I. Divergências dos historiadores.
II. Número verossímil das vítimas em toda a França.
III. Questão acessória: É verdade que Carlos IX tenha atirado contra os protestantes?
Conclusão.
I. Seria pretensioso querer determinar, mesmo aproximadamente, o número das vítimas da São Bartolomeu, quer em Paris, quer nas províncias. Entre os diversos historiadores, a diferença é por demas sensível e suas divergências se explicam. Uns e outros são levados a aumentar ou a diminuir o número, segundo seu interesse ou partido. É de notar também que os autores acham complacência em aumentar tanto mais o número das vítimas, quanto mais afastados se acham do tempo de que escrevem.
O calvinista La Popelinière o avalia em mais de dois mil por toda a França, e em mil só em Paris; Tavannes em dois mil só na capital. Papyre-Masson, contemporâneo protestante, mais tarde convertido, conta dez mil vítimas; o Martirológio protestante, impresso em 1582, dez anos só depois dos acontecimentos, quinze mil; de Thou, apologista dos protestantes, fala em trinta mil; Davila, pagem de Catarina de Medicis, e mais tarde historiador das guerras de religião na França, elevou o número a quarenta mil; Sully, apegado aos erros dos calvinistas, a setenta mil; e Péréfixe, bispo de Rodez, preceptor de Luiz XIV, cujo fim era inspirar horror por aquela tragédia, chega até cem mil.
II. Apesar das buscas dos eruditos e dos documentos históricos publicados, seria temerário adotar um número exato, e o mais prudente é ainda, como no tempo em que o padre Caveirac publicava sua Dissertação sobre a São Bartolomeu (1758), tomar por base os cálculos do próprio Martirológio dos calvinistas.
Eis o seu quadro.
Cidades
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Número Geral
das Vítimas
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Número daquelas que são nomeadas
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Paris
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Em geral, 10.000, detalhadamente 468
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152
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Orléans
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1.850
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156
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Meaux
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225
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30
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Troyes
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37
|
37
|
Burges
|
23
|
23
|
La Charité
|
20
|
10
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Lyão
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1.800
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144
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Saumur et Angers
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26
|
8
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Romans
|
7
|
7
|
Ruão
|
600
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212
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Tolosa
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306
|
0
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Bordéus
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274
|
7
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Total
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15.168
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786
|
O autor desse Martirológio, contemporâneo dos fatos, calvinista de religião, encarregado de modo quase oficial desse trabalho, não julgou poder levar além de 15.168 o número das vítimas; pois deve ser ele considerado como um total máximo. Ainda, oferece lugar a justas observações.
1º O total, dado pelo Martirológio, não será sensivelmente exagerado? Há muitos motivos para o acreditar. Em primeiro lugar, não é de admirar que, depois de ter indicado em geral 15.168 vítimas, o autor não possa designar pelo nome mais do que 786. Dir-se-á talvez que citou só as mais ilustres. Mas não é isso, pois que nessa enumeração há nomes de pessoas desconhecidas e de nenhuma importância social. Deve-se então concluir que na realidade, não houve mais que as 786 vítimas nominalmente designadas? Tal não pretendemos; sabe-se, com efeito, o que acontece nos tumultos populares. Contudo, há de se convir que, entre a generalidade e os pormenores, a diferença é por demais sensível.
2º O autor dá em Paris o número total de 10.000 vítimas e detalhadamente só acha 468, e de todos aqueles infelizes mortos nas ruas de Paris, nominalmente designa apenas 152. Segundo o Martirológio, a maior parte dos cadáveres foi lançada no Sena. Ora, um documento autêntico, uma conta da casa da câmara municipal, dá o número exato dos cadáveres retirados do Sena e sepultados nos arredores de Saint-Cloud, Auteuil e Chaillot: 1.100 corpos recolhidos foram enterrados. As avaliações dos contemporâneos menos suspeitos, ficam pouco abaixo ou acima desse número, e demonstram que o total de 2.000, dado por Papyre-Masson, nem foi alcançado, e que La Popelinière é mais chegado à verdade quando fixa em mil as vítimas na capital.
Reduzindo na mesma proporção os números indicados pelo Martirológio calvinista para as outras cidades, chega-se a esta apreciação geral, que o total das vítimas, em toda a França foi apenas de 2.000: é certamente demais; mas vai longe disso as exagerações dos protestantes e dos ímpios.
