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Crônica: A Experiência da Cegueira


Josef Pieper

Meditando sobre o andamento do mundo, vem-se a desejar que a verdade pudesse, ainda uma vez, mostrar-se de forma totalmente irrefutável, imponente pela sua própria força arrebatadora.

Mas quão duvidosos são tais desejos (quão sinistras podem ser as formas em que realmente se dão a liberdade e também a fraqueza dos homens) e como a verdade de modo algum "se impõe", tudo isso torna-se manifesto na história que narraremos a seguir.

Nela se descreve uma experiência. Uma experiência que, aliás, não pode ser repetida por todo mundo. Mas, talvez, esse "todo mundo" reconheça que pode muito bem ocorrer uma repetição em qualquer época, de modo igual ou semelhante. Trata-se de uma experiência com a cegueira: um dos protagonistas é um homem cego. Ao final, demonstra-se que também um olho que vê pode estar cego. Aliás, esse tino especial de cegueira é mesmo o tema próprio de nossa história.

Um dos protagonistas é, como dizia, um cego, um homem ainda relativamente jovem. Todos o acolhem, pois ele não sabia fazer outra coisa a não ser ficar sentado na rua pedindo esmola.

Porém, que quer dizer exatamente "todos o conhecem"? Conheciam sim, seu jeito, sua voz e aquele seu rosto um tanto vazio e rígido. Mas seriam capazes de reconhecê-lo em outro ambiente, digamos, no jantar em casa de seus pais com quem mora ou no caminho guiado por um menino? Isto é duvidoso, e esta circunstância terá um certo significado em nossa história.

Para ir direto ao ponto mais importante: aconteceu que, um dia, esse homem, repentinamente, recobrou a visão - não, "recobrou não! mas pela primeira vez pôde ver (pois ele era cego de nascença). O mendigo lavou-se numa água parada e, de repente, ganhou a visão.

Talvez esse lavar-se não tenha sido o decisivo; algo tinha ocorrido antes. E por isso, precisamos falar ainda de um outro personagem principal. Mas esse não pode ser descrito tão facilmente.

O povo andava falando do "homem milagroso", muitos o chamam "o bom" e outros até "o abençoado". Mas isto, para nossa história não é propriamente importante. Mais importante é que ele era suspeito. Suspeito ante quem? E suspeito de quê? Também isto - esta última pergunta - é difícil de responder. Ele era suspeito junto aos detentores do poder. Mas por quê? Bem, isto só eles sabiam. Diziam que ele desprezava as leis e os costumes. Mas claramente não era essa a razão da suspeita, ainda que a conduta daquele homem parecesse a muitos fora do comum, fora da ordem.

Aliás, "suspeita" não é também a palavra certa; o que havia era antes inveja, quase ódio. Os detentores do poder temiam a crescente popularidade do homem dos milagres, sua influência sobre a massa insensata. E isso com razão, se bem que a gente do povo, que não quer cair na antipatia dos poderosos, já começava a acautelar-se em manifestar de maneira demasiadamente clara sua um tanto desorientada admiração por aquele homem, pois não era totalmente isento de perigo fazê-lo. E, por fim, não sabiam realmente a quantas andavam com ele.

O fato é que esse homem - também ele ainda relativamente jovem, pouco mais de trinta anos - tinha-se encontrado com o cego na rua. Deu-se um curto diálogo no qual o mendigo ouviu, misturadas, também, algumas vozes. E, então, o cego sentiu um dedo sobre seus olhos que parecia esfregá-los com uma espécie de pomada. Ao mesmo tempo que uma das vozes lhe dizia que ele devia ir lavar-se naquela piscina. E então, como dissemos, tornou-se capaz de ver. E assim começa a experiência.

***

Dizíamos que com este fato iniciava-se a experiência com a cegueira. No decorrer dessa experiência, mostrar-se-á o que acontece com a irrefutabilidade de um fato límpido.

Já entre os primeiros que viram o mendigo passar pela rua, até mesmo entre seus vizinhos, não foram poucos os que simplesmente questionavam que este homem fosse o mesmo que, desde há anos, tinha estado sentado, cego, na rua.

Alguns afirmavam que sim, que apesar de tudo era ele, inconfundível. Pois não se via no rosto, no cabelo, nos andrajos? Tudo exatamente o mesmo! Outros, porém, teimavam: não, certamente há determinadas semelhanças, mas trata-se de outra pessoa.

