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Sobre a contemplação na vida leiga


Aquele que estiver esperando por alguém que venha e, de mão beijada, alimente-o com a vida contemplativa vai ter de esperar um bom tempo, especialmente nos Estados Unidos. Tal pessoa faria melhor se renunciasse à própria inércia, rezasse pedindo um pouco de imaginação, pedisse ao Senhor que desperte sua liberdade criativa e considerasse algumas das seguintes possibilidades.

1- Sacrificando oportunidades econômicas aparentemente boas, pode ser possível mudar-se para o interior, ou para uma cidade pequena, onde se tenha mais tempo para pensar. Isso talvez possa implicar a aceitação de um relativo empobrecimento. Nesse caso, tanto melhor para a vida interior. O sacrifício pode ser uma verdadeira libertação da luta impiedosa que é a fonte da maior parte de nossas preocupações. Existem, evidentemente, trabalhos que, por sua própria natureza, mantêm o trabalhador isolado ou afastam-no das trilhas mais batidas. Contudo, nem todos têm liberdade para escolher a carreira de guarda florestal ou de vigia de farol marítimo. Nem todos querem passar a vida como vigia noturno, e por boas razões. Mas o que há de errado em cuidar de um sítio?

2- Onde quer que se esteja, é sempre possível beneficiar-se das partes do dia que são calmas porque o mundo não as valoriza. Entre essas partes estão as primeiras horas da manhã. Mesmo quando não é possível estar a algumas centenas de quilômetros da cidade grande, se uma pessoa for capaz de levantar-se às quatro ou cinco da manhã, pode ter toda a cidade só para si e experimentar algo da paz da solidão. Além disso, o amanhecer é, por natureza, um período pacífico, misterioso e contemplativo - uma hora em que todos os seres pausam naturalmente e olham com assombro para o lado leste do céu. É um momento de vida nova, de um novo começo e, portanto, uma hora importante para a vida espiritual, pois esta não é senão uma perpétua renovação interior. É sempre preferível ir à missa da manhã, ainda que as missas da tarde sejam mais esplêndidas e solenes. Na missa da manhã, as coisas estão mais calmas, mais sóbrias e mais austeras. Os pobres vão às missas da manhã porque têm de estar mais cedo no trabalho. Cristo está mais verdadeiramente com os pobres e a presença espiritual d'Ele faz das missas deles as mais contemplativas.

Deveria ser óbvio demais dizer que o domingo é, por natureza e pela tradição cristã, reservado como um dia de contemplação. O costume puritano tende a fazer o domingo parecer um tipo negativo de "Sabbath", caracterizado principalmente pelas coisas que "não podemos" fazer. A inevitável reação contra isso enfatizou as recreações legitimas, porém mais ou menos insignificantes, que fizeram do domingo um dia de descanso tanto para o corpo quanto para o espírito. É evidente que, se você passa toda a manhã do domingo dormindo, perde algo muito mais importante do que o sono. O domingo não é um dia de contemplação por ser um dia sem trabalho, um dia em que as lojas, os bancos e os escritórios não funcionam, mas porque é um dia consagrado pelo mistério da Ressurreição. O domingo é o "Dia do Senhor", não no sentido de ser necessário que, uma vez por semana, se reserve um dia para parar e pensar no Senhor, mas porque rompe, com uma explosão de luz proveniente de uma eternidade sagrada, o incessante ciclo "secular" do tempo. Não é só para descansar e retornar ao trabalho na segunda-feira que paramos de trabalhar e de nos agitar no domingo, mas para recolher nossos pensamentos, perceber a relativa insignificância dos negócios seculares que ocupam os outros seis dias da semana e experimentar a satisfação de uma paz que ultrapassa todo o entendimento e que nos é dada por Cristo. O domingo nos recorda da paz que deve permear toda a semana, se nosso trabalho está adequadamente orientado.

O domingo é um dia contemplativo não só por exigir a Lei da Igreja que todo cristão vá assistir à missa, mas porque todos que celebram o dia espiritualmente, cristãos ou não, e o aceitam por seu valor evidente, abrem o coração para a luz de Cristo, a luz da Ressurreição. Ao fazê-lo, crescem em amor e em fé, tornando-se capazes de ver um pouco mais do mistério de Cristo. É certo que podem não ter idéia do que está acontecendo, mas a graça de Deus produz efeito em seus corações. O domingo é então um dia de graça, um dia de luz, no qual a luz nos é dada. A simples fidelidade a esse dever, o simples reconhecimento desse dom de Deus, ajudará o leigo perturbado a dar os primeiros passos no caminho de um tipo de contemplação.

