Pe. Ronald Knox
Querem que lhes lembre - é conveniente que, de vez em quando, recordemos as partes menos conhecidas da Sagrada Escritura - o que se conta no livro de Rute?
Noemi era uma mulher de Belém que foi morar na terra de Moab. O seu marido morreu lá, deixando dois filhos; estes casaram-se com mulheres moabitas e morreram também, sem deixar nenhum filho, ao que parece. Noemi, então, resolveu regressar à terra de Judá e pôs-se a caminho acompanhada pelas duas noras, mas instou-as a voltar para os da sua própria raça. Uma delas, Orfa, acabou por ceder, mas Rute aproximou-se ainda mais da sua sogra: Quero ir para onde tu fores e habitar onde tu habitares. O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus; quero morrer onde tu morreres e aí ser sepultada. Que Deus me trate com todo o rigor se outra coisa a não ser a morte me separar de ti (Ru 1,16-17).
Chegaram, pois, as duas juntas a Belém. Eram pobres e Rute foi respigar no campo de um homem rico (permitia-se aos pobres, por caridade, andar atrás dos ceifeiros e recolher as espigas de trigo que eles deixassem cair). Seguiu os ceifeiros de um campo que, sem ela o saber, pertencia a Booz, um homem do seu mesmo ramo familiar. Este reconheceu-a e animou-a a continuar com os seus ceifeiros: Ouve, minha filha, não vás respigar em nenhum outro campo, e deu instruções secretas aos seus ceifeiros para que deixassem cair uma boa quantidade de espigas e ela as pudesse recolher. Por fim, deram-se a conhecer mutuamente e Booz pediu-a em casamento. E foi assim que Rute, a mulher moabita, chegou a ser antepassada de São José, da Santíssima Virgem e, pelos laços da carne, do próprio Jesus Cristo (cfr. Ru 4,17 e Mt 1,5).
É uma história de um passado remoto que comove pela sua simplicidade e que foi tema favorito de pintores e poetas. Mas que tem a ver conosco? Que mensagem pode conter para nós, filhos de um tempo menos amável? Nunca compreendi plenamente o seu simbolismo, até que li um capítulo de um antiquado livro de meditações traduzido do francês e chamado O campo da Sagrada Eucaristia.
No fim das contas, não diferem muito de nós aquelas noras de Noemi, a judia exilada. Não representam dosi tipos diferentes de almas, a alma que prefere o mundo da fé e aquela que a abandona?, a alma que é falsa e aquela que é fiel à sua lealdade sobrenatural? A memória de um esposo falecido não tem por que acorrentar os afetos e destruir o futuro de uma mulher ainda jovem e bela, como era Orfa e como era Rute. No entanto, esta última foi fiel ao seu país de adoção, ao país que não tinha visto nunca, e, sendo israelita por casamento, quis ser israelita de coração. Quero ir para onde tu fores; teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus. Do mesmo modo, a alma fiel ouve duas vozes: a voz acariciadora do mundo perto dela e a chamada distante do seu lar invisível, sobrenatural. Ficará do lado da Igreja, sua mãe adotiva, ou voltará para o mundo, que a reclama por direito de afinidade natural?
A Igreja não nos facilita a escolha; as suas condições são exigentes, pois quer pôr à prova a nossa lealdade. "Volta - diz-nos -, a menos que estejas disposto a correr a minha sorte nos momentos bons e nos maus". E a alma fiel responde: Que Deus me trate com todo o rigor se outra coisa a não ser a morte me separar de ti.
E assim nos leva a Belém, à "casa do pão". Leva-nos para junto do altar, onde Aquele que é nosso parente pela sua Encarnação, Aquele que desposará a nossa alma pela caridade divina, se esconde de nós e nos pede que colhamos as espigas que pudermos no campo da Sagrada Eucaristia. O seu campo..., porque, quem o comprou, quem o semeou, quem o cultivou mais que Ele?
Comprou-o com a sua Encarnação: sendo rico, fez-se pobre para nosso bem; vendeu tudo o que tinha e comprou aquele campo. Semeou-o com a sua morte: Em verdade vos digo: se o grão de trigo que cai na terra não morre, fica só - continuará a ser unicamente um grão de trigo -; mas, se morre, produz muito fruto (Jo 12,24-25); o seu próprio Corpo sagrado foi a semente enterrada no sepulcro para poder viver uma vida nova.
O Senhor cultivou o campo com todos os méritos de sua vida e Paixão, regou-o com as lágrimas que derramou à vista de Jerusalém, com o seu suor em Getsêmani, com o sangue dos seus suplícios. E assim como por um milagre da natureza a semente se multiplica por si mesma, e a colheita ultrapassa de longe a quantidade de grãos dos quais brotou, assim do Corpo sagrado que foi semeado com lágrimas no sepulcro perto do Calvário, surgiu uma colheita de alcance mundial, incalculável, inesgotável, a colheita da Sagrada Eucaristia - milhões de hóstias consagradas em milhares de tabernáculos do mundo inteiro. A messe que foi semeada com lágrimas na Quinta-feira Santa é recolhida com alegria e glória no dia do Corpus Christi. Pentecostes, que era para os judeus a festa da colheita dos campos, é para nós a festa da colheita produzida pela espiga que Cristo semeou com a sua morte no Calvário. Vede como brilham hoje esses milhares de hóstias divinas pelo mundo inteiro, ao sol da Páscoa, suavemente agitadas pelo vendo de Pentecostes.
Pe. Ronald Knox, Reflexões Sobre a Eucaristia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Fique à vontade para comentar. Mas, se for criticar, atenha-se aos argumentos. Pax.