Caindo a alma na conta do que está obrigada a fazer, vê como a vida é breve (Jó 14,5), e quão estreita é a senda da vida eterna (Mt 7,14); considera que mesmo o justo dificilmente se salva (1Pd 4,18), e que as coisas do mundo são vãs e ilusórias, pois tudo se acaba como a água corrente (2Rs 14,14). Sabe que o tempo é incerto, a conta rigorosa, a perdição muito fácil, e a salvação bem difícil. Conhece, por outra parte, a sua enorme dívida para com Deus que lhe deu o ser a fim de que a alma pertencesse totalmente a ele; deve, portanto, só a Deus, o serviço de toda a sua vida. Em ter sido remida por ele, ficou-lhe devedora de tudo, e na necessidade de corresponder ao seu amor, livre e voluntariamente. E em outros mil benefícios se acha obrigada para com Deus, antes mesmo que houvesse nascido.
E, no entanto, compreende agora como grande parte de sua vida transcorreu em vão, não obstante a razão e conta que terá de dar a respeito de tudo, tanto do princípio como do fim, até o último ceitil (Mt 5,26) quando Deus vier esquadrinhar Jerusalém com tochas acesas (Sb 1,12), e que já é tarde, e talvez chegado o último dia (Mt 20,5)! E assim a alma, sobretudo, por sentir Deus muito afastado e escondido, em razão de ter ela querido esquecer-se tanto dele no meio das criaturas, tocada agora de pavor e de íntima dor no coração à vista de tanta perdição e perigo, renuncia a todas as coisas; dá de mão a todo negócio; e sem dilatar mais dia nem hora, com ânsia e gemido a brotar-lhe do coração já ferido pelo amor de Deus, começa a invocar seu Amado.
S. João da Cruz, Cântico Espiritual, Anotação. Obras Completas. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. pp. 593-594.
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