Durante muito tempo, todos aqueles que se propunham seguir a Deus tinham a estrita obrigação de observar o sábado, o shabat, o descanso do sétimo dia. Deus mesmo o expressara a partir de várias determinações impostas ao seu povo. Depois, com o advento do cristianismo, passamos a guardar o domingo, dia do Senhor (dies Domini). Para muitos, porém, esta passagem parece estranha. Hoje ainda há quem continue com dúvidas a este respeito. Os hereges adventistas, que observam o sábado, e não o domingo, têm disseminado seus “ensinamentos” com não poucos prejuízos para os incautos, e muitos católicos que têm ouvido seus discursos falaciosos têm ficado com um pé atrás. Em virtude disto, nos detenhamos um pouco nestas questões.
Primeiramente, notemos que a observância sabática se fundamentava na autoridade do próprio Deus e isto, obviamente, já é um grande motivo, ou melhor, o maior, para se tratar a questão com o máximo rigor. Aquele que transgredia esta lei deveria ser punido até com a morte (Ex 31,15b). A coisa fica ainda mais difícil se considerarmos o que Jesus diz: “passará o céu e a terra antes que desapareça um jota, um traço da lei” (Mt 5,18). Ora, “trocar” o sábado pelo domingo não é mais que retirar um jota? Afinal, se alguém que transgredia o descanso sagrado merecia a morte, isto dá provas da seriedade deste ponto da Torá. Como então legitimar esta mudança? Não seria isto tudo uma prova irrefutável de que o sábado deveria ser perpetuado e de que a Igreja, passando a observar o domingo, havia traído a lei, apostatado de um ensinamento tão sagrado e, por isto, teria ela mesma se afastado de Deus? Não, não, não... Vejamos por que...
Primeiramente, não devemos pensar que o significado sabático se encerra estritamente no dia em si; ele vai mais além, e por diferentes razões.
1- O sábado está intimamente associado à criação do mundo, pois a tradição bíblica afirma que Deus descansou neste dia, após criar tudo o que há (Gn 2,2). Por isto, a observância do sábado - como o explica o judeu Jacob Neusner, citado por sua santidade Bento XVI em seu livro “Jesus de Nazaré” - é uma espécie de imitação de Deus. O homem é chamado a imitar a divindade no seu descanso e isto faz referência à própria vocação do homem, enquanto ser amado por Deus e chamado a participar da sua vida íntima. S. Pedro Julião Eymard afirmava que o amor faz imitar, o amor configura uma vida à outra, a do amante à do amado. Portanto, por trás do cumprimento do descanso sagrado, estava a imitação de Deus, caminho percorrido por todos os que O amam. Na seriedade deste dever, percebe-se quão grave é a necessidade de consagrar o próprio tempo a Deus. Ao fazê-lo, o homem declara que todos os seus interesses próprios são, na verdade, secundários; é o cumprimento prático do primeiro mandamento: neste dia, todos os compromissos naturais do homem cedem lugar àquele que é a razão primeira e fim último da sua vida: Deus. Na observância do primeiro mandamento, os demais também são cumpridos, pois estes são como desdobramentos e conseqüências daquele. Isto o ensina S. João da Cruz ao orientar toda a sua sistemática mística sobre o fundamento do amor a Deus sobre todas as coisas.
Depois, como a própria etimologia do termo sugere, (Shabat, do hebraico shabãt: descanso, inatividade, cessação) o sábado não apenas exige, mas permite que os homens descansem e, nesta dimensão, faz reconhecer, não apenas o amor dos homens a Deus, mas, antes o cuidado e zelo de Deus ao homem. É, pois, uma via recíproca de amor.
2 - Além destes aspectos, há um outro, por vezes não tão observado: o sábado possuía um forte significado de ordenamento social. Neste dia, toda a família era reunida em casa e isto permitia que ela, submetendo-se a um mesmo teto e, mais que isto, a um mesmo ideal, mantivesse sua força e estabilidade. Interessante que os antigos judeus fazem muita referência a este aspecto familiar. Costumam dizer: “o Deus de nossos pais” (Dt 26,7; 1 Cr 12,17...), o Deus de “Abraão, Isaac e Jacó” (Ex 3,16). Este caráter da descendência era-lhes muito importante; todo o Israel se reconhecia como descendente de uma mesma linhagem. Portanto, mexer no sábado era também ameaçar esta ordem que fora possível estabelecer pela observância do sétimo dia, ordem que existia como resultado da obediência a um preceito divino. Compreendemos, então, a gravidade da transgressão de uma tal lei. Não à toa também os judeus estranhavam as atitudes de Jesus que parecia mover-se, nestes campos tão rígidos, com uma espontaneidade suspeita. Por várias vezes o acusaram de desobedecer este preceito (Mt 12,2). A estes ataques, Jesus costumava responder com exemplos básicos, mas que punha os seus inimigos contra a parede (Mt 12,5; Mt 12,11-12). Dizia ainda que “o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2,27), isto é, não se tratava de fazer o homem escravo do sábado, mas, ao contrário, de libertá-lo a partir da sua correta compreensão. Além disto, Jesus diz também que é Senhor do Sábado (Mc 2,28) e, com isto, faz entender que está acima dele e possui toda a liberdade. Dessa forma, Ele, que é Senhor, pode ensinar a verdade sobre este dever, e o faz aprofundando o entendimento dos seus discípulos a este respeito.