Ora, podia-se perguntar a ele mesmo. E sua resposta, naturalmente, foi contar o que tinha ocorrido. Mas, o que sabia ele do ocorrido? Se o "abençoado" neste instante passasse diante dele, o mendigo não o teria reconhecido, pois nem sequer o tinha visto. E assim, à irônica pergunta: "Onde está então o que te curou?", ele teve que responder que não sabia. Não se pode imaginar a envolvente satisfação com que os espíritos críticos constataram o caráter já nem sequer duvidoso do caso: um cego, um sujeito tipo por cego, e, além disso, claramente um marginalizado, pretende ter sido curado por aquele de quem tanto se fala. e então verifica-se que a coisa nem sequer se deu na presença do taumaturgo; o rapaz só ouviu falar dele e absolutamente não o conhece. Não, esta história está muito esquisita, mal arranjada.

***

A experiência continua. Porém, deve-se falar ainda de uma circunstância especial e, na realidade, um tanto desconcertante. O milagroso era tido, como já ficou dito, como um detrator de costumes. E não só havia muitos costumes, mas também cuidava-se com especial rigor de observá-los. Por exemplo, havia dias em que, por motivo algum, se podia sujar as mãos: isso era tido quase como sacrilégio. Ora, por que aquele homem tinha que fazer, precisamente num desses dias, uma suja pomada de cuspe e pó da rua para com ela esfregar os olhos do mendigo? O fato é que o fez e isto basta! E não é surpreendente que, desse modo, aquilo tudo ganhasse o aspecto de provocação pública.

Em todo caso, o mendigo - ainda meio atordoado pelo ocorrido - foi conduzido ante os detentores do poder. E novamente contou de modo breve e já um tanto impaciente o que lhe tinha acontecido.

A partir daí, formaram-se dois partidos entre os poderosos: um, que julgava que o decisivo era o desprezo pelos costumes e, portanto, tinha por impossível a cura, enquanto o outro indagava se alguém capaz de curar um cego pode ser um mau homem. E ele mesmo, o pretensamente curado, que dizia? Bem, ele o considerava um grande homem. Sim, é compreensível. Mas, se ele nem sequer conhecia o seu "grande homem"! O resultado foi que já ninguém mais acreditava no fato. Não era verdade, não podia ser verdade.

***

Mas não haveria nenhum modo de descobrir se o mendigo que costumava ficar sentado na rua aos olhos de todos era o mesmo que este jovem, cujos olhos claramente estavam sãos e que afirmava ter sido cego e subitamente curado? (Talvez até ele nunca tivesse realmente sido cego!). Onde se podia obter informações sobre o que na verdade tinha ocorrido? Bem, se há alguém que pode dizer algo são os pais do homem.

Foram pois trazidos e indagados. Não, não foram simplesmente indagados, foi um autêntico interrogatório. E precisamente isto pôs tudo a perder. Essas pessoas de condição humilde, não acostumadas ao erudito linguajar jurídico ficaram simplesmente com medo. Já tinham ouvido dizer que quem falasse a favor do taumaturgo seria proscrito, o que era algo que não se podia considerar levianamente. E, além disso, que tinham a ver com aquele homem? Absolutamente nada. De modo que simplesmente recusaram-se a informar sobre o assunto. Em todo caso, não negaram que era seu filho e admitiram também que tinha sido cego desde o nascimento, pois isso não poderia ser mal interpretado. Agora, de que modo ele hoje vê - disso, não sabiam nada, absolutamente nada. Ele, aliás, já não é nenhuma criança; e mudo também não é.

***

Mas para que, exatamente, era necessário saber o que os pais pensavam da cura? Se eles não tinham deixado nenhuma dúvida sobre o fato de que este homem, hoje com visão, realmente lhes tinha nascido cego; era seu filho e até ontem cego.

O que então não estava claro? Naturalmente, o que "não estava claro" era como se podia explicar essa cura. Mas que cura tinha havido...

Por isso, convocaram, ainda outra vez, o próprio mendigo a interrogatório. Evidentemente, já não se tratava de ouvir e "entender", mas precisamente de não ouvir, de abafar. Numa palavra: o mendigo devia ser reduzido ao silêncio.

Tal objetivo - como todo mundo sabe - pode ser atingido de diversos modos, ou melhor, pode-se tentar atingir (no caso, não se conseguiria).

