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S. Francisco de Sales - Confiança, Acesso e Liberdade


Joseph Ratzinger

"A mim, o mais insignificante dentre todos os santos, coube-me a grça de anunciar entre os pagãos a inexplorável riqueza de Cristo, e a todos manifestar o desígnio salvador de Deus, mistério oculto desde a eternidade em Deus, que tudo criou. Assim de ora em diante, as dominações e as potestades celestes podem conhecer pela Igreja a infinita diversidade da sabedoria divina, de acordo com o desígnio eterno que Deus realizou em Jesus Cristo, nosso Senhor. Tempo livre acesso a Deus pela confiança que nos infunde a fé que depositamos em Cristo" (Ef 3, 8-12)

Temos livre acesso a Deus pela confiança que nos infunde a fé que depositamos em Cristo (Ef 3,12). A última frase da leitura de hoje exprime toda a mensagem espiritual da vida de Francisco de Sales, cuja festa celebramos hoje. Podemos dizer que essa passagem da Sagrada Escritura é o espaço em que o santo viveu a sua vida e de onde se dirige a nós.

Encontramos nela três palavras: liberdade, que podemos traduzir também por "magnanimidade" ou "destemor", acesso e confiança. Examinemo-las no espelho dessa vida e procuremos ouvir assim o que o Senhor nos tem a dizer hoje.

Confiança

Comecemos pela terceira: a confiança. Francisco de Sales, que se havia criado na principal região de influência do calvinismo, enfrentou-se nos seus tempos de estudante com a doutrina calvinista da predestinação. Essa doutrina afirma que Deus determinou desde a eternidade quais são os homens que se salvarão e quais os que se condenarão.

Essa idéia deixou-o com o coração angustiado. Atingiu-o tão profundamente que não conseguia mais livrar-se do medo que ela infundia, e até chegou a ter certeza de estar entre os predestinados ao inferno. Mergulhado nessa escuridão abissal de um Deus que não deixa nenhuma saída ao homem, só pôde encontrar o seu caminho porque acabou por dizer de si para si: "Pois bem, se Deus quer condenar-me, então que o faça. Não me preocuparei mais com isso, mas amá-lo-ei apesar disso." E assim recuperou a liberdade. Deixou de olhar continuamente para si e para o seu passado, e entregou a Deus o seu destino. Dessa forma, pôde dirigir novamente o seu olhar para a frente com essa serena confiança que, em última análise, é a fé verdadeira, essa fé que vence o medo e confere a liberdade.

Com os que olham para trás, acontece sempre o que aconteceu com a mulher de Lot: convertem-se em estáguas de sal (cfr. Gen 19, 24-26). Tornam-se amargos, retorcidos e interiormente rígidos. Este é o perigo que todos corremos - e precisamente o perigo que ameaça os homens deste século, capazes de fazer tantas coisas -: olhar continuamente para nós mesmos e para o nosso passado, pretender construir-nos a nós mesmos, querer fazer-nos valer diante de Deus, procurar calcular com precisão qual será o nosso destino, e assim tornar-nos salobres, amargos, imprestáveis para Deus e para nós mesmos, e incapazes de confiar em nós e despojados de toda a liberdade. A fé, em contrapartida, significa ter essa liberdade, entregar o destino próprio a Deus e olhar apenas para a frente; e assim ir ao encontro do Senhor, deixando nas suas mãos a tarefa de construir-nos, para podermos, cheios de liberdade e confiança, amá-lo e, em última análise, simplesmente amar.

Acesso

Com isto chegamos à segunda palavra: acesso. Uma e outra vez deparamos com situações ou pessoas das quais temos de dizer: "Não consigo ter acesso a ele". Falta por assim dizer uma ponte que nos permita entrar em contato com o outro, algo que o nosso ser possa percorrer para chegar até ele.

Ora, em princípio nenhum homem tem acesso a Deus por si mesmo. Como teríamos nós, seres finitos, temporais e pecadores, acesso ao Infinito, à Eternidade, à Santidade? No entanto, podemos dizer que o próprio Deus nos estendeu a ponte de acesso. Tornou-se acesso a si mesmo ao fazer-se homem. O homem Jesus Cristo, no qual podemos tocar um irmão e no qual podemos tocar a Deus, é o nosso acesso a Deus. Desde toda a Encarnação, a procura de Deus e o apostolado, e todo o tipo de atenção pastoral, só poderão dar-se, em última análise, na medida em que tornem Jesus Cristo presente às almas, permitindo-lhes o acesso a Ele e retificando-lhes as disposições.

Esta é, pois, a tarefa de todo aquele que queira chegar até Deus e conduzir os outros para Ele: tornar Jesus Cristo presente a fim de que exista um acesso. Mas só poderemos torná-lo presente se formos nós mesmos presença do Senhor, se comungarmos com Ele, se estivermos imersos na sua verdadeira presença e fizermos de nós uma parte dessa verdadeira presença de Cristo neste mundo. A sua verdadeira presença neste mundo é o Corpo Místico, a Igreja, na qual Ele comunga conosco por meio da Palavra e dos Sacramentos, e mais intimamente por meio da Eucaristia. Francisco de Sales mergulhou cada vez mais fundo nesse mistério, e assim se fez cada vez mais parte da presença de Jesus Cristo.

