S. Josemaria Escrivá
Exhortamur ne in vacuum gratiam Dei recipiatis. nós vos exortamos a não receber em vão a graça de Deus. Porque a graça divina pode penetrar em nossas almas nesta Quaresma, se não fecharmos as portas do coração. Precisamos cultivar as boas disposições, o desejo de nos transformarmos a sério, de não brincar coma graça do Senhor. Não me agrada falar de temor, porque o que move o cristão é a Caridade de Deus, que nos foi manifestada em Cristo, e que nos ensina a amar todos os homens e a criação inteira. Mas devemos sem dúvida falar de responsabilidade, de seriedade: Não queirais enganar-vos a vós mesmos; de Deus não se zomba, adverte-nos o mesmo Apóstolo.
É preciso decidir-se. Não é lícito viver mantendo acesas, como diz o povo, uma vela a São Miguel e outra ao diabo. É preciso apagar a vela do diabo. Temos de consumir a nossa vida fazendo-a arder por completo ao serviço do Senhor. Se o nosso propósito de santidade for sincero, se tivermos a docilidade de nos abandonarmos nas mãos de Deus, tudo correrá bem. Porque Ele está sempre disposto a dar-nos a sua graça e, especialmente neste tempo, a graça para uma nova conversão, para uma melhora na nossa vida de cristãos.
Não podemos considerar esta Quaresma como uma época mais, como uma simples repetição cíclica do tempo litúrgico. Este momento é único; é uma ajuda divina que temos de aproveitar. Jesus passa ao nosso lado e espera de nós - hoje, agora - uma grande mudança.
Ecce nunc tempus acceptabile, ecce nunc dies salutis; este é o tempo oportuno, este pode ser o dia da salvação. Ouvem-se novamente os silvos do Bom Pastor, a sua chamada carinhosa: Ego vocavi te nomine tuo. Chama-nos a cada um pelo nosso nome, pelo nome familiar com que nos chamam as pessoas que nos amam. A ternura de Jesus por nós não se pode traduzir em palavras.
Considerai comigo esta maravilha do amor de Deus: o Senhor vem ao nosso encontro, espera por nós, coloca-se à beira do caminho, para que não tenhamos outra saída senão vê-lo. E chama-nos pessoalmente, falando-nos das nossas coisas, que são também as suas, movendo a nossa consciência à compunção, abrindo-a à generosidade, imprimindo em nossas almas o anelo de sermos fiéis, de nos podermos chamar seus discípulos. Basta percebermos essas íntimas palavras da graça - que muitas vezes são como uma censura afetuosa - para nos darmos conta de que Ele não nos esqueceu durante todo o tempo em que por nossa culpa, não o vimos. Cristo ama-nos com o carinho inesgotável que se encerra no seu Coração de Deus.
Reparemos como insiste: Eu te ouvi no tempo oportuno, eu te ajudei no dia da salvação. Já que Ele te promete e te oferece oportunamente a glória - o seu amor - , como corresponderei eu também, a esse amor de Jesus que passa?
Ecce nunc dies salutis, aqui está diante de nós o dia da salvação. A chamada do Bom Pastor chega até nós: Ego vocavi te nomine tuo, eu te chamei pelo teu nome. É preciso responder - amor com amor se paga - dizendo: Ecce ego quia vocasti me, chamaste-me e aqui estou. Estou decidido a não permitir que este tempo de Quaresma passe como passa a água sobre as pedras, sem deixar rasto. Deixar-me-ei empapar, transformar; converter-me-ei, dirigir-me-ei de novo ao Senhor, amando-o como Ele deseja ser amado.
Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, e com toda a tua alma, e com toda a tua mente. Que resta do teu coração - comenta Santo Agostinho, para que possas amar-te a ti mesmo? Que resta da tua alma, que resta da tua mente? "Ex toto", afirma Ele. "Totum exigit te, quia fecit te". Quem te fez exige tudo de ti.
Depois deste protesto de amor, temos de comportar-nos como amadores de Deus. In Omnibus exhibeamus nosmetipsos sicut Dei ministros, comportemo-nos em todas as coisas como servidores de Deus. Se te deres como Ele quer, a ação da graça manifestar-se-á na tua conduta profissional, no teu trabalho, no empenho por fazer à maneira divina as coisas humanas, grandes ou pequenas, porque, pelo Amor, todas elas adquirem uma nova dimensão.
Mas nesta Quaresma não podemos esquecer que querer ser servidor de Deus não é fácil. E para recordarmos as dificuldades, continuemos com o texto de São Paulo: Como servidores de Deus, com muita paciência nas tribulações, nas necessidades, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nas sedições, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns; com pureza, com doutrina, com longanimidade, com mansidão, com o Espírito Santo, com caridade sincera, com palavras de verdade, com fortaleza de Deus. Nos momentos mais díspares da vida, em todas as situações, temos de comportar-nos como servidores de Deus, sabendo que o Senhor está conosco, que somos seus filhos. Temos de ser conscientes dessa raiz divina, que está enxertada em nossa vida, e agir em consequência.
Essas palavras do Apóstolos devem encher-nos de alegria, porque são como que uma canonização da nossa vida de simples cristãos, que vivem no meio do mundo, partilhando anseios, trabalhos e alegrias com os demais homens, seus iguais. tudo isso é caminho divino. O que o Senhor nos pede é que a todo o momento nos comportemos como seus filhos e servidores.
Mas essas circunstâncias ordinárias da vida só serão caminho divino se verdadeiramente nos convertermos, se nos entregarmos. Porque São Paulo emprega uma linguagem dura. Promete ao cristão uma vida difícil, arriscada, em perpétua tensão. Como se desfigurou o cristianismo quando se pretendeu fazer dele um caminho cômodo! Mas também é desfigurar a verdade pensar que essa vida profunda e séria, que conhece vivamente todos os obstáculos da existência humana, é uma vida de angústia, de opressão ou de temor.
O cristão é realista, de um realismo sobrenatural e humano, sensível a todos os matizes da vida: à dor e à alegria, ao sofrimento próprio e alheio, à certeza e à perplexidade, à generosidade e à tendência para o egoísmo. O cristão conhece tudo e tudo enfrenta, cheio de inteireza humana e da fortaleza que recebe de Deus.
S. Josemaria Escrivá, É Cristo que Passa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Fique à vontade para comentar. Mas, se for criticar, atenha-se aos argumentos. Pax.