Jesus, de fato, afirmou que não veio revogar a lei, isto é, não a veio destruir como se fosse algo inútil; mas diz também que veio aperfeiçoar (Cf Mt 5,17) e tal aperfeiçoamento se torna mais claro, na sua natureza, com os exemplos que o próprio Cristo traz: “foi dito: não matarás; aquele, porém, que odeia o seu irmão, é réu de assassinato; foi dito: não adulterarás; eu, porém, vos digo que quem olha uma mulher com desejo, já adulterou no seu coração” (Cf Mt 5, 21-28). Aquilo que antes corria o risco de reduzir-se a uma prática meramente exterior, a um formalismo, agora assume uma total vitalidade e fluidez. Da mesma forma, o sábado aqui aparece em seu real sentido, em seu significado mais profundo; é revelada a sua substância. Revogação e aperfeiçoamento são, ambos, mudanças, mas totalmente distintas uma da outra. Na revogação, temos a extinção de algo e sua substituição por outro, ou seja, trata-se aqui de uma mudança substancial. No aperfeiçoamento, porém, a mudança se dá no ser que permanece e o que acontece não é uma extinção, mas uma atualização de um certo potencial que já existia. Podemos, então, compreender da seguinte forma: revogação seria mudança de ser, enquanto que aperfeiçoamento seria mudança no ser. Com isto, é possível dizer que a perfeição da prática sabática estava, de certa forma, já latente na própria lei. Jesus a aperfeiçoa. Portanto, a mudança, desde que entendida da segunda forma, é sim legítima e não contradiz a própria irrevogabilidade do que está escrito.
Observemos, agora, como ficam estes significados profundos, intrincados na “teologia sabática”, a partir de Jesus.
1- Primeiramente, em se tratando da imitação de Deus, desde que se reconheça a divindade de Nosso Senhor, torna-se mais fácil imitá-Lo, pois Ele veio a nós. S. João escreve na sua carta:
“O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos olhos, o que temos contemplado e as nossas mãos têm apalpado no tocante ao Verbo da vida – porque a vida se manifestou, e nós a temos visto” (IJo 1,1-2).
Este contato com o próprio Deus permite que o seu servo O imite de uma forma muito mais perfeita do que apenas observando o dia de sábado. É o que nos recomendam os santos, pedindo-nos meditar a vida de Cristo afim de sabermos imitá-Lo.
2- Com relação ao descanso, Jacob Neusner nota uma relação curiosa; ele traz o texto em que Jesus diz: “vinde a mim todos vós que estais cansados, e eu vos aliviarei” (Mt 11,28). Descartando uma interpretação liberal e cômoda, o escritor judeu reconhece nesta frase de Jesus um nível altamente teológico. Enquanto, antes, o descanso era dado pelo dia de sábado, agora, de uma forma superior, Jesus mesmo será o descanso, o shabat; Ele é o cuidado de Deus mais próximo e mais imediato, uma expressão maior do amor divino, pois Ele mesmo é Deus. Fica claro, pois, que Jesus se põe no lugar do sábado e nada mais legítimo a quem seja o seu Senhor.
3- Tratemos agora do significado social a partir de Jesus. Este é um ponto particularmente difícil, pois o discurso de Nosso Senhor, aparentemente, ia de encontro àquilo que os judeus seguiam como ordem expressa de Deus. Enquanto os laços familiares apareciam como de suma importância, Jesus começa a dizer coisas do tipo: “quem ama seu pai e sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim” (Mt 10,37); ao rapaz que pediu a Jesus permissão de ir enterrar o pai antes de seguí-Lo, Nosso Senhor pede que ele deixe que os mortos enterrem seus mortos (Mt 8,22). Ora, mas isto não contraria frontalmente o mandamento de honrar pai e mãe? Como poderia Ele afirmar-se Filho de Deus e, ao mesmo tempo, instaurar uma tal tensão com relação àquilo que era preceito divino?
