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A Humildade - Josef Pieper


Um dos bens em que o homem, segundo a natureza, procura a plena realização da sua existência, é a excellentia, a superioridade, a primazia, o fazer-se valer. A virtude da temperança, da disciplina e da medida, enquanto vincula esse impulso natural à ordenação da razão, chama-se humildade. A humildade consiste em avaliar-se da maneira que corresponde à realidade. Com isso está quase tudo dito.

Partindo dessa definição, dificilmente se compreende como é que o conceito de humildade pôde transformar-se num objecto de luta. Se prescindíssemos das potências demoníacas, dirigidas contra o bem, e especialmente contra este aspecto da fisionomia cristã do homem, só seria possível essa transformação se o conceito de humildade se tivesse extinguido na própria consciência cristã. Em todo o tratado de São Tomás sobre a humildade e o orgulho, não se encontra uma só frase que possa dar azo a sugerir que uma atitude de constante autodiminuição, de inferiorização do próprio ser ou das próprias possibilidades, tenha, em princípio, alguma coisa a ver com a humildade ou com qualquer outra virtude cristã.

Magnanimidade
 
Nada há que indique um caminho mais claro para a verdadeira compreensão da humildade que este princípio: a humildade e a magnanimidade (magnanimitas) não são antitéticas, não se excluem uma à outra, mas são pelo contrário afins e complementares, contrapondo-se ambas ao mesmo tempo ao orgulho e à pusilanimidade.
 
E na verdade, que significa magnanimidade? Magnanimidade é o vôo, a tendência do espírito para os grandes feitos. É magnânimo quem exige grandes coisas do seu coração e se torna digno delas. O magnânimo é em certo sentido “difícil de contentar”; não estabelece contacto com tudo o que lhe surge no caminho, mas apenas com o que é grande. Mais que tudo, a magnanimidade deseja as grandes honras; “o magnânimo lança-se para as acções que são dignas da maior honra”. Na Summa Theologica lê-se: “É reprovável desprezar as honras, de modo a descurar aquilo que as merece”. Por outro lado, o magnânimo não se sente atingido pela desonra; ele despreza-a como não sendo digna da sua atenção. O magnânimo olha com desprezo para tudo o que é mesquinho. Nunca actuará de modo reprovável, só para evitar o desagrado de alguns. As palavras do Salmo XIV: “Aos seus olhos, o perverso nada vale”, segundo São Tomás referem-se ao magnânimo “desprezo pelos homens” do justo. Sinceridade destemida é a marca da magnanimidade: nada há que mais odeie do que ocultar, por medo, a verdade. O magnânimo evita peremptòriamente as palavras aduladoras e as dissimulações, pois ambas são fruto de um coração mesquinho. O magnânimo não se queixa, porque o seu coração não se deixa vencer por qualquer mal externo. O magnânimo traz consigo a indestrutível firmeza da sua esperança, uma confiança desmedida, quase temerária, e no seu coração sem medo reina uma paz imperecedoira. O magnânimo não cede ao aperto das preocupações, nem aos homens, nem aos acontecimentos: só perante Deus se inclina.

É com pasmo que reconhecemos que esta imagem da magnanimidade se encontra passo a passo desenhada na Summa Theologica de São Tomás de Aquino. Tornava-se necessário recordar isto. Porque no tratado sobre a humildade diz-se diversas vezes: a humildade não contradiz a magnanimidade. Agora poder-se-á medir o que esta frase, expressa como aviso e prevenção contra fáceis erros, quer na verdade dizer. Nada mais do que isto: que uma “humildade” demasiado mesquinha e débil para saber suportar a tensão interior da sua convivência com a magnanimidade, não pode ser humildade autêntica.

Soberba

A mentalidade ordinária das pessoas inclina-se a descobrir no magnânimo um soberbo, e, portanto, do mesmo modo, a enganar-se acerca da verdadeira essência da humildade. “É um soberbo”, proclama-se depressa e facilmente. Mas muito poucas vezes essa locução coincide, na realidade, com a verdadeira soberba (superbia). Antes de mais nada, a soberba não é um modo de comportamento ordinário nas relações entre as pessoas. A soberba refere-se às relações do homem com Deus: é a negação, contrária à realidade, da relação de dependência da criatura para com o Criador: é um desconhecimento da criaturalidade do homem, da sua condição de criatura. Em todos os pecados há este duplo aspecto: a aversio, aversão a Deus, e a conversio, a conversão, o apegamento aos bens efêmeros. O elemento formal determinante é o primeiro: a aversão a Deus. E esse, em nenhum outro pecado é tão explícito e formal como na soberba. “Todos os outros pecados fogem de Deus, e só a soberba se opõe a Deus”. É só dos soberbos que a Sagrada Escritura diz que Deus lhes resiste (Tiago 4, 6).
 
Humildade como comportamento social
 
A humildade também não é, em primeiro lugar, uma atitude externa nas relações da convivência humana. A humildade é, sobretudo, uma atitude do homem perante a Deus. Aquilo que a soberba nega e destrói, a humildade reafirma e consolida: a condição de criatura do homem. Esta condição constitui a essência mais profunda do homem. Portanto, a humildade, como “sujeição do homem a Deus”, é a adesão, o sim de assentimento a esta condição originária e essencial.

Em segundo lugar, a humildade não consiste num comportamento exterior, mas numa atitude interior, nascida da decisão da vontade. Consiste naquela atitude que, fixa em Deus e consciente da sua condição de criatura, reconhece a realidade graças à vontade divina. É principalmente a simples aceitação disto: que o homem e a humanidade não são Deus, nem “como Deus”. E é aqui que aflora a ligação escondida que une a humildade, virtude cristã, com o Dom - talvez também cristão - do humor.
Será possível evitar dizer agora - em terceiro lugar -, por fim e francamente, que a humildade, para além de tudo quanto já se disse, também é uma atitude do homem para com o homem, e principalmente atitude de humilhação voluntária e recíproca? Vejamos.

São Tomás de Aquino levantou a questão da atitude de humildade dos homens para com os homens, e respondeu da seguinte maneira: “Observa-se nos homens uma dupla realidade: aquilo que é de Deus, e aquilo que é do homem... A humildade, no entanto, no sentido mais próprio, é a reverência do homem submetido a Deus. É por isso que o homem, olhando para aquilo que lhe é próprio, tem que submeter-se ao seu próximo, olhando para aquilo que esse tem de Deus em si. Mas a humildade não exige que alguém submeta aquilo que nele há de Deus, àquilo que parece haver de Deus no próximo... Do mesmo modo, a humildade não exige que alguém submeta aquilo que tem em si de próprio, ao que nos outros é próprio dos homens”.

Josef Pieper
 
Fonte
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Um comentário:

  1. gostaria de fazer uma pergunta,vc conhece o movimento da igreja chamado caminho neocatecumenal? pode falar um pouco sobre eles,se esta de acordo com o papa

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