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A mística independe da doutrina?

Êxtase de Sta Teresa D'Avila

Bem. Temos tratado recorrentemente sobre assuntos relacionados à doutrina da Igreja, sobretudo no que diz respeito a matérias teológicas e tal. E quando eu escrevo "temos", estou me referindo a toda esta leva de blogs católicos que têm se dedicado a fazer um trabalho alternativo de formação dos cristãos, já que, ao que parece, e sem querer generalizar, as catequeses por aí não deram conta nem de formar nos princípios básicos da doutrina católica nem de instigar um ulterior aprofundamento da mesma.

É, às vezes, com comoção que lemos os relatos de inúmeras pessoas que, ao entrar em contato com a infalível verdade católica, passam a respirar, depois de tanto tempo, ares frescos e convertem-se e agradecem veementemente a pessoa da qual Deus se utilizou para fazer resplandecer um raio da Sua luz puríssima.

No entanto, há pessoas até um tanto familiarizadas com certas questões teológicas, mas que persistem na prática de uma mística incorreta e adversa à verdadeira espiritualidade católica. Agem como se estes - doutrina e mística - fossem terrenos estanques, que não se comunicam, quando, na verdade, ocorre justamente o contrário.

Existe uma teoria que ganha cada vez mais adeptos mundo afora e que consiste em dizer que a mística ou a experiência direta com a divindade localiza-se num nível supra-denominacional. As diferentes religiões e doutrinas seriam modos imperfeitos, acomodados ao limite humano, de fazer compreender algo daquele "quê" transcendente. Uma vez, porém, que alguém alcançasse a experiência mística, já não seria preciso manter-se dentro dos limites doutrinários que seriam como que uma palavra penúltima antes da imersão no abismo místico. As religiões seriam, na verdade, tentativas sistemáticas de expressão da experiência do inefável. Como não se pode esperar que todos os homens sejam místicos, então os diferentes sistemas religiosos mantêm a sua vigência, pois, então, eles servem para fazer vislumbrar algo daquele mistério.

Esta doutrina do relativismo religioso em função de uma idêntica experiência mística, como eu falei, tem ganho cada vez mais espaço. S. João da Cruz, por exemplo, é muitas vezes instrumentalizado em discursos e palestras sobre o assunto e mostrado como exemplo desta teoria. Por ser chamado de "doutor do nada", é comum que se faça já uma precipitada identificação entre este nada e o nada budista, pretendendo mostrar como o termo - objetivo alcançado - dos diferentes sistemas é, na verdade, o mesmo. Mestre Eckhart, um sujeito místico e, no dizer de alguns, gnóstico - enfim, alguém suspeito mesmo -, embora de fundo cristão, é outro personagem constantemente evocado nessas discussões.

Um escritor católico, inclusive monge trapista, e de quem recorrentemente trago textos aqui, é também bastante criticado porque aparentou partilhar de uma teoria similar. É o Thomas Merton. Pelo que conheço dele, nunca vi nada explícito neste sentido, mas é certo que ele cultivava bastante interesse na mística oriental e passou os seus últimos anos em viagens pelo oriente, entrevistando mestres e autoridades em meditação, etc. Não consta, porém, que ele tenha jamais abandonado a sua fé.

Mas eu fiquei particularmente feliz quando, lendo um de seus livros, do qual tenho feito ultimamente várias transcrições para este espaço, e onde ele pretende fazer um minucioso estudo da teoria mística de S. João da Cruz - por quem o Thomas Merton torcia para que se tornasse o doutor comum em mística da Igreja -, vi que este monge retira qualquer suspeita de sincretismo e rebeldia à autoridade da Igreja e faz questão de demonstrar que aquela visão de S. João da Cruz como exemplo de uma mística alheia a qualquer doutrina é, na verdade, bastante equivocado e sem nenhum fundamento. Transcrevo abaixo, mais uma vez, alguns trechos:

