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Neo-relativismo, neoceticismo e suas consequências


Olavo de Carvalho

À humanidade, como se sabe, nunca faltam amigos e benfeitores. Eles brotam como cogumelos, cada um trazendo um remédio, um alívio, um consolo. É tanta bondade que até faz mal. A sagra mais recente é a dos neo-relativistas e neocéticos, que professam libertar a espécie humana do seu mais temível inimigo: a verdade, ou mais propriamente a ambição de conhecê-la. A esta ambição eles denominam "dogmatismo". No dogmatismo, asseguram, está a raiz de toda violência, de toda tirania, de toda infelicidade. Erradique-se do ser humano essa pretensão insensata, e todos viverão em paz num mundo de dúvidas alegremente indecidíveis.

As fontes que os inspiram são variadas. Alguns beberam em E. M. Cioran. Todo o mal do mundo, diz o autor de Précis de décomposition (Paris, 1949), vem do desejo de provar que uma idéia é melhor que outra. Uma vez admitido que todas as idéias se equivalem, ninguém mais fará ao seu próximo a violência de tentar persuadi-lo. "Que é a Queda, - pergunta ele - senão a busca de uma verdade e a certeza de tê-la encontrado?" Nessa "mistura indecente de banalidade e apocalipse" que é a História, "abundam as certezas: suprimi-as, suprimi sobretudo suas consequências e tereis reconstituído o paraíso."

Outros inscrevem-se na linhagem de Charles S. Peirce, fundador do pragmatismo. É o caso de Richard Rorty, segundo o qual, inexistindo para além das várias correntes filosóficas um tribunal capaz de arbitrar racionalmente suas divergências, todas as questões são indecidíveis. Logo, deve-se transferir o debate do campo da teoria para o da ação política, onde cada partido, desistindo de provar que tem razão, tentará honestamente induzir o outro, por meios irracionais e pela manipulação subliminar, a colaborar na sua própria sem-razão.

A conclusão similar chegamos ao ler Veneno Pirrônico. Ensaios sobre o Ceticismo, de Renato Lessa (Rio, Livraria Francisco Alvez, 1997). Expondo de maneira criteriosa e fidedigna o conjunto de esquemas argumentativos que os céticos, de Pirro a Bayle, criaram para provar a impossibilidade de provar o que quer que seja, o autor conclui que o velho ceticismo ainda tem um papel a cumprir no esforço mental mais característico dos tempos que correm: a desconstrução filosófica. A desconstrução, ao contrário da dialética aristotélica ou da crítica kantiana, não é mera operação preliminar de limpeza para a busca de uma verdade mais sólida: é finalidade em si, não tem outro ideal senão solapar toda pretensão à verdade, até o dia em que, cansados de interrogar, os homens se contentem em repousar na indiferença.

Não é o caso de refutar aqui os argumentos céticos. São tão fracos que raiam a comicidade. O mais característico é aquele que nega o conhecimento pelos sentidos, alegando que um mesmo objeto aparece diferente a várias espécies animais (como se para afirmar isto não fosse preciso fundar-nos no conhecimento sensorial que temos dos animais). Há também aquele que nega a indução, alegando que na maioria das vezes ela falha (o que é precisamente uma indução).

O interessante é observar que relativistas e neocéticos crêem prestar um grande serviço à paz e à democracia mediante a supressão de toda arbitragem racional.

Pois a impossibilidade do julgamento racional não suprime a existência de opiniões, apenas faz com que cada partido se torne, a seus próprios olhos, o único juiz. Juiz de si mesmo e, a fortiori, juiz do adversário. para cada um, o outro não é objetivamente errado nem certo, falso nem veraz: é apenas o inimigo, que não trata de refutar em teoria, mas de vencer na prática.

É precisamente essa situação que define, segundo Carl Schmitt, teorizador do Estado nazista, a essência da política. Uma atividade é política, diz Schmitt, quando o que está em jogo nela não é o certo ou o errado, o verdadeiro ou o falso, o bom ou o mau, o belo ou o feio, o útil ou o nocivo: é simplesmente, "o nosso lado" e "o outro lado": amigo versus inimigo. Quando esta oposição não tem um conteúdo que permita resolvê-la segundo algum desses outros pares, isto é, quando ela está acima de qualquer possibilidade de arbitragem racional, é aí que ela é mais puramente política. O político não precisa de certezas teóricas: precisa apenas de aliados.

A politização de todos os conflitos foi prevista e desejada pela primeira vez, que eu saiba, por Napoleão Bonaparte. Ela vem junto com a intromissão do Estado em todos os assuntos. No século XIX, a politização foi obstada pelo sucesso do liberal-capitalismo - que fazia da economia um recinto à parte, submetido apenas ao cálculo racional do lucro e do prejuízo. No século XX, o advento dos Estados totalitários impôs novamente a hegemonia do critério amigo-inimigo, deixando por saldo mais de cem milhões de mortos e a politização geral da vida. Neste fim de século, a queda do comunismo recoloca o problema: tendo politizado a cultura e a religião, os costumes e a educação, deixaremos que pelo menos a economia permaneça à margem da política, como uma ilha de racionalidade no meio da violência geral de amigos contra inimigos?

Até os adeptos mais radicais do totalitarismo hesitam, hoje, em dar esse último passo. Os neocéticos e relativistas, solapando a fé na possibilidade de toda arbitragem racional, ajudam essas criaturas a livrar-se de seu último resíduo de escrúpulos. Professando servir à democracia, são apóstolos inconscientes do totalitarismo.

Olavo de Carvalho, Jornal da Tarde, São Paulo, 16 de outubro de 1997. Transcrito do livro "O Imbecil Coletivo", do mesmo autor do artigo, datado do ano de 1998.
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