nos embaraça. Negar-se a si mesmo, dizem que é a maior fineza; e eu não sei de comodidade maior: dizem que é o maior ato de amor de Deus, e eu o tenho pela maior destreza do amor próprio. Só sabe querer-se bem quem sabe livrar-se de si.
Pe. Antônio Vieira, Páginas Espirituais
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