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Não poderemos compreender bem a S. João da Cruz ou a S. Gregório de Nissa se não nos lembrarmos de que a sua mística é centralizada no Cristo. Mesmo sendo apofática a sua teologia mística, a experiência supra-conceitual que têm de Deus só pode consumar-se em Cristo. E, o que é mais, ela não pode em realidade dar-se sem o conceito do Cristo como Verbo Encarnado de Deus. Isso é essencial à mística evangélica.  "Ninguém vai ao Pai senão por Cristo"" (Jo 14,6)

Alguns escritores de fora da Igreja prestam aos grandes místicos cristãos a homenagem dum certo respeito. Os santos mesmos não se teriam sentido lisonjeados por isto. S. João da Cruz é tratado por alguns como um panteísta a viver atrás de uma fachada cristã. Isso concorda com a teoria que faz viverem juntos no cume do seu Olimpo os místicos de todas as religiões, longe das névoas da doutrina religiosa, do sacerdócio, liturgia, sacrifício, disciplina eclesiástica, e todas as outras aborrecidas coisas que separam a marcha comum dos homens em grupos religiosos. Pensam na prática que os místicos cristãos da "Noite" deixam o Cristo fora das portas de seu próprio Eden contemplativo. A idéia de um Verbo Encarnado é para a gente simples. Devoção a Cristo crucificado, meditação sobre a sua santa Humanidade, supõem-se tão relacionadas com a mística cristã apofática, como o Bakhti Ioga ao mais puro Raja Ioga da Índia. O Bakhti é uma forma respeitável mas reconhecidamente inferior da mística, em que os adeptos chegam à união com o Absoluto concebido sob uma forma pessoal.

Esta engraçada teoria pode cativar-se se deixamos de ler os mais importantes capítulos de S. João, passando sobre as suas doutrinas mais fundamentais como se elas não existissem. Na realidade, a mística dos Carmelitas espanhóis é centralizada em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Deum verum de Deo vero, consubstancial ao Pai e nascido da Virgem Maria no tempo, morto na Cruz em redenção da humanidade, e que ressuscitou em glória e subiu aos céus, onde entronizou ao menos potencialmente a nossa natureza humana que Ele assumiu.

Isto é o mínimo exigido para a constituição de uma doutrina mística cristã. Mas o ensino dos carmelitas espanhóis, ou dos cistercienses franceses ou dos franciscanos italianos, ou dos Padres gregos e dos místicos do Deserto egípcio, não é [só] cristão, mas também católico. Quer isto dizer que ele não é só centralizado em Cristo histórico, mas que a sua contemplação é alimentada por esta extensão da Encarnação que é o Corpo Místico de Cristo, a sua Igreja visível, em que ela vive.

(...) Quando, portanto, S. João reconhece na razão um dos fundamentos da vida mística, é porque para ele a razão só preenche o seu ofício quando submete o homem à direção da fé. E esta não é um valor puramente subjetivo, pessoal, incomunicável. Ela tem o seu centro em Deus, revelado ao Corpo inteiro dos fiéis. Chegamos, assim, a esta importante conclusão: a razão é a chave da vida mística enquanto ajuda o homem a conformar toda a sua vida ao ensino e autoridade do Cristo que vive e atua na sua Igreja visível. Esta Igreja é uma unidade orgânica, com credo definido, corpo de leis, culto, chefe visível. A mística de S. João da Cruz não é apenas reconciliável com uma Igreja autoritativa e um sistema dogmático. Ela é efetivamente impossível sem isso. ( \o/ )

Thomas Merton, Ascensão para a Verdade, grifos meus.

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Creio que estas linhas sejam suficientes para demonstrar que a mística católica de modo algum cede à teoria da sopa mística que é defendida por aí. Mesmo quando o contemplativo chega a esta experiência de fato inefável, ela dá-se, sem dúvida, num nível supraconceitual, mas, mesmo aí, ela mantém-se genuinamente católica.

Fábio.
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