Olavo de Carvalho
Para compreender por que Schopenhauer opôs tão rigorosamente uma à outra essas duas artes que Aristóteles concebera como solidárias (A lógica e a dialética), temos de levar em conta que o adversário ideal visado por ele era Hegel, para quem a dialética constituía não apenas o método essencial, mas o conteúdo mesmo da filosofia e a lei constitutiva da estrutura do mundo - embora o próprio Hegel, em particular, na sua célebre conversa com Goethe, declarasse não ver no método dialético "nada mais que o espírito de contradição sistematizado".1
Se nos lembrarmos de que Goethe, ante essa definição, mal pôde esconder seu desprezo por uma atividade mental que lhe pareceu arriscada e artificiosa, e de que, na teologia cristã, o espírito de contradição é o diabo propriamente dito, compreenderemos perfeitamente a estratégia de Schopenhauer. tendo Hegel na mira de seus ataques, e desejando empregar contra ele as armas forjadas por Aristóteles, teve de primeiro extirpar da dialética do Estagirita todos os elementos de valor cognitivo - transferindo-os para o departamento de lógica -, para reduzi-la a uma arte da disputa indiferente à verdade e, em seguida, mostrar que uma filosofia reduzida à dialética, como a de Hegel, era uma filosofia indiferente à verdade. Procedimento estritamente dialético, no sentido schopenhaueriano do termo. E, se essa operação não lhe pareceu falsear as intenções do Estagirita, mas até mesmo realizá-las de modo mais perfeito, foi precisamente porque, na época, a dialética de Aristóteles ainda vegetava, no fundo da cozinha, na condição de serva da analítica. Empreendido hoje, depois de Weil e Dumont, o projeto de Shopenhauer teria de se apresentar como disciplina nova e independente da dialética aristotélica (se bem que correlacionada a ela), sob pena de que o meio acadêmico, jogando a criança fora com a água do banho, o rejeitasse como mera interpretação falseada de Aristóteles.
Não é preciso dizer que a estratégia de Shopenhauer, se recorreu a um expediente erístico, não consistiu em erística exclusivamente, uma vez que ele tinha a alegar contra Hegel também razões de ordem estritamente lógica, deduzidas dos princípios de sua própria filosofia, expostos em O Mundo como Vontade e Representação.
Mas é preciso notar que a superioridade da lógica sobre a dialética, que Schopenhauer proclama, é meramente relativa e não implica nenhuma confiança profunda no poder cognitivo da lógica. Todo conhecimento, em Schopenhauer, está rigorosamente circunscrito pelos limites kantianos: consiste apenas na esfera dos "fenômenos", sobre o fundo eternamente incognoscível da "coisa-em-si". A lógica é, portanto, no sistema schopenhaueriano, apenas a esquemática da razão humana, e não a tradução da esquemática do mundo no microcosmo da razão humana. Aqui, como em Kant, ela não tem mais o alcance ontológico que tinha em Aristóteles. A diferença, a única diferença substancial, entre Kant e Schopenhauer é que o primeiro nada diz sobre a coisa-em-si, ao passo que o segundo deduz, da sua incognoscibilidade mesma, a sua total irracionalidade - uma conclusão que Kant não quis tirar, mas que se segue inapelavelmente das suas premissas.
De fato, se a lógica é apenas o esquema da razão humana, que se ergue na ponta do processo de manifestação cósmica da coisa-em-si sem poder retroagir para abarcar cognitivamente a causa que a criou, a coisa-em-si está eternamente fora do alcance de todo conhecimento racional, é portanto irracional, a-racional ou pré-racional. Tal como os sentidos, a razão é uma das formas do mundo da Representação, a casca de aparências que encobre a misteriosa Vontade universal.
nesse mergulho no mais sombrio da irracionalidade, observa-se uma significativa inversão do Absoluto de Schelling: enquanto este era não somente fonte do processo cósmico, mas meta do processo cognitivo, da dialética que ia unindo natureza e subjetividade na escalada conjunta de ciência e mística, Schopenhauer, colocando natureza e subjetividade numa evolução linear e sem volta que vai da Vontade primeva ao surgimento da razão humana (e não mais lado a lado, como manifestações dialeticamente complementares, tal como as via Schelling), corta toda via de acesso ao conhecimento do Absoluto: pois a consciência e a razão estão ainda mais afastadas da origem do que o está a natureza, e, para conhecer essa origem teriam de primeiro abdicar de si mesmas, dissolvendo-se na obscuridade da natureza para chegar à obscuridade ainda mais funda da arbitrária Vontade universal.