III. Agora que se há de pensar desta asserção que o próprio Carlos IX, na manhã de São Bartolomeu, de uma janela do Luvre, tenha atirado contra os protestantes? Essa afirmação é de Brantôme e acrescenta ele ainda que o mosquete do rei não podia alcançar o alvo. D'Aubigné, de Thou, o duque de Anjú na sua narrativa a Miron, em suma, nenhum dos contemporâneos fala desse pormenor. O testemunho de Bratôme é consideravelmente infirmado: 1º pelo fato, por ele próprio confessado, que se achava a mais de cem léguas de Paris; 2º por este trecho de um panfleto protestante de 1579, Le tocsin contra les massacreurs: "Nesta circunstância, o rei não poupava sua pessoa; não que ele próprio manchasse as mãos com o sangue, mas porque ordenava que lhe trouxessem os nomes dos mortos e dos presos"; 3º a janela do Luvre, em que a comuna de Paris (1793) decretou que seria colocado um cartaz infamante, em memória de Carlos IX atirando contra o povo, não existia no tempo desse rei: aquela parte do Luvre foi construída só no fim do reinado de Henrique IV.
Eis portanto, reduzido às proporções da verdade histórica, o que foi o massacre da São Bartolomeu.
1º Fica pois provado e é do domínio da história que nem o papado, nem o partido religioso, que compreendia então a maior parte da nação, não podem ser em nada responsáveis de um acontecimento que não prepararam e ao qual não foram associados senão por atos isolados, individuais, de alguns católicos ardentes que conservam a responsabilidade pessoal do que fizeram.
2º A questão de premeditação, tantas vezes invocada, não pode ser admitida por um espírito sério e leal: seria incriminar as intenções, por meio de suposições e conjecturas perfeitamente gratuitas.
3º É demonstrado que o Martirológio mesmo é suspeito de erro em muitos pontos, exagerou o total das vítimas, e, aos números extravagantes citados por historiadores levados pelo preconceito, é permitido opôr cálculos mais equitativos que reduzem as vítimas a dois ou três mil. Certamente este número, por restrito que seja, é ainda muito grande e permanece como uma mancha sangrenta na história francesa, estigmatizando a fronte de Catarina de Médicis e de Carlos IX com um ferrete tanto mais odioso que o atentado foi decidido em conselho de governo.
Contudo, é permitido concluir com um escritor protestante da Inglaterra: "Não se deixem ofuscar os leitores atentos, diz Cobbet, pelas declamações filantrópicas e filosóficas, nas quais a palavra São Bartolomeu produz sempre um tão admirável efeito. Lembrem-se que na época de que falamos, Isabel, chegada ao décimo quarto ano de seu reinado, fez assassinar um número de seus súditos, por terem permanecido fiéis à fé de seus pais, muito maior do que o total de protestantes que sucumbiram no tumulto da São Bartolomeu(1)"
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(1) Cartas sobre a Reforma, carta X.
Nestes últimos tempos , apareceram numerosos e sérios trabalhos sobre esta importante questão histórica. Entre os autores mais conhecidos, citemos: na Inglaterra, Henrique White; na Alemanha, Leopoldo Ranke, Raumer e Soldan; na Itália, Eugênio Albert ou o P. Theiner; na França, Henrique Martin, Alfredo Maury, Boutaric, o visconde de Meaux; todos unâniomes, sem ter entrado em acordo, demonstram que o crime da São Bartolomeu, reprovado igualmente por todos, tinha pelo menos a desculpa de não ter sido premeditado. Capefigue no seu livro, La Réforme et la Ligue, prova a mesma verdade; de Falloux (Correspondant, 1886 a 1885) mostrou que aquele deplorável acontecimento pertence exclusivamente à política e não à Religião; enfim Carné, na Revue des Deux-Mondes (1845); Jorge Gandy, num primeiro estudosobre a São Bartholomeu, suas origens e seu verdadeiro caráter (nºs de julho e outubro de 1866 na Revue des questions historiques, t. I), e numa apreciação do livro do senhor de la Ferrière sobre a mesma questão (Revue des questions historiques, t. XLI, abril de 1892); e G. Baguenault de Puchesse (mesma Revista, t. XXVII, janeiro de 1880), livraram igualmente da censura de premeditação e cilada Catarina de Médicis e Carlos IX. Aos olhos da sã crítica, pode-s dizer que a luz está feita sobre este triste acontecimento do século XVI. Achar-se-á a questão longamente tratada no livro do padre Lefortier, la Saint-Barthélemy et les premières guerres de religion en France (1879), e um excelente resumo na brochura de Henrique Hello, la Saint-Barthélemy (1899).
Pe. Cauly, Curso de Instrução Religiosa, Tomo IV, Apologética Cristã, Parte Histórica, Cap. III, pp.413-417.
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