b) O pensamento dos Apóstolos
a') A última hora do mundo
No epistolário dos Apóstolos encontra-se a menção de que estamos na hora derradeira da História (1 Jo 2,18), nos fins dos séculos (1 Cor 10,11), nos últimos dias (2 Tim 3,17; 2 Pd 3,3; Tg 5,3); afirma-se, por conseguinte, que o Senhor está próximo (Tg 5,8; Fl 4,5; Hb 10,37; Ap 22,7.11s) ou que o fim de todas as coisas se avizinhou (1 Pd 4,7).
Terão os Apóstolos S. Pedro, S. Paulo, S. Tiago e S. João ensinado que em breve se verificaria o fim do mundo?
Esta conclusão, insinuada por uma leitura superficial, não corresponderia à mente dos ditos autores. Os Apóstolos, tendo em vista transmitir um ensinamento religioso, falavam de um fim dos tempos "teológico", não meramente "cronológico" ou "astronômico".
E que significa o fim dos tempos na linguagem teológica?
Após o dom do Espírito Santo no dia de Pentecostes, todos os meios de salvação prometidos desde os primórdios da História já se acham outorgados; não se aguarda mais nenhuma instituição nova para justificar e santificar os homens; a graça habitual que o cristão traz na alma é a semente mesma da glória eterna; o Senhor está próximo, habita, velado, nos seus fiéis. Por conseguinte, a história sagrada entrou na sua fase definitiva; em outros termos: a História chegou à sua última etapa religiosa, teológica, a qual pode, sem dúvida, abranger mais de uma etapa da História profana. O mundo poderia ter acabado no dia seguinte a Pentecostes, voltando então Cristo como Juiz universal, e nada teria faltado dos dons salvíficos que Deus prometeu aos homens. Pode terminar nos nossos tempos, como também poderá continuar por muitos séculos, sem que se mude o caráter definitivo do regime cristão iniciado em Pentecostes; nem revelação dogmática nem sacramento novo são aguardados. Se a História ainda se desenrola, é, unicamente, para que se preencha o número de bem-aventurados que Deus, em Seu plano eterno, há por bem chamar ao reino celeste (cf. Ap 6,9-11).
São estas as idéias que ditaram e que explicam as expressões dos Apóstolos acima referidas. Quando estes aludem ao fim dos tempos no sentido natural ou cósmico, confessam a incerteza da data; haja vista o texto de 1 Tes 5,2-4 já citado [em artigo anterior]. S. Pedro, por sua vez, escreve:
"Há uma coisa, caríssimos, que não deveis ignorar: é que, para o Senhor, um dia é como mil anos e mil anos são como um dia. Não, o Senhor não retarda o cumprimento de Sua promessa, como imaginam alguns, mas usa de paciência para convosco, não querendo que alguém pereça e, sim, que todos façam penitência. Todavia, o dia do Senhor virá como um ladrão." (2 Pd 3,8-10)
S. Pedro repete o princípio do Antigo Testamento: o que pode parecer longo aos homens, deve ser dito breve aos olhos do Eterno (cf. Sl 89,4).
S. João, no Apocalipse, inculca a mesma incerteza:
"Lembra-te, pois, do ensinamento que recebeste e ouviste; guarda-o e arrepende-te. Se não vigiares, irei ter contigo como um ladrão, sem que saibas a que horas irei ter contigo." (3,3.)
b') A esperança de S. Paulo
Em particular, as epístolas paulinas levariam a crer que o Apóstolo se julgava ser daqueles que, ainda em vida, verão o Senhor a voltar na Sua Glória. Com efeito, escreve:
"Eis que vos dizemos conforme a palavra do Senhor: nós, os vivos, os sobreviventes por ocasião da vinda do Senhor, não anteciparemos os que estiverem mortos; pois o Senhor mesmo, ao sinal dado, à voz do Arcanjo, ao toque da trombeta divina, descerá do céu; então os que estiverem mortos no Cristo, ressuscitarão em primeiro lugar; a seguir, nós outros, os sobreviventes, os que tiverem sido deixados, seremos arrebatados com eles nas nuvens ao encontro do Senhor nos ares. E assim estaremos para sempre com o Senhor." (1 Tes 4,15-17).