Torna-se aí manifesto que o descrédito do conhecimento, a queda no irracionalismo e numa visão trágica do universo se seguem fatalmente do abandono da dialética (no sentido aristotélico e no sentido schellinguiano do termo): fundada exclusivamente na lógica analítica, a visão linear que Schopenhauer tem da manifestação cósmica é necessariamente a de um progressivo afastamento em que, quanto mais ela se eleva à consciência, mais se distancia da origem.
A dialética de Schelling constituiu um momento, breve e fulgurante, de equilíbrio dinâmico entre mística e racionalismo, entre a alma e o mundo, unidos, na origem e na meta, pelo Absoluto. No instante seguinte, o equilíbrio rompe-se: se em Schelling a dialética era o meio de acesso ao Absoluto e este constituía a identidade suprema, acima de toda dialética, em Hegel o Absoluto mesmo é dialetizado e, destituído de toda Identidade salvo a de um conceito vazio, não lhe resta senão tentar preencher-se de conteúdo no decurso do processo dialético-histórico. De um só golpe, a História tomava o lugar de Deus, e a escalada dialética já não era a da alma que ascendia a Deus, mas a das formações históricas que se sucediam em direção ao Estado moderno.
Ora, o recurso à dialética aparecera, em Schelling, como a via de solução para as famosas antinomias em que, segundo Kant, desembocava toda investigação metafísica, no sentido clássico do termo. Kant, tendo descoberto os limites da metafísica dedutiva do racionalismo, generalizava-os para "toda metafísica futura que pretenda apresentar-se como ciência". Schelling empreendeu demonstrar que a generalização fora longe demais, que esses limites não se aplicavam a uma metafísica dialética. Assim fazendo, reabriu o caminho para o conhecimento intelectual de Deus. Nesse caminho, a dialética era o instrumento pelo qual o homem se orientava no mundo da manifestação cósmica - constituído de polarizações que não se deixavam aprender numa lógica linear - para poder ascender até o plano da Identidade, onde toda dialética se tornava dispensável e onde se reencontrava a plena coincidência entre princípios lógicos e ontológicos; coincidência que o racionalismo falhara em demonstrar porque acreditara ingenuamente poder observá-la na esfera da manifestação cósmica, a qual, por sua estrutura polar, só pode ser apreendida dialeticamente.
Mas o diabo é veloz. A via reaberta por Schelling foi fechada às pressas por Hegel, mediante o simples recurso de romper o equilíbrio, enfatizando exageradamente o poder da dialética como o racionalismo clássico tinha exagerado o da lógica analítica: a dialetização do Absoluto era a negação da Identidade, a absolutização do cosmos compreendido como processo histórico. O Deus que não tinha conteúdo próprio, mas que ao mesmo tempo só podia realizar-se pelas sucessivas negações de si mesmo, só adquiria identidade consistente no final do processo, sob a forma de Estado. Ninguém teve a coragem de perguntar a Hegel como um conceito vazio poderia negar-se a si mesmo e como essa autonegação, supondo-se que já não fosse em si mesma um monumental contra-senso, poderia dar nascimento a um processo real.
Na atmosfera de furor acadêmico despertado pela nova filosofia, ninguém parecia ter a condição de refutar o pensamento complexo, enigmático, que mudava de repente o eixo de todas as discussões e inaugurava um novo repertório de interesses. Sob a estridência das fanfarras hegelianas, o apelo para um retorno da alma a Deus tornava-se inaudível. O foco de atenção se deslocava, em aparência definitivamente, da busca da perfeição da alma para a luta pelo Estado perfeito. Inaugurava-se uma nova guerra de doutrinas, diferente de todas as anteriores; o meio filosófico dividia-se segundo as categorias políticas modernas: direita e esquerda. E, sob a disputa cada vez mais ruidosa e sangrenta entre as duas formas possíveis do Estado, a questão do destino da alma parecia antiquada e desinteressante.