A oração coleta de hoje alude a essa realidade da vida do nosso santo com duas expressões: fazer-se tudo para todos e mansuetudo, a mansidão de Jesus. Estes talvez sejam efetivamente os dois aspectos mais característicos do modo como Francisco de Sales tornou realidade no seu século um pouco do mistério de Jesus Cristo, por meio da sua união com o Senhor na Igreja.

Fazer-se tudo para todos (cfr. I Cor 9,22).  Por estar unido a Jesus Cristo, Francisco fez-se acessível aos pobres e aos ricos, aos simples e aos cultos, porque a verdade mais profunda da fé é uma só e a mesma para todos. Dessa forma, encarnou a mansidão de Jesus Cristo precisamente num século de grosserias e contendas, no século em que estourou a Guerra dos Trinta Anos, no século da dureza, da rigidez e das brutalidades. E assim Jesus Cristo tornou-se visível.

Mansuetudo. A mansidão de Jesus Cristo manifestou-se em Francisco, entre tantas coisas, em que ele procurou criar uma forma de piedade acessível aos não piedosos; ou em que quis fundar conventos para os que não eram capazes de imitar as grandes proezas ascéticas dos santos e dos antigos ascetas, por serem física ou psiquicamente fracos demais para isso. Neste ponto, antecipou em parte a espiritualidade de Santa Teresa de Lisieux, a do "pequeno caminho", a de uma vida voltada para Cristo com simplicidade, sem buscar coisas grandes, com paciências e sem heroísmos.

Precisamente por ter por assim dizer estendido a ponte até os nossos pés, é que Francisco nos abriu o caminho. Na sua própria vida, mostrou-nos como esse caminho prossegue, até chegar a uma ampla e exigente ascese e a uma profunda e mística união com o Senhor. Mas sempre tendo como ponto de partida que Cristo é o acesso e é acessível; e deixando claro que nós, se enveredarmos por esse acesso simples, poderemos crescer até nos tornarmos capazes de coisas maiores.

Liberdade destemida

Chegamos, por fim, à terceira palavra: parrhesia, magnanimidade, liberdade destemida diante de Deus. Francisco mostra o que isto significa na sua Filotéia, em que procura explicar a um jovem nobre cheio de vitalidade o caminho para uma existência cristã; e para fazê-lo, usa o relato da Criação, que lhe parecia um reflexo da história da salvação. O mandato do Criador dirigido a todas as criaturas vivas deste mundo - que dêem fruto, cada uma segundo a sua espécie (cfr - Gn 1,11) - torna-se para ele, ao mesmo tempo, uma expressão do imenso mundo espiritual que deve passar a existir diante de Deus e da Igreja.

Isto diz-nos respeito também a nós, afirma Francisco. Nós somos essa Criação, esse imenso jardim de Deus, rico e variegado, onde há um fruto destinado a cada um, onde cada qual pode dar o seu fruto e está chamado, não a desempenhar uma tarefa diferente, mas a própria: a de dar fruto segundo a sua espécie. E o santo diz: "Um bispo não deve nem pode viver como um cartuxo; os casados, como os capuchinhos; os artesãos, como os religiosos contemplativos, que passam metade do dia e metade da noite em oração. Seria uma piedade tola e ridícula. Cada um segundo a sua espécie". E "Deus deseja todos os frutos". Depois, acrescenta: "A verdadeira piedade não destrói, mas enobrece e embeleza", forma uma unidade entre a vocação pessoal e a religião. Daí que possa haver tantas formas de piedade quantas são as vocações.

Lembro-me agora de uma anotação que o Papa João XXIII fez no seu diário de 1903, e que representou para ele o seu mais importante despertar espiritual. "Com uma força - escreve - que quase consigo tocar com as mãos, descobri o que significa a santidade e como era falsa a idéia que dela fazia até agora. Sempre procurei imitar com exatidão cada uma das virtudes de cada um dos santos, e, naturalmente, sempre me senti insatisfeito com isso. Agora o sei: não devo ser a reprodução ressecada deste ou daquele santo, mas extrair a seiva da sua vida - o seu sugo vitale -, e a partir dele dar fruto, à minha maneira."

É disso que se trata: de dar fruto, cada um segundo a sua espécie. Deus criou um rico jardim e deu a cada um uma santidade à sua maneira, na qual florescem as flores de Deus e amadurecem os frutos. Não devemos, pois, imitar os santos como "reproduções ressecadas", mas aprender com eles o autêntico sugo vitale, a seiva viva do Evangelho, a essência propriamente dita, mais profunda e mais íntima, da santidade, para que ela se faça em nós uma nova seiva que dê frutos à sua maneira e corresponda à vocação divina, levando a florescer e amadurecer as possibilidades que Deus deixou na Criação.

Joseph Ratzinger, Homilia Sobre os Santos.
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