Joseph Ratzinger
"O jovem Samuel servia ao Senhor sob os olhos de Heli. [...] Samuel repousava no templo do Senhor, onde se encontrava a arca de Deus. O Senhor chamou Samuel, que respondeu: "Eis-me aqui". Samuel correu para junto de Heli e disse: "Eis-me aqui. Chamaste-me". "Não te chamei, meu filho, torna a deitar-te". [...] Pela terceira vez, o Senhor chamou Samuel, que se levantou e foi ter com Heli: "Eis-me aqui; tu me chamaste". Compreendeu então Heli que era o Senhor quem chamava o menino. "Vai e torna a deitar-te", disse-lhe ele, "e se ouvires que te chamam de novo, responde: "'Falai, Senhor, o vosso servo escuta!'" Voltou Samuel e deitou-se. Veio o Senhor, pôs-se junto dele e chamou-o como das outras vezes: "Samuel! Samuel!" - "Falai, respondeu o menino; o vosso servo escuta!" (1 Sam 3,1-10).
"Hora de levantar-se!" Ao ouvir pela primeira vez este lema, lembrei-me imediatamente do homem que, no momento crucial da sua existência, o ouviu a partir das páginas da Sagrada Escritura: "Tens de levantar-te!" Estas palavras marcaram o rumo de toda a sua existência, e para mim foi decisivo poder conhecê-lo muito de perto nos anos em que eu mesmo encetava a jornada da vida e tomava as primeiras decisões.
Foi professor de Ciências Literárias na Tunísia, depois em Roma e por fim em Milão. Na sua juventude, unira-se a uma amante com quem vivia numa espécie de casamento em papel passado. Tinham um filho, que mimavam um pouco. Em Milão, quando por fim estava entre as personalidades mais conhecidas da alta sociedade, a sua mãe teimou em que aquela união não era conveniente; por outro lado, não podia casar-se com ela, porque a moça era de origem muito modesta e não combinava com ele por ser pouco culta. Assim, por insistência da mãe, separou-se dela. Mas, enquanto a mãe ainda procurava para ele uma esposa conveniente, o professor uniu-se a outra amiga, embora ao mesmo tempo sofresse terrivelmente pela mesquinhez do seu comportamento, pelo papel vergonhoso que estava desempenhando.
Também sofria cada vez mais por viver numa sociedade vazia e oca; considerava as suas conferências, que o tinham tornado tão famoso, nada mais que "palavrório insubstancial"; e percebia cada vez mais que essa vida de sociedade, com os seus convencionalismo e o valor que dava às origens de um e de outro, era tão hipócrita como o comportamento de que ele usara para com as suas amigas. Tudo isso o atormentava, e ele mesmo narrou como certa tarde, antes de uma grande conferência que tinha de pronunciar, encontrou pelas ruas de Milão um mendigo levemente embriagado que gracejava e brincava com os companheiros. Esse episódio penetrou-lhe no coração, e disse aos que o acompanhavam: "Esse homem leva uma vida alternativa. Com a meia dúzia de moedas que acaba de mendigar, é livre e feliz. E eu, com toda a minha erudição e toda a alta sociedade... Como é miserável esta vida!"
Também ouviu falar de outras opções. Ouviu dizer que havia homens e mulheres jovens que se erguiam, davam ouvidos a Cristo e punham sua vida inteiramente à disposição do Senhor, fundavam ordens religiosas e criavam alternativas reais para a vida. Depois contou que tina a impressão de que Deus o tinha tirado de trás de si e posto frente a frente consigo mesmo, obrigando-o a olhar para o seu próprio rosto e ver quem realmente era e que aspecto tinha. E acrescentava: "Eu era como um homem que tenta levantar-se em sonhos, que se esforça por erguer o corpo ainda adormecido,mas está oprimido pelo poder do sono e por um cansaço pesado como chumbo".
Soube, além disso, de um colega que também tinha sido professor de Literatura, mas num Estado ateu, onde se negava por princípio aos cristãos o acesso às cátedras universitárias. Esse homem, em circunstâncias dramáticas, professara publicamente a sua condição de cristão, porque preferia perder a sua cátedra a perder a sua honra, a sua alma e o seu Deus. E tudo isso agia sobre o nosso personagem. Sentia-se dilacerado, cheio de desprezo pela vida que levava, mas ao mesmo tempo incapaz de deixá-la e de passar a ser outra pessoa.
Mergulhado nessa imensa angústia, andava um dia pelo jardim da sua casa em Milão, dilacerado por dentro, lutando a meias com a decisão de levantar-se, mas o ao mesmo tempo ainda incapaz de fazê-lo. Contou-nos como via em espírito aproximarem-se dele as suas antigas amigas para dizer-lhe: "Mas se você não pode viver sem nós!..." E como via desfilar diante de si a sua vida, com todos os atrativos da sociedade e todos os prazeres que lhe diziam: "Mas se você não pode viver sem tudo isto!..."
Tomado de uma ira desesperada contra si mesmo, decidiu apostar toda a sua vida numa só cartada e abriu ao acaso uma Bíblia. E encontrou estas palavras: Já é hora de despertardes do sono. A salvaçao está mais perto do que quando abraçamos a fé. A noite vai adiantada e o dia vem chegando. Despojemo-nos, pois, das obras das trevas e revistamo-nos das armas da luz. Comportemo-nos honestamente, como em pleno dia, sem orgias nem bebedeiras, sem desonestidades nem dissoluções, sem contendas nem ciúmes. Pelo contrário, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não façais caso da carne nem lhe satisfaçais os apetites (Rom 13, 11-14).
E ele acrescenta: "Não li mais. Não precisava ler mais, pois agora sabia o que devia fazer: devia levantar-me para ir ao encontro de Jesus Cristo". E fez-se batizar e começou a vida nova, a vida alternativa com Cristo, tal como a vira descrita nessa passagem.
Como todos já sabem, esse homem chamava-se Agostinho. A sua vida transcorreu há mil e quinhentos anos, mas mesmo assim podemos encontrá-lo de maneira tão pessoal e tão próxima nos seus escritos como se estivesse ao nosso lado, porque viveu a nossa vida.
Joseph Ratzinger, Homilias Sobre os Santos.
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