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A Participação Ativa na Liturgia

Por Joseph Ratzinger

O Concílio Vaticano II indicou-nos, como uma idéia fundamental para a configuração da Liturgia, a palavra participatio actuosa - participação ativa - de todos no "Opus Dei", isto é, nos acontecimentos da missa. Com toda razão, pois o Catecismo da Igreja Católica chama atenção para o significado da palavra, que é serviço comum, relacionando-se portanto com todo o povo santo de Deus (CCC 1069). Mas em que consiste essa participação ativa? O que se faz aí? Infelizmente, o sentido dessa palavra facilmente leva a equívocos, pensando-se que se trata de um acto geral e apenas exterior, como se todos tivessem de - quanto possível tanto melhor - ver-se em acção.

Contudo, a palavra "participação" (ou "ter participação"), remete para uma participação principal, na qual todos devem participar. Se quisermos descobrir de que acção se trata, então devemos indagar primeiro o que é essa actio central, na qual todos os membros da comunidade devem participar. O estudo das fontes litúrgicas proporciona-nos uma resposta que, embora a princípio nos possa parecer surpreendente, é evidente do ponto de vista dos fundamentos bíblicos básicos. (...) Nas fontes, entende-se sob actio da Liturgia a oração eucarística.

A verdadeira acção litúrgica, o verdadeiro acto litúrgico, é a eucarística, tendo sido, por essa razão, designada pelos Padres como oratio. À partida, isso era correcto do ponto de vista do caráter liturgico, pois o desempenho essencial da Liturgia acontece na oratio, a qual é o seu centro e a sua forma fundamental. Posteriormente, tanto para os pagãos como para os intelectuais interpeladores, a designação da Eucaristia como oratio representava uma resposta fundamental, pois mediante ela dizia-se aos que estavam à procura: agora são substituídos os vossos animais imolados como também todos os outros sacrifícios vossos, que na realidade não satisfazem ninguém. O seu lugar foi ocupado pelo sacrifício do Verbo. Nós somos a religião espiritual, na qual se efectua, verdadeiramente, a Liturgia da Palavra, na qual já não se imolam nem carneiros nem vitelos, onde a Palavra, como representante da nossa existência, é dirigida a Deus, fundindo-se com a Palavra verídica, que é o Logos de Deus e que nos envolve na verdadeira adoração. Talvez seja útil referir que o significado original da palavra oratio não "oração" (para isso empregava-se a palavra prex), mas sim "alocução do celebrante", a qual agora, dirigindo-se a Deus na consciência de que dele promana e através dele se torna possível, alcança a sua maior dignidade.

Mas até agora só aludimos ao essencial. Essa oratio - a oração eucarística, o "cânone" - é certamente mais do que apenas uma alocução, ela é actio no sentido mais elevado do termo. Pois aí acontece que a actio humana (até agora exercida pelos sacerdotes das várias religiões) recua, deixando espaço à actio divina,, que é acção de Deus. Nessa oratio, o sacerdote fala com a pessoa do Senhor - "isto é o meu corpo", "isto é o meu sangue" - sabendo que já não é ele que fala, tornando-se, em virtude do Sacramento recebido, voz de Deus, a qual agora fala e age. Essa acção de Deus, que se realiza através do discurso humano, é a "ação" verídica da qual toda a Criação está à espera: os elementos da Terra serão transubstanciados, quase arrancados da sua origem e consolidação natural, abrangidos no fundo mais fundo do seu ser e transformados no corpo e sangue do Senhor. O céu e a terra novos serão antecipados.

A verdadeira "acção" litúrgica, na qual todos queremos participar, é a acção do próprio Deus. A novidade e a particularidade da Liturgia cristã é o facto de ser o próprio Deus quem age e concretiza o essencial, elevando a Criação nova, fazendo-se acessível, de modo que seja possível comunicar com Ele pessoalmente - através das coisas terrestres e dos nossos dons. Mas, como podemos participar nessa acção? Não são, Deus e Homem, totalmente incomensuráveis? Pode o Homem, finito e pecador, cooperar com Deus, infinito e Santo?

Ora, ele pode, precisamente através da Encarnação de Deus que se tornou corpo, aproximando-se aqui, sempre de novo, de nós que em corpos vivemos. Todo o acontecimento da Encarnação, Cruz, Ressurreição e da Parusia se torna presente pela forma como Deus envolve o Homem na cooperação com Ele próprio. Como já vimos, na Liturgia isso manifesta-se pelas preces de aceitação que fazem parte da oratio. Certamente, o sacrifício do Logos já foi aceite para sempre. Mas nós temos de orar, a fim de ele se tornar o nosso sacrifício, a fim de nós próprios nos tornarmos, como dissemos, "conforme Logos" e, por conseguinte, verdadeiro Corpo de Cristo: é esse o objectivo. E nós temos de implorá-lo. Essa imploração em si é um caminho, um percurso da nossa existência rumo à Encarnação e Ressurreição. Nessa própria "acção", nessa aproximação oratória da participação, não há diferença entre sacerdotes e leitos. É certo que dirigir a oratio em nome da Igreja ao Senhor, falando no núcleo da oração com a pessoa de Jesus Cristo, só pode acontecer pelo poder do Sacramento. Mas a participação naquilo que nenhum homem, mas só o Senhor, pode fazer, é igual para todos. Para nós todos, vale, segundo a palavra de 1Cor 6,17, "Aquele, porém, que se une ao Senhor constitui, com Ele, um só espírito". O objetivo é que no fim seja abolida a diferença entre a actio de Cristo e a nossa. Para que haja uma única actio, que seja simultaneamente a sua e a nossa - a nossa por nos termos tornado "um corpo e um espírito" com Ele. A singularidade da Liturgia eucarística consiste em ser o próprio Deus a agir, envolvendo-nos nos seus actos. Todo o resto é, comparativamente com isto, secundário.

