Pe. Gabrielle Amorth
No dia 29 de junho de 197, Paulo VI falara explicitamente do demônio. As frases tinham sido fortes: "Tenho a sensação de que o fumo de Satanás entrou no templo de Deus através de alguma fenda". O Papa não hesitou em identificar esta força negativa que queria os frutos do Concílio: o seu nome é "diabo".
O discurso provocou quase um escândalo na imprensa internacional. Falar do diabo, hoje - apressaram-se em dizer os jornalistas -, é querer voltar à Idade Média. E, na sua ignorância, não perceberam que se trata de um retorno a tempos muito anteriores, ao Evangelho, à história bíblica, a Adão e Eva! Alguns meses depois, em 15 de novembro do mesmo ano, durante uma audiência geral, considerou necessário voltar ao tema, clara e exaustivamente, em que resume todo o ensino bíblico e eclesiástico sobre a matéria. Transcrevemos o discurso, a partir de uma gravação. Antes já tínhamos reproduzido o conteúdo, com as variantes publicadas no L'Osservatore Romano.
***
"Veio-me a idéia de vos falar de um tema estranho que, no entanto, está dentro da lógica de ensinamento que estamos desenvolvendo nestas audiências pastorais.
De que falamos? Falamos das necessidades da Igreja. E uma destas necessidades que, nesta manhã, ocupa a minha atenção é esta estranha e difícil defesa. Um pensamento de defesa que me persegue. De quem? São Paulo diz que devemos lutar. Já sabíamos; mas contra quem? São Paulo falou, muitas vezes precisamente, que devemos lutar e lutar como soldados. Portanto, não devemos lutar com as coisas visíveis, om a carne e com o sangue, diz ele. Mas temos que fazer uma luta, a que chamo 'a luta contra a escuridão'. Devemos lutar contra os espíritos que invadem a atmosfera.
Em outras palavras, devemos lutar contra o demônio. Quase ninguém pensa nele. Eu, pelo contrário, queria, pelo menos desta vez, fixar o pensamento sobre este tema terrível e inevitável. Temos de lutar contra este inimigo invisível, que arma ciladas à nossa vida e do qual devemos nos defender.
Entretanto, por que é que já não se fala dele? Já não se fala dele porque não é uma experiência visível? Crê-se que não existem as coisas que não se vêem. Mas lutamos com o mal. E o que é o mal? O mal é uma deficiência, é uma falta. Uma pessoa está mal; falta-lhe a saúde. Alguém é pobre; falta-lhe dinheiro. E assim por diante.
Aqui as coisas mudam: já não temos diante de nós uma deficiência, uma mal deficiente. Temos à nossa frente, uma mal eficiente, um mal existente, um mal que é pessoa, um mal que não podemos qualificar, de degradação do bem; é uma afirmação do mal. E isto nos dá medo; e devemos ter medo.
Sai do contexto dos ensinamentos bíblico e eclesiástico quem se recusa a conhecer que esta terrível realidade existe. É misteriosa e pavorosa. E se alguém diz: "Eu não penso nisso" - "Você não pensa com o Evangelho". Por quê? Porque o Evangelho está cheio, diria, está povoado, da presença do demônio. E se eu quero colocá-los num ambiente, numa atmosfera, numa mentalidade evangélica, devo, pelo menos, sentir esta misteriosa presença. Então, não conseguirei identificá-la; não quero fazer fantasias nem empurrar as pessoas para a superstição, etc. Mas esta é a realidade. E o Evangelho fala-nos disso, repito, em muitas e muitas páginas. Eis, então, a importância que assume o conhecimento do mal para a nossa correta concepção cristã do mundo, da vida e da Salvação.
Foi o próprio Cristo quem nos mostrou essa importância. E quantas vezes? Primeiro, no desenvolvimento da história bíblica; no início da Sua vida pública, o Senhor quis travar a batalha, declarando-a; e teve aquelas famosas três tentações. Uma das páginas mais misteriosas do Evangelho, e tão rica de significado: As três tentações de Cristo. Um grande romancista russo, de quem todos vós já ouvimos falar, Dostoievsky, numa das suas obras-primas, faz uma catequese, diria, sobre as três tentações de Cristo.
O que quer dizer Cristo se encontrar com a fome? Todo o materialismo moderno está ali. Cristo encontra-se com a tentação espiritual: 'Lança-te da janela e serás salvo porque és Filho de Deus; os anjos de ajudarão.' A presunção espiritual. E, depois, o orgulho: 'Olha o panorama do mundo; se me agradares, eu faço-te chefe do mundo'.
E Jesus que repele: 'Vade retro, Satanás!' E, depois, vêm os anjos alimentá-Lo e assistir-Lhe. É, realmente, de desnortear! Até a própria exegese deste trecho bíblico e espantosa. E porque não recordar que é Cristo que, por três vezes, o define? Referindo-se ao demônio como seu adversário, qualifica-o: 'Príncipe deste mundo'. Há também quem o chame: "Dono, patrão do mundo".
