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O Cristianismo como "Religio Vera"



Cardeal Joseph Ratzinger

O cristianismo não se baseia, de fato, segundo Agostinho e a tradição bíblica, que para ele é normativa, em imagens e pressentimentos míticos, cuja justificação se encontra, em última análise, na sua utilidade política, mas reivindica aquele divino que pode ser percebido a partir da análise racional da realidade. Ou seja: Agostinho identifica o monoteísmo bíblico com as perspectivas filosóficas sobre a fundação do mundo que se formaram, segundo diversas variantes, na filosofia antiga. É isto que se entende quando o cristianismo, a partir do discurso paulino do Areópago em diante, se apresenta com a pretensão de ser a religio vera. O que significa: a fé cristã não se baseia na poesia e na política, essas duas grandes fontes da religião; baseia-se no conhecimento.

Venera aquele Ser que está no fundamento de tudo o que existe, ou "verdadeiro Deus". No cristianismo, a racionalidade se tornou religião e não mais o seu adversário. Para que isso acontecesse, para que o cristianismo se compreendesse como a vitória da desmitologização, a vitória do conhecimento e com ela da verdade, devia necessariamente considerar-se universal e ser levado a todos os povos: não como uma religião específica que reprime as outras em razão de uma espécie de imperialismo religioso, mas como a verdade que torna supérflua a aparência. E é justamente isso que, na vasta tolerância dos politeísmos, devia necessariamente parecer intolerável, ou até como inimigo da religião, como "ateísmo". Não se fundamentava na relatividade e na convertibilidade das imagens; perturbava, portanto, sobretudo a utilidade política das religiões, e punha assim em perigo os fundamentos do Estado, no qual não queria ser uma religião entre as outras, mas a vitória da inteligência sobre o mundo das religiões.

Por outro lado, a esta posição do cristianismo no kosmos de religião e filosofia remonta também a força de penetração do cristianismo. Já antes do início da missão cristã, alguns círculos cultos da antiguidade haviam procurado na figura do "temente a Deus" o laço com a fé judaica, que lhes parecia uma figura religiosa do monoteísmo filosófico correspondente às exigências da razão e ao mesmo tempo à necessidade religiosa do homem. Necessidade esta a que a filosofia sozinha não podia satisfazer: não se reza a um deus apenas pensado. Ali, porém, onde o Deus achado pelo pensamento se deixa encontrar no coração da religião como um Deus que fala e age, o pensamento e a fé são reconciliados.

Naquele laço com a sinagoga ainda havia algo que não satisfazia: o não judeu, de fato, permanecia sempre como um estrangeiro, não podia jamais chegar a uma total pertença. Esse nó é desatado no cristianismo pela figura de Cristo, tal como a interpretou Paulo. Só então o monoteismo religioso do judaísmo se tornou universal, e, portanto, a unidade entre pensamento e fé, a religio vera, se tornou acessível a todos.

Justino, o filósofo, Justino, o mártir (+167), pode servir de figura sintomática deste acesso ao cristianismo: estudara todas as filosofias e por fim reconhecera no cristianismo a vera philosophia. Estava convencido de que ao se tornar cristão não renegara a filosofia, mas só então se tornara filósofo de verdade. A convicção de que o cristianismo seja uma filosofia, a filosofia perfeita, aquela que conseguiu penetrar até a verdade, permanecerá em vigor ainda por muito tempo depois da época patrística. Era ainda absolutamente atual no século XIV, na teologia bizantina de Nicolas Cabasilas. Sem dúvida, não se entendia a filosofia como uma disciplina acadêmica de natureza puramente teórica, mas também e sobretudo, num plano prático, como a arte de bem viver e de bem morrer, que porém só pode ter bom êxito à luz da verdade.

A união da racionalidade e da fé que se realizou no desevolvimento da missão cristã e na construção da teologia cristã trouxe, porém, correções decisivas à imagem filosófica de Deus, duas das quais devem ser principalmente mencionadas. A primeira consiste no fato de que o Deus em que os cristão crêem e que veneram, ao contrário dos deuses míticos e políticos, é realmente natura Deus; nisto ele satisfaz as exigências da racionalidade filosófica.

Mas ao mesmo tempo vale o outro aspecto: non tamen omnis natura est Deus; nem tudo o que é natureza é Deus. Deus é Deus por sua natureza, mas a natureza como tal não é Deus. Cria-se uma separação entre a natureza universal e o Ser que a fundamenta, que lhe dá a sua origem. Só então a física e a metafísica chegam a uma clara distinção uma da outra. Só o verdadeiro Deus que podemos reconhecer por meio do pensamento na natureza é objeto de oração. Mas é mais que a natureza. Precede-a, ela é a sua criatura. A esta separação entre a natureza e Deus acrescenta-se uma segunda descoberta, ainda mais decisiva: não se podia rezar a deus, à natureza, à alma do mundo ou ao que quer que fosse; não era um "deus religioso", como vimos. Agora, e é o que já diz a fé do Antigo Testamento e mais ainda a do Novo Testamento, aquele Deus que antecede a natureza voltou-se para os homens. Não é um Deus silencioso, justamente porque não é só natureza. Entrou na história, veio ao encontro do homem, e assim agora o homem pode encontrá-lo. Pode ligar-se a Deus porque Deus se ligou ao homem. As duas dimensões da religião, que estavam sempre separadas uma da outra, a natureza eternamente dominadora e a necessidade de salvação do homem que sofre e luta, são ligadas uma à outra. A racionalidade pode tornar-se religião, porque o Deus da racionalidade entrou ele próprio na religião. O elemento que a fé reivindica como próprio, a Palavra histórica de Deus, é de fato o pressuposto para que a religião possa agora voltar-se para o deus filosófico, que não é mais um deus puramente filosófico e que tampouco repugna ao conhecimento da filosofia, mas o assume. Aqui se manifesta algo espantoso: os dois princípios fundamentais do cristianismo, aparentemente em contraste, o laço com a metafisica e o laço com a história, se condicionam e se relacionam um com o outro; constituem juntos a apologia do cristianismo enquanto religio vera.

Cardeal Joseph Ratzinger, Cristianismo: a vitória da inteligência sobre o mundo das religiões.
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