"Você não pode - assim disseram os poderosos ao mendigo - você não pode, naturalmente, entender nossas razões, por isso seu erro é compreensível. Mas nós estamos muito bem informados de que você se engana. Seria bom para você considerar isso. E, principalmente, grave na memória uma coisa: quem está dizendo isto a você não é um qualquer, mas somos nós, nós que somos não só os sábios, mas também os poderosos. Então, pense bem, medite com calma e quando você tiver compreendido conte-nos pela última vez: que aconteceu realmente?"

Não é totalmente certo que o mendigo se tivesse apercebido das ameaças que se encerravam nessas palavras: era demasiadamente simples para isso. Mas sentiu-se subitamente enfastiado do palavreado e deixou-se arrastar pela ira. Ajudou-o a isso (por assim dizer) o fato de não ter nenhuma destreza na arte de ter direitos; tudo o que ele tinha "aprendido" era unicamente levar o transeunte a dar esmola, e isto lhe bastava.

Mas, seja como for, o mendigo opôs à intimação dos poderosos uma resposta inesperadamente atrevida, não lhes poupou sequer a marota e irônica pergunta de se por acaso eles também estavam querendo se tornar adeptos do abençoado.

E, em vez de atender-lhes o desejo de uma vez mais contar o ocorrido, começou a demonstrar-lhes que não era ele quem se enganava, mas eles, os poderosos.

Naturalmente, a coisa terminou com a expulsão do mendigo.

***

Mas o mendigo não tinha ainda visto o homem a quem devia a luz dos olhos. E não demorou muito até que se encontrassem. Todas as audiências e também o desfecho do último interrogatório não eram desconhecidos pelo abençoado. E ele, de propósito, fez com que o mendigo inesperadamente deparasse com ele no meio da agitação e barulho do mercado. Falou ao curado e perguntou-lhe de modo totalmente direto se ele cria no homem capaz de fazer coisas sobre-humanas. O indagado, de início, mal se surpreendeu, cansado que estava de perguntas que não levam a nada, e sua resposta foi um tanto evasiva: que lhe mostrassem afinal este homem e então veria o assunto da fé.

Mal, porém, acabava de falar, interrompeu-se e fechou os olhos - num máximo esforço de escutar - fechou os olhos para, nas trevas que lhe eram tão familiares, reconhecer, ou melhor, re-conhecer a voz do outro.

E quando a voz lhe disse: "Este homem está diante de ti" - então, num instante, o mendigo compreendeu tudo. Soube, de um só golpe, que só naquele preciso momento é que tinha realmente começado a ver. E essa felicidade atravessou-o como um raio e lançou-o ao solo, enquanto o abençoado, inclinando-se sobre o que no chão estava prostrado, disse algo muito obscuro a respeito de cegos que vêem e de gente que vê mas é cega.

É quase certo que ninguém ali compreendeu o que ele queria dizer. E quando um dos que por lá estava, um do partido dos poderosos, disse, irônico e ameaçador, que então, segundo isso, eles, os poderosos, seriam também cegos, obteve a resposta de que isto é que era o mal: que eles não eram cegos. Aí já não houve mais ninguém que ainda perguntasse o que isso significava; perguntavam-se se tinha afinal algum significado, se havia, afinal, algo a ser compreendido.

E assim termina a experiência da cegueira.

***

Disse eu que termina a experiência da cegueira? Não, essa seria uma formulação um tanto imprecisa, e até mesmo incorreta. O que terminou foi o relato; a experiência... a experiência continua.

Josef Pieper In: LAUAND, Jean. Linguagem e Ética; Ensaios. Curitiba: Editora Universitária Champagnat, 1989.
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Um comentário:

  1. Caríssimos internautas,
    uso o pequeno espaço deste blog tão acessado por vós,para indicar-vos a Leitura do grande presente que a Mãe Igreja deu para nós jovens: YOUCAT- seu Catecismo!!!! O Catecismo na linguagem dos Jovens. Para amar e servir á DEUS é preciso conhecer a nossa Fé! Esse é o desejo do Papa: " Estudai o Catecismo! Esse é o desejo do meu coração. estudai o catecismo com paixão e perseverança!...Estudai-o no silêncio do vosso quarto...partilhai-o entre vós na Internet!Tem de saber em que credes." -Papa Bento XVI Faça parte, você jovem leitor da Turma do "Amarelinho." Preparemo-nos também pela Jornada Mundial da juventude 2013- Participe do Bote Fé!!! Deixemos a Alegria da Cruz nos Contagiar:"NO PEITO EU LEVO UMA CRUZ, NO MEU CORAÇÃO O QUE DISSE JESUS!" Deo Gracias

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