O giro do cenário fora repentino e completo: a busca de Deus estava excluída do terreno filosófico, doravante ocupado pela disputa de ideologias.2 Também não houve quem perguntasse a hegel como almas desarraigadas de sua vocação espiritual poderiam construir o Estado perfeito.
Schopenhauer, como muitos outros desde o seu tempo até hoje, recuou horrorizado ante a máquina racional-dialética que, investida do prestígio sacro do Absoluto, seguia implacavelmente o seu curso em direção ao Estado, esmagando sob suas rodas todas as aspirações mais íntimas do coração humano.
Mas, para desmontar a máquina, resolveu atacá-la justamente pelo flanco dialético, por julgar que, negado o poder cognoscitivo do método dialético, viria por terra toda a filosofia de Hegel. Talvez viesse, mas a que preço?
O preço foi o seguinte: excluído o método dialético, só sobravam os velhos métodos do empirismo e do racionalismo - os dados dos sentidos e da lógica. Kant já demonstrara que nem aqueles nem esta podiam ter acesso à coisa-em-si. Só restava então tirar a conclusão que Kant não ousara tirar, e que constitui o cerne mesmo da filosofia de Schopenhauer: a coisa-em-si, estando fora do mundo da representação, não apenas é extra-sensorial mas é também irracional, alheia a toda lógica.
Pior ainda: abandonado o método dialético, também não se podia mais encarar a coisa-em-si como meta de uma escalada cognitiva. Se em Schelling o Absoluto era alfa e ômega, origem da manifestação cósmica e meta resplandecente do conhecimento humano, em Schopenhauer ele se tornava um alfa sem ômega, uma origem sem meta, eternamente escondida atrás de nós e para sempre inacessível exceto pelo caminho do retrocesso, isto é, da destruição da manifestação mesma e, a fortiori, de toda consciência humana, cume da manifestação. De Schelling a Schopenhauer, a visão circular do universo, onde o homem vinha de Deus e a Ele retornava, é substituída por uma sequência linear, onde o retorno é autodestruição e só resta à consciência desenganada contemplar esteticamente a sua própria impotência. Eis como a negação da dialética como racionalidade imperfeita, em prol da perfeita racionalidade da lógica analítica, desemboca no completo irracionalismo.
Sufocada a voz de Schelling, cujas derradeiras obras foram solenemente ignoradas pelos seus contemporâneos, Hegel e Schopenhauer inauguram a sensibilidade propriamente moderna, onde já não se compreende nenhuma dialética senão no sentido histórico-social, e onde, por outro lado, a alma se debate em vão entre o universo fechado do dedutivismo lógico-matemático e o abismo sem forma de um infinito compreendido como pura irracionalidade. Com eles, entramos em cheio na era dos utopismos sociais, da tecnocracia e da pseudomística. Já é o mundo de Marx e Nietzsche, Freud e Kafka, Hitler e Wittgenstein, Gurdjieff e Skinner. É o "nosso" mundo.
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1 Eckermann, Conversações com Goethe, 18 de outubro de 1827
2 Está aí a raiz do mais trágico erro de perspectiva moral em que a humanidade caiu ao longo de toda a sua História: a convicção de que é a sociedade, e não os indivíduos concretos, o verdadeiro sujeito da responsabilidade moral - o pressuposto que está na base de toda a atual ideologia "politicamente correta". Sobre algumas consequências práticas da disseminação dessa crença, v. "Bandidos & letrados" e "A superioridade moral da esquerda, ou: o rabo e o cachorro" em O Imbecil Coletivo.
CARVALHO, Olavo de. Introdução Crítica. In: SCHOPENHAUER, Arthur. Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. pp 65-75.
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