Tradutor / Translator


English French German Spain Italian Dutch Russian Portuguese Japanese Korean Arabic Chinese Simplified

A verdade não pode ser submetida a questionamento radical


Vai abaixo parte de um texto que considero magistral do filósofo brasileiro Olavo de Carvalho.

 **
O passo seguinte da investigação consiste em perguntar se a verdade, assim definida, pode ou não ser objeto de questionamento radical. Com a expressão questionamento radical quero dizer aquele tipo de questionamento que, admitindo ex hypothesi a inexistência do seu objeto, — como por exemplo tantas vezes se fez com a existência de Deus, das idéias inatas ou do mundo exterior — termina por concluir, seja em favor dessa mesma inexistência, seja da existência.

O questionador radical de Deus, das idéias inatas ou do mundo exterior pode questioná-los porque se coloca, desde o início, fora do terreno divino, inatista ou mundano, ou seja, ele raciocina como se Deus ou as idéias inatas ou o mundo não existissem. Conforme o desenrolar de sua investigação, ele chegará ou à conclusão de que sua premissa é absurda, o que o levará portanto a admitir a existência daquilo cuja inexistência havia postulado, ou, inversamente, à conclusão de que a premissa se sustenta perfeitamente bem e de que aquilo que foi suposto inexistente realmente inexiste.

O mais clássico exemplo de emprego desse método é o de Descartes. Ele pressupõe a inexistência do mundo exterior, dos dados dos sentidos, do seu próprio corpo, etc., etc., e continua raciocinando nessa linha até encontrar um limite — o cogito ergo sum — que o obriga a recuar e a admitir a existência de tudo quando havia inicialmente negado.

O questionamento radical é o mais duro teste a que a filosofia pode submeter qualquer idéia ou ente que se pretenda existente.

O que devemos perguntar, portanto, logo após termos obtido a definição formal da verdade, é se a verdade assim definida pode ser objeto de questionamento radical. A resposta, que a muitos talvez pareça surpreendente, é um taxativo não. A verdade não pode ser objeto de questionamento radical.

Nenhuma investigação sobre a verdade, por mais radical que se pretenda, pode dar por pressuposta a inexistência de qualquer fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos e continuar a raciocinar de maneira consistente com essa premissa até chegar a algum resultado, positivo ou negativo. E não pode por uma razão muito simples: a afirmação da inexistência absoluta de qualquer fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos constituiria, ela própria, o fundamento cognitivo permanente e universal dos juízos subseqüentes feitos na mesma linha de investigação. A investigação estaria paralisada tão logo formulada.

Examinemos brevemente algumas das estratégias clássicas de negação da verdade a que o questionador pudesse recorrer para escapar desse cul-de-sac.

Tentemos, por exemplo, a estratégia pragmatista. Ela afirma que a validade dos juízos repousa na sua utilidade prática, que portanto o fundamento dessa validade não é cognitivo. Se disséssemos que a inexistência de um fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos não é ela própria um fundamento cognitivo universal e permanente, mas apenas um fundamento prático, das duas uma: ou esse fundamento prático teria de ser por sua vez universal e permanente, ou seria apenas parcial e provisório.

Na primeira hipótese, teríamos dois problemas: de um lado, cairíamos no paradoxo de uma utilidade universal, ou seja, de algo que poderia utilmente servir a todos os fins práticos, mesmo os mais contraditórios. Seria o meio universal de todos os fins ou, mais claramente ainda, a panacéia universal. De outro lado, teríamos de perguntar se a crença nesta panacéia teria por sua vez um fundamento cognitivo ou se ela seria apenas uma utilidade prática, e assim por diante infinitamente.

Na segunda hipótese — isto é, na hipótese de o questionador admitir que a afirmação da inexistência da verdade é apenas um fundamento parcial e provisório para a validade dos juízos subseqüentes —, então, evidentemente, restaria sempre, inabalável, a possibilidade de que fora do terreno assim delimitado pudessem subsistir outros fundamentos cognitivos universais e permanentes para validar uma infinidade de outros juízos, e a investigação poderia prosseguir indefinidamente, saltando de fundamento provisório a fundamento provisório, sem jamais poder chegar a fundamentar-se no seu próprio pressuposto, isto é, na radical inexistência da verdade.