"Eis que vos digo um mistério: não adormeceremos (morreremos) todos, mas seremos todos transformados, num instante, num abrir e fechar de olhos, ao toque da última trombeta; pois a trombeta soará e os mortos ressuscitarão, incorruptíveis, e nós seremos transformados." (1 Cor 15,51s.)
Como se hão de entender estas afirmações paulinas?
Quem conhece o estilo do Apóstolo, sabe que S. paulo tem a tendência habitual a se incluir no grupo de seus interlocutores ou no grupo das pessoas de quem ele fala; assim é que, em vez de se exprimir propriamente na segunda ou na terceira pessoa do plural, o Apóstolo não raro usa impropriamente do pronome da primeira pessoa ("nós").1 Foi o que se deu nas duas passagens acima: intencionando referir-se aos que estiverem vivos por ocasião da parusia (próxima ou remota...; a época não vinha ao caso), o Apóstolo empregava a expressão "nós". Este pronome, porém, devido, como é, a uma figura de linguagem, de modo nenhum quer ser tomado ao pé da letra, como se o Apóstolo se julgasse futura testemunha do fim do mundo. Esta interpretação é exigida pelo fato de que, as mesmas duas epístolas citadas, S. Paulo conta com a possibilidade (1 Tes) ou com o fato mesmo (1 Cor) de já ter morrido, quando Cristo voltar Haja vista
1 Tes 5,9s: "Deus não nos destinou para a cólera, mas para a aquisição da salvação por Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual morreu por nós, a fim de que, quer estejamos vivos, quer mortos, vivamos juntos com Ele."
Entenda-se o final como se segue: "quer vivos quer mortos" por ocasião da parusia, "vivamos" finalmente na eternidade "juntos com Ele". Donde se vê que o Apóstolo não exclui a possibilidade de morrer antes da parusia.
1 Cor 6,14: "Deus, que ressuscitou a Cristo, ressuscitará também a nós por Seu poder."
2 Cor 4,14: "... sabendo nós que Aquele que ressuscitou a Jesus Cristo ressuscitará também a nós, e nos apresentará a Ele convosco."
Nestas duas passagens, o Apóstolo se inclui no número dos que ressuscitarão, isto é, dos que de fato estarão mortos quando o Senhor reaparecer.
Muito significativo é também o texto de Fl 3,10s, em que o Apóstolo exprime sua esperança de participar, em sua carne, dos sofrimentos, da morte e da ressurreição de Cristo:
"... a fim de O (Cristo) conhecer, a Ele e ao poder da Sua ressurreição, e a fim de participar dos Seus sofrimentos, tornando-me semelhante a Ele em Sua morte, com a esperança de chegar à ressurreição dos mortos."
Seria, portanto, precipitado e injusto afirmar, na base dos dois primeiros textos citados, que S. Paulo ensinava a iminência da parusia. Todavia, bem se pode admitir que tanto Paulo como os demais Apóstolos compartilhavam a expectativa ardente dos primeiros discípulos de Cristo, expectativa de que o Senhor voltaria em breve; com efeito, o "Marana tha (Vinde Senhor!)" é a palavra final tanto de 1 Cor (16,22) como do Apocalipse de S. João (22,20). Note-se, porém, que os Apóstolos, mesmo esperando e desejando a iminente vinda de Cristo, não propunham aos fiéis, como ensinamento dogmático, o objeto deste seu anelo.
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1- Figura de linguagem que em Retórica é dita enallagé (=inversão, em grego) de pessoa. Considerem-se como exemplos particularmente significativos os textos de 1 Tes 5,5.8-10; 1 Cor 4,6; 2 Cor 4,14.
BETTENCOURT, Dom Estêvão. A Vida Que Começa Com a Morte. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Agir. 1963. Pp. 204-207.
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