4- Onde quer que se busque a luz da contemplação, essa mesma busca compromete o buscador com certo grau de disciplina espiritual. Isso é tão verdadeiro fora da clausura quanto dentro dela. Porém, para o homem ou a mulher comprometidos com todas as obrigações e dificuldades da vida secular, seria um erro viver no mundo como um monge, ou uma monja, em clausura. Tentar isso seria uma ilusão. O primeiro sacrifício do leigo que vive no mundo é a aceitação do fato de não ser um monge e, consequentemente, a aceitação de uma vida de oração que deve ser correspondentemente humilde e pobre. A vida ativa e as boas obras têm um grande papel na vida "contemplativa" levada no mundo e é muito provável que o homem de oração fora da clausura seja aquilo que chamamos de "contemplativo disfarçado". Se, atormentado pela sede de experiências espirituais mais claras e elevadas, ele tentar forçar-se, por meios violentos e mal pensados, a alcançar um "grau de oração" mais alto, isso só lhe causará prejuízo.

A disciplina do contemplativo que vive no mundo é, em primeiro lugar, a disciplina de fidelidade aos deveres de seu estado - às obrigações de chefe de família, de membro de uma profissão, de cidadão. Essa disciplina e esses deveres podem exigir sacrifícios bastante grandes. Em certos casos, algumas dificuldades das pessoas que estão no mundo certamente exigem delas sacrifícios bem maiores do que os que encontrariam em um claustro. Em todo caso, a vida contemplativa delas será aprofundada e elevada pela profundidade de seu entendimento e de seus deveres. Também aqui, o mero conformismo e cumprimento exterior não são o bastante. Não é suficiente "ser um bom católico". Deve-se penetrar o sentido interior da própria vida em Cristo e perceber o pleno significado das exigências desta. Não se devem cumprir as próprias obrigações como uma questão de mero formalismo. Esse cumprimento deve advir de uma decisão real e pessoal de oferecer a Deus o bem que se faz, em Cristo e por Cristo. A virtude de um cristão é algo criativo e espiritual, não o simples cumprimento de uma nova lei. Deve, portanto, estar penetrada e preenchida pela "novidade", pela semelhança de Cristo, que é proveniente da ação do Espírito de Deus no coração e que eleva o mínimo bem praticado pelo cristão a um plano completamente espiritual. Desnecessário dizer que isso é mais que uma questão de verbalizar a própria "pureza de intenção".

5- Segue-se disso que, para o cristão casado, a vida matrimonial está essencialmente ligada à contemplação. Isso é inevitável. É por seu matrimônio que ele dá testemunho do amor de Cristo pelo mundo e experimenta esse amor. Seu matrimônio é o centro sacramental de onde irradia a graça para todos os departamentos de sua vida e, consequentemente, é esse que permite que seu trabalho, seu lazer, seus sacrifícios e mesmo suas distrações se tornem, em alguma medida, contemplativos. Pois é por seu matrimônio que todas essas coisas estão ordenadas a Cristo e centradas em Cristo. Deve-se enfatizar, acima de tudo, que, para o cristão casado, até o amor conjugal, e especialmente o amor conjugal, entra em sua contemplação. De fato, é esse amor que dá caráter específico à contemplação.

A união de marido e mulher no amor nupcial é um ato simbólico e sagrado, cuja própria natureza significa o mistério da união de Deus e do homem em Cristo. Ora, esse mistério é a própria substância, o próprio coração da contemplação. Portanto, o amor conjugal é uma espécie de expressão simbólica e material do desejo do homem por Deus e do desejo de Deus pelo homem.É uma maneira direta, simples e experiencial de expressar a necessidade do homem de ser sumamente e completamente um. É uma representação inocente, decorrente do estado de divisão do próprio homem e de sua sede de união com seu outro eu. Os Padres gregos acreditavam que, antes da queda, Adão e Eva eram, real e literalmente, dois em uma só carne, ou seja, eram um só ser. Acreditavam que a natureza humana, unida a Deus, era inteira e completa em si mesma, mas, depois da queda, o ser humano foi dividido em dois e, daí em diante, tem buscado recuperar sua unidade perdida por meio do amor sexual. Mas este desejo é sempre frustrado pelo pecado original. O fruto do sexo não é a perfeição, não é a completude, mas somente o nascimento de outro Adão ou de outra Eva, outro ser frágil, exilado e incompleto. A criação, por sua vez, chega à idade adulta e, devorada pelo antigo desejo de completude, casa-se, reafirma o obscuro mistério de amor e desesperança e traz ao mundo novos seres incompletos e frustrados, até que finalmente morre, incompleta.

A vinda de Cristo, porém, exorcizou a futilidade e o desespero dos filhos de Adão. Cristo uniu-se à natureza humana, uniu Deus e o homem em si mesmo, em uma só Pessoa. em Cristo, realiza-se a completude para a qual nascemos. Nele, não há mais dar-se ou receber em matrimônio, pois nele todos são um na perfeição da caridade.

Thomas Merton. A experiência interior. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.198-203.
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