Quem é o dono do mundo? Jesus diz: "Príncipe do mundo é o diabo". Estamos todos sob uma dominação obscura que nos perturba, nos tenta, que nos torna doentes, nos torna hesitantes e maus, etc. E, depois, se olharmos para muitas cenas evangélicas: há um endemoniado aqui, há um endemoniado acolá; Jesus cura este e cura aquele, etc.
São Paulo, depois, porque faz eco ao Evangelho, chama-o, numa página da Segunda Carta aos Coríntios "o deus do mundo". Quem já, alguma vez, teria pensado em poder qualificá-lo com o título supremo do ser: de deus? Podemos encontrar na boca do Apóstolo este título referido ao demônio: "o deus do mundo". E depois... é o próprio São Paulo quem nos avisa e previne daquilo que antes disse. Que também devemos combater com os espíritos, sem saber onde são, como são, etc. Mas, depois, ensina-nos como se deve fazer a terapia, a defesa, mesmo contra este gênero de adversários. Não digo de outros para não me delongar; mas deveríamos, realmente, procurar em toda a literatura cristã.
Na liturgia, não vemos falar do demônio a todo o momento? O Batismo: agora, encurtaram os exorcismos; não sei se foi coisa muito realista e muito acertada (Repare este público e evidente desapontamento do Papa, com quem certamente concordam todos os exorcistas), mas não foi esquecido.
O Batismo é o primeiro ato da providência do Senhor, com que se afasta este inimigo mortal, que é inimigo do homem, Satanás. Por quê? Porque, desde a queda de Adão, precisamente nas origens, na primeira origem do homem, o demônio conquistou um certo domínio sobre o homem, de que somente a redenção de Cristo pode nos livrar. Esta história perdura ainda hoje, porque o pecado original é uma herança que se propaga, não por culpa ou acidente, mas precisamente, por geração.
Ter nascido, quer dizer, estar nos braços do demônio e não nos braços de Deus. O Batismo resgata-nos dessa escravidão, fazendo-nos livres e filhos de Deus. Por isso o demônio é o inimigo número um.
E qual é a sua arte? A de tentar, a de se aproveitar de nós, mesmo contra nós. É o inimigo, o tentador por excelência.
Deste modo, sabemos que este ser obscuro e perturbador existe, realmente, e que age com uma astúcia traiçoeira. É o inimigo oculto que semeia os erros, as desgraças, as decadências e as degradações na história humana. Vamos recordar - isto também é o Evangelho genuíno - a parábola reveladora do joio semeado no trigo. Os servidores do campo, os cultivadores, admiram-se: 'Mas quem semeou o mal no mundo?'. O dono do campo, que é a figura de Deus, responde: Inimicus homo hoc fecit - Foi o homem inimigo que fez isto.
O mal semeado no mundo tem uma origem pessoal e intencional. É Deus que tolera e que, até, quase protege esta situação: 'Não arranqueis o joio para que, ao arrancar o joio, não arranqueis também o trigo. Um dia virá, o último dia, em que se fará esta distinção e este juízo será definitivo'.
E chama-lhe, agora, "o homicida deste o princípio", chama-lhe "o pai da mentira". É o insidiador sofístico do equilíbrio moral do homem. Ele é o pérfido e astuto encantador, que sabe insinuar-se em nós, na minha psicologia e na de cada um; encontrar a porta aberta por onde entra: pela via dos sentidos, da fantasia, da concupiscência - a que hoje chamamos incentivo, não é? -, da lógica utópica e dos contatos sociais desordenados: os maus companheiros, as más idéias do mundo. Insinua-se no jogo da nossa ação para, nele, introduzir desvios tão nocivos quanto aparentemente de acordo - é a insídia da tentação - com as estruturas físicas ou psíquicas ou instintivas, profundas e inspiradoras da nossa personalidade. Aproveita-se da nossa estrutura para se insinuar nesta nossa psicologia.
O tema que trata do demônio e da influência que ele pode exercer sobre cada pessoa, sobre a comunidade, sobre as sociedades inteiras ou sobre os acontecimentos é um capítulo muito importante da doutrina católica, que deveria ser estudado novamente, porque hoje pouco o é. Alguns pensam que encontram nos estudos psicanalíticos ou psiquiátricos ou nas sessões espíritas, uma compensação para definir alguma coisa deste mistério do diabo. Teme-se cair - alguns, pelo contrário, mostram-se sem preconceitos - em velhas teorias maniqueístas, isto é, que tinham o duplo princípio: Deus ou o demônio; ou em temerosas divagações fantásticas e supersticiosas.
É fácil, sim. Hoje, as pessoas preferem se mostrar fortes, sem preconceitos; armar-se em positivistas, em pessoas concretas. E, contudo, depois acreditam em tantas extravagâncias mágicas gratuitas e populares, em superstições: "Deus me livre do número treze! Ai de quem fizer isto!" E por que não? Acredita-se piamente nestas entidades imaginárias, observando-as de maneira escrupulosa, exagerada e quase ridícula. E, quando o Senhor diz: "Olha que não é nada disso!", ninguém acredita.