Os laços imediatos de consangüinidade, em Jesus, embora absolutamente não percam valor, cedem lugar para outros de maior excelência: os laços de parentesco espiritual. Este parentesco se fundamenta em algo muito claro: a realização da vontade divina. Ao desejar e praticar a vontade do Pai, os homens passam a participar de uma irmandade mais abrangente e de laços mais firmes; na verdade, inquebráveis. E é justamente isto o que Jesus diz: “Aquele que faz a vontade de meu Pai, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,50). Ora, o próprio Cristo viveu isto intensamente; já aos 12 anos estava no templo com os doutores da lei e interrogado por sua Mãe sobre o motivo porque tinha lá ficado, respondeu com uma maturidade e uma firmeza dignas de Quem é: “devo ocupar-me das coisas do meu Pai” (Lc 2,49). Já na vida adulta, quando os Apóstolos Lhe traziam comida, Ele respondia: “meu alimento é fazer a vontade de meu Pai” (Jo 4,34). Esta família, fundamentada na prática da vontade divina, corresponde, inclusive, de forma perfeita, à promessa de que o mundo conheceria o Deus de Israel e O adoraria. Pela própria natureza, a prática da vontade divina eleva-se a um nível universal e o Jesus, que antes se restringia apenas às ovelhas de Israel (Mt 15,24), agora ordena que os Apóstolos percorram os quatro cantos do mundo e anunciem o Evangelho a todos os povos. (Mc 16,15).
Um outro incômodo para os judeus residia no fato de que, ao se colocar no lugar do sábado, Jesus também como que substituía o “Israel” por aqueles que lhe seguiam, isto é, os Apóstolos que, mais tarde, formarão a Igreja, o novo Israel. Se a ordem social judaica se fundamentava a partir do sábado, agora, fundamentada em Jesus, surgia uma nova ordem, mais estável, pois era ligação íntima como o próprio Ordenador. Lembremos que Jesus, na oração do Pai-Nosso, associa a vinda do Reino do Pai com o fato de a sua vontade ser feita. Na verdade, pra Jesus esta vontade é o que há de mais precioso; por ela, Ele dará a vida. Ora, o Reino de Deus é o Céu; portanto, o Céu se reconhece quando a vontade divina se faz. Eis a verdadeira terra prometida. A promessa feita a Abraão agora, enfim, toma uma forma mais definida e já se vislumbra. Eis a profundidade do significado do “dia santo” que Jesus, substituindo-o por Si mesmo, vem mostrar em toda a sua luz.
Por fim, dissemos no início deste texto (que já vai longo), que o sábado está diretamente relacionado ao tema da criação. Sabemos que a criação se corrompeu pelo pecado de Adão. Por causa disto, como nos diz o livro do Gêneses, até a “terra foi maldita” (Gn 3,17). Desde então, a Sagrada Escritura inicia uma série de promessas da vinda de um Salvador que reconciliaria os homens com Deus e regenaria a criação. Ora, este Salvador é Nosso Senhor Jesus Cristo a quem S. Paulo chamou de “Novo Adão” (ICor 15,45). E por que “Novo Adão”? Adão foi o primeiro homem na ordem da natureza. Cristo será o primeiro homem na ordem da Graça. Desta forma, Ele reinaugura a criação, originando uma nova, recapitulando tudo o que há. Portanto, para uma nova criação, também um novo dia. Jesus ressuscita justamente no domingo, o primeiro dia da nova criação, e os cristãos, desde então, passarão a observar o domingo, conforme expresso no livro dos Atos: “no primeiro dia da semana, eles se reuniam para a fração do pão” (Cf At 20,7).
O próprio Paulo, que conhecia bem a lei, pois já fora fariseu, adverte aos seus que não se preocupem mais com estas questões de lua, de carnes ou de sábados, porque tudo isto não é mais que mera sombra do que havia de vir; a verdade, agora, é Cristo (Cl 2,16-17).
Compreendendo, pois, a natureza desta passagem do sábado para o domingo, ao mesmo tempo em que podemos ficar confiantes quanto à observância do primeiro dia da semana, também nos sentimos impelidos a uma maior seriedade com respeito ao Dia do Senhor. Será que, de fato, temos observado esta prescrição como um mandamento, ou temos a tratado com solene desprezo? Será que o rigoroso cuidado dos hereges motivado por uma falsa compreensão do preceito divino não nos envergonha em nossa negligência em face da verdade?
Que Maria Santíssima nos ensine a ser bons cristãos.
Que assim seja.
Fraternalmente
Fábio.
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