Também as acções exteriores - a leitura, o canto, a oferta dos dons - podem, naturalmente, ser distribuídas duma maneira conveniente. Aí, há-de distiguir-se a participação na Celebração da Palavra (leitura e canto) da própria celebração sacramental. Aqui, o papel secundário das acções exteriores deveria ser claramente ressaltado. Aliás, quando vem o essencial - a oratio - a acção deve desaparecer totalmente. Como também deve evidenciar-se que, somenta a oratio é o essencial, por ser só ela que proporciona espaço para a actio de Deus. Quem compreendeu isto, entenderá facilmente que agora não se trata de olhar o sacerdote ben de ver o que ele faz, mas sim olhar juntos para o Senhor e aproximar-se dele. Hoje, alguns protagonistas, principalmente durante a preparação dos dons, desempenham quase um espectáculo teatral, facto que simplesmente ignora o essencial. Se cada acção exterior em si (no fundo são poucas, o que leva a serem geradas artificialmente), para a ser o essencial da Liturgia, de modo que essa se torne uma acção geral, então o verdadeiro teodrama da Liturgia terá mesmo falhado, para não dizer convertido numa paródia. A verdadeira educação litúrgica não pode consistir em aprender a ensaiar actividades exteriores, mas sim em conduzir para a verdadeira actio, que faz da Liturgia o que ela é; conduzir para o poder transformador de Deus, o qual, através do acontecimento litúrgico, queria transformar os Homens e o Mundo. Neste ponto, a actual educação litúrgica, tanto dos sacerdotes como dos leitos, encontra-se num estado deficitário preocupante - aqui há muito por fazer.

Neste momento, a pergunta do leitor talvez seja a seguinte: e o corpo? Não será que, com a idéia do sacrifício da palavra (oratio), tudo assente apenas no Espírito? Isso poderia ser o caso na idéia pré-cristã da celebração segundo o Logos, mas não na Liturgia da Palavra personificada, a qual se nos oferece no seu corpo e no seu sangue, portanto, corporalmente, embora na forma do corpo novo do ressuscitado, o qual, permanecendo sempre verdadeiro, se nos oferece através dos sinais materiais do pão e do vinho. Isso significa que o nosso corpo, precisamente na existência corporal do nosso quotidiano, é exigido do Logos e para o Logos. Pois podendo ser a verdadeira "acção" litúrgica traduzida como acto de Deus, consequentemente, a Liturgia da Fé excede sempre o acto cultual, atingindo o quotidiano, o qual se deveria tornar "litúrgico", isto é, a missão para a transformação do mundo. Exige-se do corpo muito mais do que apenas carregar aparelhos ou coisa semelhante. O quotidiano exige todo o seu empenho. Exige-se dele que se torne apto a "ressuscitar", orientando-se para a ressurreição e para o Reino de Deus, cuja abreviatura é a seguinte: a tua vontade se faça no céu e na terra. Onde haja vontade divina, há céu, e a Terra torna-se céu.

Entrar na acção de Deus, a fim de estarmos em cooperação com Ele - é isso que deve começar na Liturgia e continuar a evoluir para além dela. A Encarnação, através da cruz (a transformação da nossa vontade para a comunhão da vontade comum de Deus), deve sempre conduzir à ressurreição - para o domínio do amor, que é o Reino de Deus. O corpo deve, por assim dizer, ser "exercitado" para a ressurreição. Convém ter presente que a palavra "ascese", que já se encontra fora de moda, significa em inglês simplesmente "exercicio". Nos nossos tempos, treina-se muita coisa com muito zelo, muita persistência e renúncias - porque não se há-de treinar para Deus e o seu Reino? "Castigo o meu corpo e mantenho-o em servidão", diz Paulo (1Cor9,27) Aliás, já naquela altura, a disciplina dos desportistas servia-lhe de exemplo para o seu próprio exercício. Tal treino deveria ser uma parte essencial do quotidiano, encontrando, contudo, o seu conteúdo interior dentro da Liturgia, na sua "orientação" para Cristo ressuscitado.

Para dizer mais uma vez de outra maneira, ele é o exercício para aceitar o outro na sua diferença, para chegar ao amor - o exercíco para aceitar aquele que é todo diferente, Deus, e admitir ser moldado e utilizado por Ele. A inclusão do corpo, que é o objectico da Liturgia da Palavra personificada, manifesta-se na própria Liturgia através de uma certa disciplina física, em gestos que nasceram da imposição interior eda Liturgia, evidenciando corporalmente a sua natureza. Esses gestos podem variar em pormenor nas diversas zonas culturais, mas as suas formas essenciais pertencem à cultura da Fé que nasceu do culto; em consequência, como linguagem de expressão, eles transcendem as várias zonas culturais.

Joseph Ratzinger, O Espírito da Liturgia
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