A nossa doutrina, quando queremos falar do diabo, torna-se incerta; quando queremos falar de nós tentados pelo diabo, então, torna-se mais que certa. A nossa curiosidade é excitada pela certeza da existência múltipla. Também isto: não existe apenas um diabo. Lembremo-nos do endemoniado de Gerasa: "Como te chamas? Chamo-me legião", que quer dizer exército; um exército de demônios tinha invadido aquele infeliz que Cristo libertou; os demônios arremessaram-se para uma grande vara de porcos e lançaram-se no lago de Genesaré, com grande desespero dos pobres guardadores.
E, agora, a resposta a duas perguntas. A primeira: "Há sinais? Sinais da presença diabólica e quais são?". E a segunda pergunta: "Quais são os meios de defesa contra um perigo tão insidioso?".
A resposta à primeira pergunta impõe muita cautela. Quais são os sinais? Embora os sinais do Maligno se pareçam a alguns, mesmo entre os padres. Tertuliano, por exemplo, afirma: 'É evidente que o demônio existe!'. Feliz dele que tinha olhos tão sagazes! -, poderemos pressupor a sua ação sinistra onde a negação de Deus se torna radical! Aqui está o inimigo, porque em vez de sermos levados a Deus, encontramo-nos diante de uma negação radical, sutil e filosófica. Uma negação radical! Ouviu falar da morte de Deus? Quem pode ter inventado tal coisa?
E, depois, onde se afirma a mentira hipócrita e poderosa contra a verdade evidente? Onde o amor se extinguiu, onde existe egoísmo frio e cruel: por detrás disso deve haver o dedo do diabo. Onde o nome de Jesus é impugnado com ódio consciente e rebelde... São Paulo diz: Quem nega Jesus Cristo: anathema sit - seja condenado. A condenação dirige-se ao inimigo que está por trás do homem negador. É onde o espírito do Evangelho é mistificado e desmentido; e onde o desespero se afirma como a última palavra. É a vitória do diabo.
Mas é um diagnóstico demasiado amplo e difícil este, que agora não ousamos aprofundar e autenticar; e tem um interesse dramático para todos, inclusive para a literatura moderna que lhe dedicou páginas famosas. Existe uma literatura inteira sobre o diabo, de grandes romancista, de grandes escritores. Alguns para o engrandecimento e outros, pelo contrário, para descobrirem a si próprios mediante um diagnóstico mais sutil e profundo.
Um dos autores que escreveu sobre este tema, com tanta sabedoria, tornou-se um dos primeiros literatos do nosso tempo: G. Bernanos. Autor de "Sous lê soleil de Satan" (Sob o sol de Satã) e tantos outros livros que falam, precisamente, da fenomenologia do demônio nas almas e de como ele sabe precisamente dissolver, desintegrar. O tema não se limita aos sonhos, às histórias de entretenimento ou à fantasia. Eles procuram identificar alguma coisa na paleta da psicologia humana, alguma marca do diabo, do demônio.
Sabemos, escreve o evangelista João, que nascemos de Deus, sim; mas que todo o mundo totus in maligno positus, está posto sob o domínio do mal, do Maligno: é uma pessoa. E isto é o que se pode dizer sobre a primeira pergunta: como identificar o mal?
Vigilate ot orate ut non intretis in tentationem (Vigiai e orai para qu enão entreis em tentação).
A outra pergunta: que defesas poderei desenvolver para opor a minha alma, a minha integridade à ação do demônio? É a resposta mais fácil de formular, embora seja difícil pô-la em prática. Poderíamos dizer: tudo o que nos defende do pecado também, por isso mesmo, nos abriga do inimigo invisível.
A graça é a defesa decisiva. Mas eis que, atualmente, tem caído a frequência aos Sacramentos, especialmente ao da penitência. É um grande perigo, porque deixamos de ter graça suficiente para nos opormos ao invasor que nos assedia. A inocência assume o aspecto de grande fortaleza. Uma criança é mais forte do que nós diante do diabo, porque é inocente. E, depois, todos se lembram de como a pedagogia apostólica tinha simbolizado na armadura de um soldado as virtudes que podem tornar um cristão invulnerável. São Paulo descreve toda a armadura romana: leva o capacete da salvação, leva a couraça, leva a espada, etc. Porque as defesas, para ser fortes, são múltiplas. E, por vezes, o cristão deve ser vigilante e forte; e, para ser militante, deve recorrer a algum exercício ascético especial para afastar certas incursões diabólicas. Isto também nos ensina sobre Jesus, que diz, diante dos Apóstolos que não tinham conseguido expulsar um demônio: 'Este demônio só pode ser expulso com a oração e com o jejum'.
Eis alguns meios com os quais se podem vencer muitas vezes, certas situações de assédio do inimigo. E o Apóstolo sugere a linha-mestra: 'Não vos deixeis vencer pelo mal', e 'Vence o mal com o bem'.
Por isso, com a consciência das adversidades presentes em que se encontram, hoje, as almas, a Igreja, o mundo, procuremos dar sentido e eficácia à conhecida invocação da nossa oração principal: o "Pai-Nosso".
Papa Paulo VI
*Itálicos originais. Sublinhos nossos.
Pe. Gabrielle Amorth, Novos Relatos de Um Exorcista.