Tentemos uma segunda estratégia, a do relativismo subjetivista. Este proclama, com Protágoras, que "o homem é a medida de todas as coisas", o que se interpreta correntemente no sentido de que "cada cabeça, uma sentença", ou seja, de que o que é verdade é verdade apenas desde o ponto de vista daquele que a pensa, podendo ser falsidade desde o ponto de vista de todos os demais. Pode essa afirmação constituir a base de um questionamento radical da verdade, de tal modo que a negação da existência de qualquer fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos não se torne ela mesma o fundamento cognitivo universal e permanente em que se apóia a validade dos juízos subseqüentes na mesma linha de investigação? Dito de outro modo, e mais simples: pode o relativismo negar a existência de juízos válidos para todos os homens sem que essa negação se torne ela mesma um juízo válido para todos os homens? Para fazê-lo, ele teria de negar a universalidade dessa negação, o que resultaria em admitir a existência de algum ou de alguns ou de uma infinidade de juízos válidos para todos os homens. Assim o relativismo estaria ele próprio relativizado e acabaria se resumindo numa platitude sem qualquer significado filosófico, isto é, na afirmação de que alguns juízos não são válidos para todos os homens, o que implica a possibilidade de que outros juízos talvez o sejam. Não, o relativismo subjetivista não pode realizar um questionamento radical da verdade, tanto quanto não o podia o pragmatismo.

Poderá fazê-lo, então, o historicismo? Este declara que toda verdade é apenas a expressão de uma cosmovisão temporalmente localizada e limitada. Os homens pensam isto ou aquilo não porque aquilo ou isto se imponha como verdade universalmente e permanentemente obrigatória, mas apenas porque se impõe num lugar e por um período limitados. Ao proclamar esses limites, pode o historicismo impedir que a afirmação desses limites se torne ela própria o fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos? Para tanto, seria necessário admitir que pode haver algum fundamento que negue essa afirmação; mas, se esse fundamento existe, então existe alguma verdade cuja validade é ilimitada no tempo e no espaço, alguma verdade cuja validade escapa ao condicionamento histórico — e o historicismo estaria reduzido à miserável constatação de que alguns fundamentos de validade são condicionados historicamente, outros não, sem poder sequer aplicar esta distinção aos casos concretos sem afirmar no mesmo ato a invalidade do princípio historicista tomado como regra universal.

Pouparei ao leitor a enumeração de todos os subterfúgios possíveis e sua detalhada impugnação. Ele mesmo pode realizá-los, a título de exercício, se assim o desejar. Sugiro mesmo que o faça. E tantas vezes quantas venha a fazê-lo terminará sempre voltando ao mesmo ponto: não é possível negar a existência de um fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, sob qualquer pretexto que seja, sem que essa negação, junto com o seu respectivo pretexto, tenha de se afirmar ela própria como o fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, paralisando assim a negação seguinte pela qual deveria prosseguir, se pudesse, a investigação. A verdade tal como a definimos não pode, em suma, ser objeto de questionamento radical. Nem o pode a possibilidade de conhecê-la. Negado que seja possível conhecer qualquer fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, ou esta impossibilidade mesma se tornaria tal fundamento, afirmando no mesmo ato sua própria falta de qualquer fundamento, ou então, para não assumir esse papel vexaminoso, teria de se limitar a afirmar que alguns juízos não têm fundamento e outros provavelmente têm, afirmação que está ao alcance de qualquer garoto de escola.

Não podendo atingir o alvo colimado, o inimigo da verdade está portanto condenado a roê-la pelas beiradas, eternamente, sem jamais chegar ao centro vital daquilo que desejaria destruir. Ele ora negará uma verdade, ora outra, ora sob um pretexto, ora sob outro, variando as estratégias e as direções do ataque, mas não poderá nunca se livrar do seu destino: cada negação de uma verdade será a afirmação de outra, e tanto aquela negação quanto esta afirmação resultarão sempre na afirmação da verdade como tal, isto é, da existência efetiva de algum fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos.
Isso explica, ao mesmo tempo, a proliferação contínua, ilimitada e irrefreável das negações da verdade, e a sua completa impossibilidade de varrer da face da Terra a crença na existência da verdade, a crença na possibilidade de conhecer a verdade, a crença na posse atual e plena de alguma verdade capaz de dar fundamento universal e permanente à validade dos juízos.

Por isso o número e a variedade dos ataques à verdade, de Pirro a Richard Rorty, superam amplamente o número e variedade das defesas que se apresentam formalmente como tais: é que eles próprios, ainda que a contragosto de seus autores, acabam sempre constituindo defesas e louvores da verdade, não só poupando trabalho ao apologista, mas vivificando eles próprios aquilo que desejariam sepultar e honrando aquilo que desejariam humilhar.

Essa é também a razão por que o principiante, impressionado pela variedade e contínua retomada dos ataques à verdade que se observa na história da filosofia — em velocidade notavelmente crescente nos dias de hoje —, adere logo ao ceticismo para não se sentir membro de uma minoria isolada e enfraquecida, mas, prosseguindo seus estudos e superando a primeira impressão fundada apenas na quantidade aparente, não consegue manter essa posição e acaba percebendo que a força não reside no número dos que negam, por mais impressionante que pareça, e sim na qualidade dos happy few que serenamente afirmam a verdade.

Blog Widget by LinkWithin

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Fique à vontade para comentar. Mas, se for criticar, atenha-se aos argumentos. Pax.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...